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BRASIL

O coronavírus no Brasil e nossas fissuras sociais

Veronica Freitas*, do Rio de Janeiro, RJ
Reprodução

Carreata na Av. Paulista, contra o isolamento social

“Eles combinaram de nos matar,
Mas a gente combinou de não morrer”
Conceição Evaristo

A pandemia do Covid-19 revela contradições profundas da sociedade brasileira. O tema tem dominado a pauta global, e provocado grandes transformações nas políticas de cada nação. Em nosso caso, o presidente Jair Bolsonaro se destaca como um governante que não encara a gravidade da situação, adotando uma política negacionista com relação à doença e à ciência. Já nos aproximamos das mil mortes, e os números crescem de forma vertiginosa dia após dia. A postura de Bolsonaro tem provocado o seu isolamento institucional e realinhamentos políticos. Na realidade popular, florescem relevantes campanhas de solidariedade e união comunitária.

A primeira morte confirmada no estado Rio de Janeiro, no dia 17 de março, entre as primeiras do Brasil, foi uma ilustração cruel do que estava por vir. Empregada doméstica, a trabalhadora de 63 anos contraiu o vírus de sua patroa, que veio infectada da Europa. Faleceu sem sequer saber o diagnóstico da doença. A patroa, que mora em um dos metros quadrados mais caros do país, voltou da Itália com suspeita de estar contaminada e agora passa bem. Desmistificando a ilusão de que seria uma doença “democrática”, o caso mostra como a contaminação pode acontecer com qualquer um, mas as possibilidades de tratamento, e prevenção, são muito distintas.

Diante da chegada do coronavírus no Brasil, rapidamente o debate público se voltou para as medidas de contenção da doença. Bolsonaro manteve uma postura incerta inicialmente, mas é possível notar uma clivagem no seu discurso desde o dia 24 de março. Na ocasião, em pronunciamento nacional, afirmou querer conter o “pânico” e a “histeria” e que a doença seria similar a “uma gripezinha ou um resfriadinho”. A postura foi divulgada por seu grupo político com uma suposta correspondência ao posicionamento dos EUA de não aderir à quarentena. No entanto, dias depois, em 29 de março, Trump assumiu a necessidade do isolamento diante das mortes massivas, com forte expressão em Nova Iorque. Por sua vez, Bolsonaro vem mantendo a tônica de subestimar a doença.

Vale ressaltar que a postura de subserviência de Bolsonaro com relação aos EUA é uma marca de sua gestão. A recíproca, entretanto, não acontece. Além disso, apesar do histórico apego dos nossos governantes à política norteamericana, é importante constatar, como lembram ao presidente seus aliados militares e do agronegócio, que atualmente a China é o principal parceiro comercial nacional. Desde 2009, o país tomou a posição dos EUA, se firmando como liderança no comércio com o Brasil, que lhe fornece sobretudo minérios, petróleo e produtos agrícolas.

Assim, com apoio de alguns empresários, o governo adotou uma linha de opor a saúde ao trabalho, com uma suposta defesa dos mais precarizados, que perderiam seus rendimentos se parassem de trabalhar. O discurso camufla, entretanto, uma postura genocida, que naturaliza a possibilidade da morte de milhares de pessoas em prol de não parar de girar a roda do mercado. Em sua afirmação de que o brasileiro seria imune a doenças, que “mergulha no esgoto e nada acontece”, Bolsonaro revelou quais vidas está disposto a sacrificar – afirmando como “resistentes” justamente aqueles que não têm acesso a saneamento e outros direitos fundamentais. Reforça a lógica elitista e racista que nos governa desde a colônia, reiterando quem pode morrer e para quem as elites governam.

A postura de Bolsonaro tem provocado um isolamento profundo de sua figura na política institucional. Diante disso, ele se volta à reafirmação de sua base mais conservadora, como a do fundamentalismo religioso, enquanto enfrenta uma série de conflitos na gestão federal. Militares de seu governo têm realizado reuniões sistemáticas sem sua presença, conforme cobertura da mídia. Além disso, os parlamentares, governadores e prefeitos têm assumido o discurso e parte das ações, ainda muito insuficientes, de enfrentamento à pandemia. Essa crise torna exposta, portanto, uma contradição fundamental do capitalismo, que finge se basear numa democracia representativa, onde em nosso país o presidente seria a posição máxima eleita, mas na verdade é formada por uma série de alianças de elites em distintas posições.

