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BRASIL

A abolição e a necessidade de uma história de liberdade

Gabriel Santos*, de Maceió, AL
projeto memoria

Rio de Janeiro, 13 de maio de 1888. Multidão concentrada no Paço Imperial para assinatura da lei Áurea

13 de Maio é uma data histórica para nosso país. Como toda data que passa a ser considerada como tal, ela é recheada de simbolismos e disputas sobre seu significado. Normalmente uma data histórica se torna assim, por ter algo nela que se mistura e entrelaça com a caminhada de determinado país ou povo.

A história é um espaço de disputa. De choque de narrativas e de releituras. As datas que ocorrem não ficam fixas em calendários, elas acompanham as mudanças dos anos e têm seus significados modificados a depender do espírito que um povo tem sobre elas.

O Brasil foi o último lugar das Américas a abolir a escravidão. Foi também aquele que recebeu maior número de escravizados. Na linha do tempo de nosso país, temos mais séculos de utilização da mão de obra escravizada do que de trabalho livre. Foram mais anos de pessoas negras sendo obrigadas a trabalhar por meio da força, do que de pessoas trabalhando em troca de um salário.

Quando a Lei Áurea foi assinada, ela se tornava automaticamente a lei mais popular do Império. Isabel não sabia ainda, mas também seria a última deste. A Lei foi saudada por negros que estavam escravizados, por negros que estavam livres, por brancos liberais, e pelo movimento abolicionista. Um ano e meio depois, o Império terminava. Ele postergou o máximo possível o fim do regime escravocrata, e com isso desenhava seu próprio final. O Brasil precisava se modernizar, ainda que esse processo fosse feito sem o povo e restrito aos andares de cima de nossa elite branca e das casernas militares.

É nesse processo de modernização conservadora que a Lei Áurea se insere. Um processo contraditório. Ao mesmo tempo que ele garante a liberdade jurídica para todas pessoas negras, pondo fim oficialmente a um dos períodos mais bárbaros da breve pré-história da humanidade, ela foi inconclusa e limitada. A assinatura de Princesa Isabel vem depois, e antes, de uma série de leis que prendiam pessoas negras a novas correntes.

Um exemplo dessas leis é a famosa Lei de Terras, de 1850. Ela tinha o único objetivo de dificultar ao extremo o acesso à terra pela população negra liberta. Garantindo que a terra continuasse na mão de latifundiários brancos, e que geração após geração, os filhos e netos desses senhores de escravos continuassem exercendo o poder econômico e político.

A abolição trouxe a liberdade da gaiola, mas arrancou também parte de nossas asas, para que não pudéssemos voar.

A invenção do Brasil 

Nosso país foi bem definido pelo sociólogo Chico Oliveira como um ornitorrinco. Por aqui, nem tudo que é, realmente é. Elas são e não são. Em nossas terras, as regras do espaço-tempo não são seguidas. Por aqui as datas dos calendários mais enganam do que ajudam, elas não marcam nada. Os ponteiros de um relógio suíço tampouco são úteis.

O Brasil surge para o mundo muito antes dele nascer para si próprio como país, por meio da Proclamação da Independência. É inclusive fora de suas fronteiras terrestres que ele nasce. Sua certidão aponta para o imenso Atlântico tendo as embarcações de navios negreiros como local do parto. É a escravidão que liga América, Europa e África e possibilita assim o nascimento do Brasil.

Uma outra particularidade nossa enquanto país, é o fato de os brasileiros surgirem fora de nossa fronteira. Podemos dizer, inclusive, que o brasileiro nasce antes do próprio Brasil.

É na África que a expressão “brasileiro” se torna popular pela primeira vez. Para distinguir dos comerciantes de escravizados portugueses, daqueles que passavam a ter seus próprios negócios nestas terras, o termo brasileiro passa a ser utilizado e se consolida. E assim nascemos para o mundo. Antes de Pelé em 1958 chapelar um sueco e marcar para a seleção na final da Copa. Antes de Senna pôr a bandeira verde amarela para fora de seu carro ao cruzar a linha de chegada. Antes de João Gilberto regravar “Chega de Saudade”… A identidade brasileira surge no balanço das águas que repousam sobre o Atlântico e por meio do comércio de seres humanos, através da violência e derramamento de sangue.

