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MUNDO

A luta de classes no Haiti exige a saída do presidente Moïse

Gabriel Santos, de Maceió (AL)

Protesto em junho no Haiti

Existe algo de novo no front. O coração dos ativistas do mundo batem mais rápidos nestas últimas semanas. Aqueles que sonham e trabalham por uma sociedade diferente da barbárie neoliberal têm novamente motivos para sorrir, mesmo que vários destes confrontos ainda não estejam definidos. Nos quatro cantos do globo as massas se levantam. Revoltas populares, rebeliões, revoluções. O povo em luta contra o FMI e o neoliberalismo. Em Quito, Santiago, Barcelona, Bagdá, Tripoli, Argel, Cartum, as mesmas imagens: barricadas gigantescas, protestos na casa das centenas de milhares, policiais e manifestantes em confronto. Marx sempre teve razão. Caso o nosso querido alemão pudesse falar algo para os que diziam que a história havia chegado ao fim, com certeza o mouro olharia nos olhos destes e diria: É a luta de classes, estúpido! 

Porém, existe um lugar do mundo em que esses “novos ventos” de resistência e luta que sopram atualmente, já se faziam presentes há um bom tempo. Um lugar aparentemente esquecido pela mídia ocidental, mas também por grande parte da esquerda. As ruas de Porto Príncipe, capital do Haiti, fervem há semanas. 

Estes protestos atuais que se iniciaram em setembro têm total ligação com os que ocorreram no fim do ano passado e no início deste ano. As pautas são praticamente as mesmas: a luta por mais serviços públicos, o repúdio ao aumento do preço da gasolina e ao plano de ajuste do FMI, e o pedido de renúncia do presidente Jovenel Moïse.

No fim de maio, o Senado do país recebeu do Tribunal Superior de Contas uma auditoria com 600 páginas sobre o programa Petro-Caribe. Daí em diante a corrupção feita pelo governo e a elite local foi escancarada. O roubo de fundos por parte do próprio Moïse chegava à casa dos bilhões de dólares, que deveriam ter sido gastos em programas sociais e de infraestrutura.

A revolução bolivariana e o Haiti, um exemplo de solidariedade internacional

A Aliança Petro-Caribe foi uma rica experiência de solidariedade internacional e exportação de capital entre os povos latino-americanos. A iniciativa teve início com Hugo Chávez em 2005, numa parceria da Venezuela com 17 nações do Caribe e América Central, onde o país da Revolução Bolivariana fornecia produtos petrolíferos baratos e ótimas condições de crédito aos países membros, justamente no momento que o petróleo estava sendo vendido a mais de 100 dólares o barril.

A entrada do Haiti no acordo Petro-Caribe se deu no dia da posse do ex-presidente René Préval, quando este, para desgosto dos Estados Unidos, assinou o tratado em maio de 2006. Após o terremoto de 12 de janeiro de 2010, uma ofensiva norte-americana mudou os rumos da política haitiana. Em um acordo entre a elite local, Bill Clinton, então chefe da Comissão Interina de Recuperação do Haiti, do Pentágono, Barack Obama e a ONU, por meio da MINUSTAH, dirigida na época por Edmond Mulet, tiraram aquele que seria o candidato de Préval a presidência. Jude Celestin era o favorito a assumir o cargo, mas teve seu nome proibido de constar nas cédulas de votação. Foi o preço que o imperialismo cobrou de Préval por ele ter feito um acordo com a Venezuela. A presidência do país é assumida por um fantoche de Washington, o comediante Michel Martelly.

Nos anos que seguiram a seu governo, Martelly desviou e mal utilizou o dinheiro vindo do Petro-Caribe. Este projeto era fundamental para o desenvolvimento econômico do país, em especial na construção de escolas, obras de saneamento básico e estradas.

Quando Jovenel Moïse chega ao poder, em fevereiro de 2017, o Haiti já estava em atraso com o pagamento do projeto Petro-Caribe. Porém, Moïse estava alinhado com a linha anticomunista e conservadora do governo Trump. O Haiti votou inclusive com os Estados Unidos na ONU taxando o governo de Nicolás Maduro como ilegítimo. Com o alinhamento total de Porto Príncipe com a Casa Branca, e com as sanções americanas aplicadas contra Caracas, as contas do Petro-Caribe deixaram de ser pagas por definitivo e o acordo foi suspenso em 2017.