E apesar do Congresso e de governantes locais afirmarem a gravidade da situação, cedendo a algumas pressões das lutas sociais, vemos o fortalecimento da lógica do “cada um por si” na pandemia, de forma a contrariar ao mínimo os interesses econômicos dominantes. Assim, os governadores dos dois principais estados do país, São Paulo e Rio de Janeiro, têm se posicionado em ferrenha oposição à postura de Bolsonaro, mas pouco garantem para que a população possa efetivamente realizar a quarentena.

Afinal, contamos com um número muito alto de desempregados e um crescimento cada vez maior da informalidade. O ano de 2019 fechou com a taxa de desemprego em 11%, atingindo 11,6 milhões de pessoas. O governo Bolsonaro trabalha com os dados afirmando que teriam ocorrido avanços na situação do desemprego no último período. Na realidade, o que ocorre é que além daqueles que desistem de procurar emprego, vivemos um recorde de pessoas sem vínculos formais. A taxa de informalidade (soma dos trabalhadores sem registro e/ou empregadores sem registro) ficou em 41,1% da população ocupada em 2019. Ou seja, a cada 10 trabalhadores no país, 4 se encontram na informalidade, fora os desempregados. Esse número equivale a 38,4 milhões de pessoas, o maior já registrado. Dentro desse grupo, o número de trabalhadores por conta própria também atingiu o maior nível da série, com 24,2 milhões. A isso se soma o número brutal de pessoas endividadas, com estimativa de 65% de brasileiros nessa condição.

A situação da maioria no país é, portanto, de desemprego ou informalidade. Isso se agrava ainda mais com a falta de acesso a direitos básicos e o endividamento. É bastante ilustrativa, por exemplo, a falta de água nas favelas e periferias do país em plena crise do coronavírus. Ademais, as operações policiais seguem a todo vapor nas favelas e periferias do Rio de Janeiro, atrás apenas de São Paulo na disseminação da doença, demonstrando que vidas estão sendo protegidas e quem pode morrer.

Os governantes também têm aproveitado a crise para impor ações de seus interesses, existentes antes da situação atual. É o caso da ameaça da privatização de empresas públicas, como a de fornecimento de água no estado do Rio de Janeiro, projeto anterior e que agora surge como uma salvação para o problema econômico gerado pela pandemia. Além disso, o uso de plataformas para educação remota de alunos da rede pública vem sendo um intenso debate entre educadores. Entre outros elementos, existem tentativas de usar as plataformas do Google para o ensino, no lugar de outros instrumentos virtuais. Assim, grandes empresas de comunicação que usam massivamente nossos dados vêm tendo oportunidades de crescimento nesse processo.

O coronavírus e a inércia dos governantes em viabilizar meios efetivos para a população lidar com os problemas de saúde e econômicos decorrentes do isolamento está gerando uma série de consequência. Um dos elementos que merece destaque é a multiplicação de campanhas de solidariedade. Isso revela uma solidariedade de classe e capacidade de ação comum em projetos comunitários que são fundamentais para pensar alternativas sistêmicas. No entanto, é importante encarar a necessidade de aprofundar essas ações em associação à disputa das políticas públicas. A recente renda emergencial de R$600 para trabalhadores informais foi uma importante vitória nesse sentido, mas ainda muito insuficiente. O valor é quase metade de um salário mínimo (R$ 1.045), que já é rebaixado.

A pandemia é um profundo desafio para a nossa geração. A velocidade das proporções alcançadas globalmente é inédita, e atores de diferentes posições se movem em torno do problema, cada um de acordo com sua perspectiva. No caso daqueles que se guiam pelo combate às formas de exploração e opressão, questões de grande fôlego se renovam nesta crise. Afinal, a contenção efetiva da doença significaria mexer no bolso dos donos do poder, em torno do que existe a resistência dessas mesmas elites e soluções que não resolvem o problema da maioria. A questão de quais vidas estão sendo resguardadas e quem está sendo sacrificado é colocada, portanto, na pauta do dia. Além disso, resta ainda reflexões do mundo que queremos construir. A forma de produção do capitalismo, que cria grandes aglomerações urbanas cuja maioria da população se encontra em enormes restrições de direitos, é uma combinação explosiva. Mais uma vez, portanto, estamos diante de uma crise que se aprofunda diante das próprias contradições desse sistema.

 

*Texto publicado originalmente na revista Zurdo, do Peru, em português e em espanhol.