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Fora Bolsonaro é um giro tático necessário. Um 1º de Maio com a presença de FHC e Maia é um desastre

Valerio Arcary

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

  1. A confirmação da renúncia de Moro do Ministério da Justiça é mais uma confirmação de que o “Fora Bolsonaro” é uma elevação de tom correta na tática de endurecer o papel da oposição de esquerda à Bolsonaro. O PSOL, e agora, o PT decidiram, corretamente, defendê-la. É uma palavra de ordem de agitação. A decisão de abraçá-la gerou uma polêmica forte na esquerda brasileira. Alguns acreditam que é uma precipitação, outros consideram que chegamos a ela com semanas ou meses de atraso. São duas posições compreensíveis. Sempre que há um giro na situação política é razoável esperar que haja algum desentendimento nos tempos da tática. A apreciação dos tempos, dos ritmos, dos momentos, das cadências tem importância crucial na definição do que fazer. O argumento deste texto é que não era correto defender o Abaixo o governo antes da mudança na conjuntura pelo impacto da pandemia, e que seria um erro não o fazer neste momento.
  2. Fora Bolsonaro passou ser útil porque mudou a conjuntura. O fator chave nesta mudança na relação política de forças foi o choque da pandemia. A posição de Bolsonaro contra a quarentena foi um gatilho para uma divisão na classe dominante que diminuiu a força do governo. Uma imensa maioria de governadores discordou da orientação de Bolsonaro pelo chamado isolamento vertical. A fratura chegou ao Ministério, e resultou na demissão de Mandetta. O STF se posicionou em defesa dos governadores e prefeitos. Um relativo isolamento institucional de Bolsonaro se precipitou. Esta mudança na superestrutura da sociedade se refletiu, rapidamente, em um deslocamento em setores das camadas médias, e a consolidação de uma maioria na classe trabalhadora contra o governo. A contraofensiva de Bolsonaro foi imediata. Subiu na caçamba do caminhão e fez ameaças golpistas, fortaleceu a presença do núcleo militar nos ministérios, e autorizou uma integração do Centrão no governo. Mas agora perdeu Maia. A relação social de forças, entretanto, ainda é desfavorável para os trabalhadores.
  3. Nenhuma fração da classe dominante, por enquanto, apoia a ideia de um impeachment. Portanto, neste momento, não vai acontecer. Claro que tudo pode mudar em poucas semanas, quando estivermos assistindo, dramaticamente, a mil mortos por dia. Há várias possibilidades institucionais para a derrubada de Bolsonaro, mas é muito improvável, neste momento de início de auge da pandemia. A concretização de Fora Bolsonaro deve passar pela iniciativa de apresentação de um impeachment que unifique os partidos de oposição. Trata-se de uma unidade de ação correta, mas nada mais do que isso, uma tática parlamentar justa. A apresentação de um pedido de impeachment serve como uma exigência sobre Maia. Corresponde a dizer que para salvar vidas é preciso deter Bolsonaro. Trata-se de agitação política.
  4. O “Abaixo o Governo” não é um décimo primeiro mandamento oculto. Ninguém é mais revolucionário porque começou a defender Fora Bolsonaro algumas semanas ou meses antes dos outros, quando não estão reunidas as condições para, efetivamente, mobilizar pela derrubada do governo. Estas condições inexistem neste momento da conjuntura. Nenhum governo no mundo é derrubado pela esquerda sem mobilização popular monumental, extraordinária, colossal. E não temos, neste momento condições de sequer tentar. Além disso, é necessário que a esquerda tenha um projeto. Aprendamos com o que aconteceu no Chile. Piñera tremeu, mas não caiu.
  5. Enquanto Abaixo o governo é uma consigna de agitação, e não para a ação, o critério deve ser avaliar, testar e calibrar se ela cumpre um papel positivo na acumulação de forças. Se ela ajuda a unificar uma base de massas na classe trabalhadora e a juventude. Enquanto estivermos limitados pelas condições de confinamento da quarentena, a esquerda não tem como se apoiar na força social de choque de ações de rua. Romper com a quarentena seria um grave erro. O que podemos fazer é agitação e propaganda nas redes sociais. Paciência e firmeza.
