“Eu tenho falado que, no que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena”.
“Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles”
Trechos de entrevistas de Jair Bolsonaro em meio ao período de campanha à Presidência da República.
Como previsto, os discursos de campanha do atual Presidente da República estão, muito rapidamente, materializando-se em políticas de governo. No campo, as políticas de reforma agrária, quilombola e indígena passaram a integrar o Ministério da Agricultura (MAPA) e estão sob a ingerência dos ruralistas. Este é o atual quadro orçamentário do mesmo, com especial destaque para os territórios quilombolas e indígenas:
Manifestações de membros do governo apontam que a situação pode ser ainda pior ao afirmarem que o reconhecimento estatal de territórios indígenas e quilombolas no país deverá passar não mais por um órgão ou autarquia, e sim por um conselho de ministros[1].
Recentemente, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e algumas organizações sociais brasileiras de defesa dos territórios quilombolas no Brasil encaminharam uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) acerca do atual quadro de inércia em relação às titulações de territórios, violência no campo e desmonte da já frágil política estatal para a área.
No documento, foi realizada uma projeção acerca da continuidade das titulações no ritmo atual do Estado brasileiro e concluiu-se que a projeção para o término seria de mais de 600 anos. Assim, os caminhos institucionais propostos pela nossa classe dominante para pôr termo à questão quilombola parecem se inspirar, em termos de duração, nas leis imperiais da segunda metade do século XIX que objetivavam a eliminação “gradual” da escravidão. No documento de denúncia, recentemente produzido, observa-se que:
“É de conhecimento desta E. Comissão que o Estado brasileiro não tem adotado as medidas necessárias para titular os territórios tradicionais das comunidades quilombolas em prazo razoável. Essa situação, que redunda em graves violações de direitos humanos, tem se agravado desde a última comunicação enviada a esta Comissão, em junho de 2017. Se no ano passado se estimava ser necessário mais de seiscentos anos para titular as terras de todos os quilombos existentes no Brasil, agora não há dúvidas de que esse lapso temporal aumentará significativamente.”
O quadro aponta para o desmonte completo da política estatal de reconhecimento e titulação quilombola no Brasil, política já frágil, estruturada a partir do Decreto 4.887/2003 de autoria do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Tal decreto não durou um ano sem questionamento, tendo sido – por cerca de 14 anos – objeto de disputa acerca de sua constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF).
Importante destacar que tal política, mais de cem anos após a abolição da escravatura, não conquistou sua regulamentação na forma de uma lei com tramitação regular no parlamento, de modo que a forma de regulamentação do Decreto pode ser facilmente atacada de acordo com os ânimos do governo de plantão, justamente o que se observa no cenário atual.
Infelizmente, pode-se afirmar que, a julgar pelo atual cenário, podemos estar diante do início do fim (“ou é o fim?”) dessas políticas no âmbito estatal, e, por conseguinte, ainda mais longe do fim da concentração racial e social de terras no país e da insólita contradição de uma nação que exporta soja e mantém faminto seu povo. Justamente por isso, não será o fim – mas apenas o início – da agudização de violentas lutas de classes no campo brasileiro. Nesse sentido, convém alertar que, de modo algum, a derrota das lutas populares nos espaços instituídos de poder, nas arenas estatais do conflito, significa, absolutamente, o fim do próprio conflito e, portanto, da resistência. Igualmente, a derrota de quilombolas, indígenas, trabalhadores, mulheres, camponeses na última instância do Poder Judiciário também não significa a sua derrota plena e, por isso, o fim imediato dos seus direitos cruentamente conquistados. É preciso retomar e fortalecer os espaços de resistência autônomos, ocupar as ruas e disputar o debate público. Agora é luta!
NOTAS
[1] Artigo do Instituto Sócio Ambiental. Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/o-que-muda-ou-sobra-para-os-indios-com-a-reforma-de-bolsonaro. Acessado em 12/04/2019.
*Aline Caldeira Lopes é membro do Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola, mestre em Ciências Sociais (CPDA/UFRJ) e doutora em Teoria do Estado e Direito Constitucional (PUC-Rio).
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