A situação no Haiti piorou de vez para a juventude e para a classe trabalhadora. Sem o acordo com a Venezuela, o país teve que se curvar de vez para o Fundo Monetário Internacional (FMI) e recorrer às empresas de petróleo estadunidenses, pagando um preço muito mais caro pelo petróleo, e contraindo uma dívida estimada em 130 milhões de dólares. Com a crise dos combustíveis e de energia, escolas foram fechadas, hospitais mal funcionavam, os alimentos se tornavam cada vez mais escassos nas prateleiras, e os apagões se tornaram parte do cotidiano da população.

Em 6 de julho de 2018 o governo de Moïse anunciava um pacote de medidas do FMI que indicavam um aumento no preço de gás e dos combustíveis, e assim dava início a uma gigantesca e heroica revolta popular que durou meses.

Entender o que acontece no Haiti hoje, só é possível entendendo o que significou para o país a Aliança do Petro-Caribe. As massas revoltosas começaram a questionar o que havia acontecido com os 4.3 bilhões de dólares que vieram de Caracas, como receitas de petróleo, que o país recebeu no decorrer da década. Os gritos de “Kot kòb Petro-Caribe a?” (Onde está o dinheiro do Petro-Caribe?) eram ouvidos em todos os bairros populares do país. Uma investigação do Senado confirmou que mais de dois bilhões de dólares foi desviado para o bolso de membros do governo, apoiado pelos Estados Unidos e ONU, e para membros da elite haitiana.

Um ano depois dos primeiros protestos, que são a origem dos atuais, pouca coisa mudou no país, e se mudou foi pra pior.  O desemprego gira em torno dos 70%, a inflação chegou à casa das duas dezenas com 21%. Regiões da pequena ilha sofrem com uma seca que o governo não apresenta programas de políticas públicas para lidar, e a escassez de água atinge milhões.

Diante disso as massas foram novamente às ruas. Protestos massivos com centenas de milhares de pessoas tomaram conta de Porto Príncipe, a violência policial já deixou dezenas de mortos, as barricadas continuam surgindo e fazendo parte do cotidiano urbano, as greves se multiplicam assim como o legítimo ódio de classe do povo pobre e trabalhador do país, que exige a imediata saída de Moïse. 

Se há 33 anos, o povo haitiano fez com que o ditador Duvalier fugisse do país em um avião de caça das Forças Aérea dos EUA para a França, hoje, a profundidade e força do movimento revolucionária haitiano é capaz de fazer o mesmo ou ir além.

A luta se intensifica e se radicaliza

As massas no Haiti estão em luta há um ano contra o governo e o poder estatal. Milhões apoiam os protestos, centenas de milhares se colocam em luta pela renúncia de Moïse. A situação do Haiti com greves e manifestações insurrecionais está muito mais avançada que em outros países. Porém, se essa luta vai ser vitoriosa ou não, depende de sua própria dinâmica, não tem como definirmos por antecipação.

Um acontecimento no início de outubro em Cité Soleil comprova a radicalização das massas. O bairro é um dos mais pobres do mundo, e lá é o centro das ações das massas da capital. A polícia foi expulsa do local sendo proibida de entrar na região, foi desarmada e teve suas armas confiscadas. O bairro passou a criar assembleias e se auto organizar para decidir as ações a serem tomadas. 

O oposto, sobre a divisão no andar de cima, pode ser visto através do papel que a Igreja Católica tem tido nos protestos.  A Confederação de Bispos do Haiti lançou uma nota se colocando ao lado do povo em insurreição. No texto os bispos dizem: “Existe uma violência mais pesada do que viver com a insegurança? O que há de pior do que a pobreza extrema que exterminar toda e qualquer esperança? Nenhum povo deve aceitar a miséria, pobreza e a violência calados. Não é o momento de dizer que todos somos culpados pela situação. Essa não é a verdade. Nem de dizer que condenamos genericamente toda e qualquer violência, ela tem uma origem. (…) Enquanto isso, alguns setores da sociedade se tornam cada vez mais ricos, às custas dos pobres que não podem alimentar-se ou pagar escola de seus filhos. A classe dirigente do país é surda ao clamor do povo. Deus nos criou para a vida. Por isso, temos o direito de existir e viver com dignidade.”