  6. Na tradição anarquista o Abaixo o governo é um mantra permanente. Ficou célebre o aforismo espanhol: “hay govierno, soy contra”. Vem acompanhado da defesa da greve geral. Está alicerçado em duas premissas. A primeira é que todo governo deve ser derrubado porque os trabalhadores estão sendo atacados e sofrendo sob o capitalismo. Um governo odioso merece ser odiado, e tem que ser derrubado. A segunda é que não importa se há ou não uma maioria na classe trabalhadora de acordo. Basta que haja uma vanguarda que tenha clarividência e determinação, consciência e disposição.
  7. Na tradição marxista há um método político para definir a oportunidade ou não de iniciar uma campanha para tentar deslocar o governo. Esse critério foi estabelecido pela experiência revolucionária mais bem sucedida em uma sociedade com algum grau de urbanização e industrialização, a russa em 1917. As Teses de Abril não propunham a palavra de ordem “Abaixo o governo provisório”. Lenin defendia uma exigência a Kerensky: “Pão, paz e Terra” e “Fora os ministros capitalistas, todo o poder aos soviets”. Lembrando que os soviets tinham maioria menchevique e esserista até setembro. Os bolcheviques só passaram a defender “Abaixo Kerensky” depois da derrota da tentativa de golpe de Kornilov, quando os bolcheviques passaram ter maioria no soviet de Petrogrado e Moscou. Se não há uma maioria contra o governo, é errado defender Abaixo o governo, porque esta palavra de ordem divide, confunde e gera desconfiança na classe trabalhadora. A política socialista é uma política que deve se apoiar em uma maioria da classe trabalhadora.
  8. O sucesso de uma campanha ordenada por um programa de ação que unifica “Salvar vidas, impedir demissões, fortalecer o SUS, taxar as grandes fortunas, Fora Bolsonaro” depende de uma Frente Única de Esquerda, portanto, independente de partidos que se apoiam em frações do capital. A convocação de um 1º de Maio unificado das Centrais Sindicais pela internet foi uma iniciativa positiva. Mas os convites feitos para Maia e FHC, entre outros representantes de frações da burguesia em conflito com Bolsonaro, foram um gravíssimo erro. Porque o 1º de Maio é um dia em que as organizações dos trabalhadores devem defender os seus interesses. Maia é a favor da proibição de demissões? FHC é a favor de fortalecer o SUS? São a favor de taxar as grandes fortunas?
  9. Não é possível uma frente tão ampla que inclua até FHC e Maia, a não ser que, hipoteticamente, ela se reduza à proposta de Fora Bolsonaro, em defesa da democracia. Só seria possível se considerarmos a hipótese de um impeachment a frio. Seria uma evolução limitada, porém, progressiva, porque Bolsonaro é um neofascista, e sua queda uma vitória democrática, ainda que muito parcial, se for para abrir o caminho a Mourão. Mas uma tática parlamentar não é o mesmo que uma estratégia política. Acontece que é impossível derrubar Bolsonaro, mesmo que a esquerda aceitasse este programa, sem mobilização de massas. E não é possível mobilizar as massas populares em defesa de “Todo o poder ao Congresso”. Somente setores das camadas médias poderiam responder a este apelo.
  10. A única janela que pode abrir uma mudança na relação de forças é a mobilização dos trabalhadores e da juventude. E a experiência histórica indica que a base social da esquerda só despertará com fúria e indignação diante do impacto destrutivo da pandemia, com seus muitos milhares de mortos, e da crise econômica, com seus muitos milhões de desempregados. Nada poderá substituir a experiência prática de milhões com a catástrofe iminente. Mas as tragédias só permitem construir força social, se for galvanizada, politicamente, pela esquerda com um programa que defenda seus interesses concretos.

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