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Colunas

Os homens que scanneavam: pesquisadores, burocracia e pandemia

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

A Capes decidiu aproveitar a pandemia para transformar os professores universitários em scanners com intelecto, requisitando, a cada dia, mais e mais comprovações de publicações que nenhum burocrata vai sequer ler o resumo. Para além do já tradicional critério produtivista de mensuração da produção científica, trata-se, também, de uma forma de chantagem em tempos de cortes de bolsas e verbas em geral. À maneira burocrática, o burocrata vinga-se cotidianamente do intelectual, na medida em que submete este a exigências que, se atendidas corretamente, tomar-lhe-á todo o tempo de pesquisa, fazendo, assim, com que meios e fins se invertam para o regozijo da burocracia, ela mesma uma inversão em si.

Característica da época dos monopólios, a burocratização da vida, expressão administrativa de uma “vida administrada”, faz com que a forma (abstrata) se sobreponha ao conteúdo (concreto) das coisas, e que o objeto, isto é, as normas, procedimentos e exigências, acabem por objetificar o sujeito, a saber, nós, as pessoas – como, de modo diferentes, expuseram Weber e Lukács. De meio para nos possibilitar melhor viver, a burocracia se converteu, faz tempo, na própria senhora da nossa vida, mas talvez só agora os departamentos e pós-graduações, submetidos materialmente às instituições de fomento, tenham conseguido fazer a rotina dos professores similar à de alguém que viesse a ter que todo dia comparecer ao Detran para reaver seu carro rebocado, carregando, por óbvio, toda a documentação, cópia e original, que a burocracia da instituição exige mesmo já a tendo salva em seu sistema.

Assim, o tempo gasto para atender as exigências necessárias para que se venha a ter ou manter as bolsas e verbas para a pesquisa, sobretudo em tempos de pandemia, não é senão o próprio tempo no qual a pesquisa poderia estar sendo feita: eis a vingança da burocracia, que é saboreada pelos gestores das Capes da vida a cada nova portaria, que traz sempre a impressão de que a seguinte pode vir a exigir a comprovação da nossa redação do vestibular. Tachados pelos intelectuais da academia de burocratas acadêmicos, de executores de uma tarefa intelectual repetitiva e desprovida de essência, de mensuradores e controladores formais de um conteúdo alheio, os gestores das instituições de fomento finalmente conseguiram transformar os intelectuais em acadêmicos burocratas, em executores de uma tarefa intelectual repetitiva e desprovida de essência, em mensuradores e controladores formais de seu próprio conteúdo, o que talvez seja algo ainda mais sórdido e vingativo.

Mas o pior é que, mesmo com a agonia, mesmo com a pandemia, a gente reclama, a gente torce o nariz, mas a gente vai cedendo, vai scanneando, vai copiando, como se, ao final, não fossem mesmo eliminar bolsas e verbas – e se não forem as nossas, serão as de nossos colegas de outros programas, afinal, o montante geral só faz diminuir. E assim nós vamos nos portando como lobos hobbesianos que, lançando mão não das garras e dentes, e sim de relatórios e cópias scanneadas, se matam na luta por uma porção cada vez menor de ração burocrática. Ao menos nas áreas de humanas, hoje tão exigidas e atacadas pela burocracia governamental, o pensamento crítico vai ter que remontar às suas origens, e os intelectuais subversivos terão que reeditar seus antepassados e aprender a pesquisar sem as instituições de fomento, e é melhor que o façam antes da ração acabar, sob pena de, até lá, já terem eles mesmos se convertido em não mais do que burocratas com Lattes.

 

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Capes / universidade