Setores da elite haitiana também trabalham com a hipóteses de substituir o governo de Moïse. Ou seja, a elite se encontra confusa, sem saber o que fazer.

O imperialismo, a elite haitiana e os rumos do país

Um importante fator na política da ilha caribenha é o imperialismo, em especial a França, o Canadá e os Estados Unidos, que no passado interviam direta e militarmente no país para garantir seus interesses. Nos últimos 15 anos tentaram exercer seu controle através da força de ocupação da ONU, com apoio direto do Brasil governado pelo PT.

Diante da situação política haitiana atual, uma nova intervenção militar direta do imperialismo norte-americano parece menos improvável. Um acordo político entre estes países por meio da ONU e mecanismos internacionais com a elite haitiana é uma hipótese considerável.

Outra possibilidade que a elite haitiana trabalha com apoio do governo Trump é na possibilidade de Nicholas Duvalier, filho do ditador Jean-Claude Duvalier, assumir o país após a queda de Moïse, por meio de um acordo apoiado pelos mecanismos internacionais. O jornal The Guardian fez uma excelente matéria na qual mostra que Nicholas esteve em Miami com empresários haitianos em busca de apoio.

E agora, aonde vai o Haiti?

A situação no Haiti é inconclusa, instável e incerta. Porém, cada vez mais aos olhos das massas, a elite do país tem se mostrado incapaz de liderar os rumos da nação e resolver os problemas do desemprego e da pobreza.

É sabido que os setores da elite de oposição a Moïse tentam usar o protesto como trampolim para conquistarem seus objetivos. Mas caso os trabalhadores e o povo haitiano consiga derrubar o presidente será um tremendo avanço e uma vitória popular. Mas somente isso não ira levar o povo haitiano a solução dos problemas, e as massas sabem disso.

Para a infelicidade da elite, as massas aprendem quando entram em movimento, e as greves e atos não podem ser interrompidos de uma hora para outra sem que uma derrota ou uma feroz repressão ocorra. Caso um governo de coalizão assuma, sem atender as principais reivindicações das massas, há a possibilidade de que as manifestações se intensifiquem.

A derrubada de MoÏse pode ser somente o início da Revolução no Haiti, não seu fim. Um novo governo terá muito mais dificuldade para governar, se não conseguir resolver as necessidades do povo, como a crise econômica, a escassez de alimentos, a corrupção, o desemprego e a pobreza, o próprio povo precisa tomar o Poder em suas mãos. E essa questão é algo que somente a dinâmica da luta, dos protestos e das manifestações poderá dizer se vai ocorrer ou não.

As greves se tornam cada vez mais massivas e mais frequentes, métodos classistas passam a ser utilizados contra a patronal e a elite. Com a ausência de uma liderança nos protestos de massas, o movimento passa por avanços e retrocessos. Por diversas ocasiões parecia que o governo iria ser derrubado, porém, o golpe final ainda não veio. Moïse conseguiu evitar sua queda, o movimento em momentos chave se enfraqueceu. 

Os protestos deste último mês estão mais fortes do que o iniciado há um ano. Cabe ver quais os rumos que vai tomar, se surgirá um movimento operário que dirija as ações, se os protestos manterão seu caráter espontâneo, ou se será ganho por setores burgueses. Essas perguntas somente à luta de classes podem responder. Hoje por hoje podemos dizer que existe um povo insubmisso que luta contra os pacotes do FMI e do imperialismo, que se revolta e que a luta de classes está mais viva do que nunca.

Aqui no Brasil cabe a nós aprender com o que ocorre neste país. Com o exemplo de luta haitiano, e com os limites do processo. Devemos cobrir de solidariedade a luta desse povo e denunciar qualquer intervenção estrangeira no local.

Viva a luta do povo haitiano! Viva a solidariedade entre os povos da América Latina e Caribe!

Fora Moïse! Não a intervenção imperialista! 

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