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OPRESSÕES

Um João a cada 23 minutos

Maju Venâncio, Malu Nogueira e Paula Nunes*, de São Paulo, SP
Rede Brasil Atual / BdF

Cabô, cadê menino?
Quem vai pagar a conta?
Quem vai contar os corpos?
Quem vai catar os cacos dos corações?
Quem vai apagar as recordações?
Quem vai secar cada gota
De suor e sangue?
“Cabô”, Luedji Luna

 

Cabô, cadê meninos? João Pedro e João Victor presentes!

Quem viu as notícias dessa semana, sabe que na terça-feira (19)  João Pedro Mattos Pinto – um garoto negro de apenas 14 anos – foi assassinado, brincando com primos, dentro de casa com um tiro na barriga. Além de ser alvo do tiro, o menino foi sequestrado por mais de 14 horas após ser levado pelo helicóptero da PM Carioca. 

Por si só, todo esse terrorismo de Estado deveria escandalizar o país. Mas ontem (20), menos de 24 horas depois de tamanha brutalidade, outro jovem João é morto pelo Estado. O alvo da noite foi João Victor da Rocha, de 18 anos e morador da Cidade de Deus, baleado durante a operação policial que interrompeu a distribuição de cestas básicas feitas no local pela Frente CDD. 

Se a morte precisa ter rosto conhecido para sensibilizar, pense que em menos de 24h poderia ter sido o seu amigo João e seu primo João. Poderia ter sido seu porteiro João e seu sobrinho João. 

Porém, além de tudo nesses momentos em que um de nós é levado de forma brutal, sempre temos o desafio de dizer seu currículo. No caso, o currículo de um menino de 14 anos. Dizer que não era traficante, não era “bandido”, não era “envolvido com gente errada”. Dizer que era mais um menino, João Pedro, amoroso com os primos, frequentava o grupo de jovens de uma igreja. Dizer que era mais um adolescente, João Victor, saindo de casa para comprar pipas. 

Com João Pedro e João Victor foram enterrados mais sonhos. E se força o nascimento de mais mães de maio, como as tantas outras mães que já perderam seus filhos para a violência do Estado. Mais famílias dilaceradas, como a da pequena Ágatha Félix de 8 anos ou do xará João Vitor, de 14 anos, morto com roupa de escola em 2018.

É preciso afirmar que essas mortes têm responsáveis. Tem responsável que atirou, tem responsável que colocou dentro do helicóptero da PM. Tem responsabilidade com nome e sobrenome de quem promove política de morte como governador, e é Wilson Witzel. Tem responsabilidade de quem diz que “bandido bom é bandido morto” e banaliza as mortes de jovens negros periféricos, como o presidente Jair Bolsonaro. Nós vamos cobrar cada um deles! 

Genocídio da Juventude Negra 

O nome do que acontece com a juventude negra no Brasil é genocídio, não há outro. É eliminação sistemática da sociedade. O encarceramento faz do Brasil a terceira população carcerária do mundo com mais de 810 mil presos e atinge especialmente a população negra – que soma 60% do total de pessoas presas. Tal processo se dá de forma combinada com as concretas desigualdades sociais que também atingem em cheio a juventude negra e é, então, parte do que se classifica como criminalização da pobreza.

Há ainda a sistemática eliminação física de corpos negros pela violência do braço armado do Estado, como no recente caso da ação da PM no Rio de Janeiro. A chance de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é 2,5 vezes maior do que a de um jovem branco, de acordo com o último Atlas da Violência. É um João a cada 23 minutos. 

É nesse contexto, portanto, que o Estado, o mesmo que disse há dias em outras palavras para a juventude se virar e estudar para o ENEM (já que todos tem as mesmas chances) é também responsável por produzir diariamente Joãos. Se não há direito à vida como pode haver futuro para a juventude negra? 

É sobre João Pedro e João Victor, mas é também sobre as condições de vida de mais da metade do Brasil. Não é possível aceitar essa relação com a vida e nem com a morte de milhares! Parem de nos matar!

Outra face, mesmo genocídio

É esse Estado, governado hoje por um fascista abertamente racista, que produz também quando escolhe – porque sim, se trata de uma escolha política – que as quase 20 mil vidas, tantas negras e pobres, sejam perdidas pela “gripezinha”.

A crise social, econômica, política e sanitária escancarada pela COVID-19 mata mais entre negros. Não por predisposição biológica nenhuma, mas pelo concreto abismo de desigualdades sociais. Negros são grande parte dos postos informais de trabalho (47,3% de acordo com o IBGE) e maioria nos altos índices de desemprego (64%, de acordo com o mesmo levantamento), o que faz o isolamento ser um direito negado a essa parcela significativa da população.

Também são maioria, já que cerca de 80% de usuários do SUS se autodeclaram pretos ou pardos, nas filas dos hospitais públicos superlotados. Local onde tantos profissionais da linha de frente como enfermeiras e trabalhadores da limpeza, que sofrem com a falta de EPIs, também são negros.

Vidas negras importam! 

Tem muita gente dizendo por aí que essa quarentena vai nos ajudar a ser melhores. Melhores em quê, cara pálida? Melhores em nos sensibilizar com uma morte horrorosa como essa, de mais um menino João? Melhores em fazer a nossa indignação nos mover? Se não for isso, não nos serve. 

Se é verdade que liberdade é não ter medo, também é verdade que nunca soubemos o que é isso.

A vida dos que ficam é marcada pelo esforço cotidiano de driblar as estatísticas desse sistema e de não deixar que elas nos definam. Vivências atravessadas pelo luto e pela dor. É cansativo, sufocante. A naturalização da violência e do descaso ao qual o nosso povo é submetido deve rasgar o peito dos inconformados. Esse projeto racista nos impede de viver, quem dirá viver plenamente. Pra nós, liberdade é uma luta constante!

Diante de todo esse cenário de perda de tantos Joãos e Ágathas e de crise generalizada, é importante fortalecer os laços de solidariedade de classe mas também de consciência racial, já que raça informa as mazelas de toda classe. E assim apontar, coletivamente, para a construção de outro projeto de sociedade que busque romper com essa lógica do lucro acima da vida. 

Com a necropolítica, morte e vida são banalizadas. Assim, morre também em doses diárias um pouco do que nos torna mais humanos. Talvez mais do que em qualquer momento da história recente do Brasil é preciso dizer que as vidas negras importam. E defender a vida dos negros e negras do nosso país deve ser sinônimo da ideia de que a vida vem antes do lucro!

Parem de nos matar! 

Vidas negras importam! 

A vida antes do lucro! 

 

*Maju Venâncio – Estudante de Ciências Sociais na USP e militante do Afronte
Malu Nogueira – Estudante de Relações Públicas na USP, militante do Afronte e da Resistência Feminista
Paula Nunes – Advogada Criminalista e defensora de direitos humanos, militante da Marcha de Mulheres Negras de SP, do Afronte e da Bancada Feminista – PSOL. 

 

 

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Marcado como:
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