Pedro Paulo Soares Pereira, Mano Brown, completou 50 anos na última quarta-feira (22). Meio século contrariando as estatísticas! Foi um dia de ouvir suas músicas e homenageá-lo! Ultimamente, tenho curtido mais o embalo do Boogie Naipe (2016), explorando a profundidade de seu lado romântico e ampliando o meu conhecimento sobre a pegada funk&soul, os bailes blacks que não vivi. Só que hoje queria fazer um exercício diferente, arriscar uma reflexão a partir das últimas contribuições de Brown sobre a política nacional, especialmente sobre a crise das esquerdas e o avanço do neofascismo nas favelas. Com sua autenticidade e distante dos vícios da política institucional que afligiram parte da esquerda, penso que ele expôs ideias preciosas para a militância dos movimentos sociais de todo o país.
Brown sempre se posicionou no campo da esquerda, em defesa de políticas democráticas e populares. Os Racionais MC’s surgem no início da transição entre a ditadura civil-militar e a democracia liberal. Quando estouram, na segunda metade da década de 1990, um de seus maiores méritos é mostrar ao país que o entulho da ditadura empilhava corpos pretos e pobres diariamente nas periferias e presídios. A música “Diário de um Detento”, no clássico Sobrevivendo no inferno (1997), impediu que o Massacre do Carandiru (1992) caísse no esquecimento. Enquanto a maioria da esquerda se adaptava a institucionalidade, ao lado de Ice Blue, Kl Jay e Edi Rock, Brown pegava em armas, literalmente, para ajudar a organizar um movimento e defender suas ideias. Não à toa, em 2012, o legado de Marighella foi divulgado a milhões de brasileiros pelos Racionais: existe uma trilha comum nessas trajetórias.
Por essas e por outras, as ideias dos Racionais MC’s foram intensamente atacadas pelos conservadores e neofascistas nos últimos anos. Em entrevista à GaúchaZH, em fevereiro de 2018, Brown mostrava-se cético com a periferia: “Hoje, a luta que as pessoas dizem ter é individual. Não vejo mais luta de classes. A luta é por conforto. A periferia está pedindo segurança, votando em polícia, se escondendo dentro de igreja e atrás de pastor, não assumindo a parte que lhe cabe.”. Ele não cita o nome de Bolsonaro, apesar de noutra entrevista no mesmo ano mencionar preocupação sobre a questão das Forças Armadas – penso que refletindo o impacto da intervenção militar no RJ -, mas relaciona o novo comportamento e os desejos da periferia a elementos da ideologia conservadora. Diretamente do centro do “tucanistão”, com a experiência de quem enfrentou a ira do PSDB e do DEM (A praça – Cores e Valores, 2014), Brown parece ter nitidez que não eram estes os principais inimigos nas eleições presidenciais, como a maioria da esquerda pensava até agosto de 2018. É que os ataques ao Rap nacional não vinham apenas das elites e das classes médias que lotavam a Av. Paulista nos domingos, o escracho e o xingamento oriundo das periferias fizeram Brown perceber a mudança nas táticas e na estratégia do conservadorismo na última década.
Também penso que de sua análise sobre o pensamento da periferia podemos extrair uma interpretação crítica do fim do ciclo lulista. Ao GaúchaZH, ele identifica no crescimento do individualismo nas periferias um elemento de contradição do lulismo. A constatação é que os anos de intensa ampliação do acesso ao consumo e formalização do emprego nas periferias, as mudanças progressivas como o acesso às universidades, o crescimento da autoafirmação racial e outras melhoras nas condições de vida não serviram para mudar estruturalmente o país. Por quê? Meses depois, sua fala emblemática nos Arcos da Lapa complementa a visão. Naquela noite em que foi vaiado num comício pró-Haddad, a crítica central as esquerdas foi a falta de trabalho de base e a comunicação falha com as periferias: “errou tem que pagar”, ele disse. A verdade é que sem reorganizar profundamente os valores morais e repensar culturalmente a sociedade, nenhuma estratégia de esquerda pode se consolidar a longo prazo. É possível relacionar essas ideias a crítica a hegemonia às avessas dos ciclos petistas – para lembrarmos da contribuição do sociólogo Chico de Oliveira -, onde os dominados de sempre hegemonizavam o poder, desde que não ousassem modificar os aspectos centrais da dominação burguesa e, ao mesmo tempo, “domesticassem” os movimentos de base.
A burguesia sempre foi implacável com Brown. Por mais que hoje a indústria cultural o aceite, pois o RAP está consolidado e é um dos estilos musicais mais ouvidos no Brasil, é sempre bom lembrar de uma coisa: Brown é o único artista de massas do Brasil que nunca se relacionou com a Rede Globo. Podemos identificar nessa postura uma forma de manutenção da lógica de auto-organização do movimento hip-hop. A partir da explosão dos Racionais MC’s, a necessidade de manter a independência da cultura transformou-se na luta pelo desenvolvimento de gravadoras próprias e formas de reprodução da arte que não passassem pelo crivo seletivo da indústria cultural e, ao mesmo tempo, mantivessem o espírito coletivo. Em parte, os longos intervalos entre os CD’s dos Racionais também se explicam por isso, pois, nesses períodos, seus membros se envolviam permanentemente no trabalho de outros grupos, da onde surgiram clássicos como o Rap é compromisso (2000), de Sabotage, onde Brown cumpriu um papel importante. Na entrevista a GaúchaZH, Brown crítica o apego da nova geração por coisas passageiras, expondo seu espírito estrategista e uma lógica de longo prazo para pensar a cultura. Infelizmente, esse é um contraste existente com a esquerda brasileira, desacostumada a traçar estratégia dessa natureza.
A última ideia que me impactou sobre a política nacional foi na turnê #R30, que pude presenciar numa noite inesquecível no Rio de Janeiro. Brown pediu silêncio quando o público ensaiou um Fora Bolsonaro e, assim como vi o KL Jay fazer num bate-papo durante o FestPoa Literária, chamou a periferia a refletir sobre seu papel na eleição do neofascista. Quem melhor que eles pra cobrar uma postura crítica? Bolsonaro ganhou em muitas periferias Brasil afora! A preocupação que percebo é a de falar para além da bolha e, mais uma vez, ser profundamente realista. É preciso levar em conta a profundidade das mudanças culturais dos últimos anos, as que fazem Brown se sentir traído pelos seus fãs. Se pensarmos nelas, poderemos compreender que virar o jogo vai demorar. E precisamos ter consciência disso para traçar nossas estratégias. Acho que o Brown já traçou a dele: por enquanto, os Racionais vão ficar quietos, mantendo a máquina em andamento por que a luta pela sobrevivência segue, mas sem lançar CD novo, vivendo o luto e chamando o povo a reflexão, pois a verdade é que o Brasil não anda merecendo os quatro preto, Espero que possamos viver para um retorno triunfante e tomara que até lá a esquerda compreenda um pouco melhor as ideias desse revolucionário. Vida longa, saúde guerreiro e, acima de tudo, obrigado!
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