Essas duas especificidades de nosso país: a primeira sendo a modernização conservadora, e a segunda que podemos chamar de encruzilhada brasileira, que é o fato da linha temporal por estes trópicos não ser reta. Juntam-se entre si e existem por um terceiro fator, que é a mão de obra de negros escravizados. Por isso, estes três temas devem ser mesclados quando falamos sobre a história e datas oficiais.

A invenção da história 

Uma particularidade da história é que ela passa a ser contada por aqueles que não estiveram nela. Isto permite que ela seja vista, revista, criticada e interpretada. A história é também um instrumento de poder. Uma história oficial pode incluir ou excluir grupos sociais a depender da proximidade que estes grupos têm da capacidade de exercer poder sobre os outros. Assim como pode incluir ou excluir fatos, para apagar ou inflar determinadas ações.

No Brasil a história oficial é, antes de tudo, uma invenção. Nossas datas nacionais, nossos heróis, tudo isto foi uma invenção daqueles que fizeram o Brasil nascer, ou seja, de nossas elites brancas, junto da elite europeia.

Dizer que foi uma invenção não significa dizer que os acontecimentos que as datas marcam não existiram. Eles foram reais. A abolição do dia 13 de Maio realmente libertou por meios jurídicos a parcela de negros que ainda era mantida sob o regime escravista tardio. Mesmo que essa parcela fosse pequena naquele momento.

O grande truque dessas datas inventadas é que elas apagam a concepção de história como um processo. Se esquece o que veio antes, não se interessa pelo que veio depois. Assim como apaga sujeitos que não merecem entrar na história oficial. O povo não existe, na história oficial da Independência, da Proclamação da República e muito menos na Abolição. E a história oficial é inventada justamente para que o povo não exista.

A invenção da liberdade 

A abolição não se deu por uma simples assinatura. A abolição é fruto de revoltas e rebeliões. A Lei Áurea se inscreveu em nossa história e apagou diversos nomes e eventos como a Revolta dos Búzios, Os Malês, Palmares, Balaiada, entre outros. O registro de Isabel se deu por cima de nomes como Zumbi, Dandara, Negro Cosme, Luiza Mahin, e tantos que tiveram suas vidas tiradas pela elite brasileira na luta pela liberdade.

Existiram várias formas de enfrentar o poder do senhor, como tacar fogo no canavial, fuga para quilombos, suicídio, infanticídio, envenenamento dos senhores de engenho… Desde o momento que o Brasil nasce por meio do tráfico negreiro que cruzava o Atlântico, nascia também uma história não oficial, que é constantemente apagada, que é a história da luta pela liberdade.

Até hoje, a desinformação sobre o período do uso da mão de obra escravizada é grande. Livros como Casa Grande e Senzala se inscreveram como grandes literaturas para explicar o país. Um país inventado, obviamente. Uma suposta convivência harmônica que daria uma abolição também harmônica, geraria um país ideal, um paraíso das raças.

No mundo real, um ano depois da abolição, teorias racistas baseadas em métodos pseudocientíficos, que buscava apontar o negro como biologicamente inferior, começaram a ganhar voz. Ideologias que afirmavam que para o Brasil se desenvolver como país a presença de sujeito de pele preta precisava ser diminuída cada vez mais. Dessa forma, embranquecer física e culturalmente o país tornou-se a grande obsessão nacional. A presença negra precisa ser apagada, e a imigração europeia precisa ser incentivada. Os negros estavam libertos, mas estavam abandonados e marginalizados. Não tinham direito à terra, não tinham direito à educação, não tinham direito ao voto, não podiam ir e vir livremente pelas cidades.

Hoje a realidade do negro é a seguinte: A cada 23 minutos um jovem negro vai ser assassinado. Jovens negros comentem três vezes mais suicídios do que jovens brancos. A renda per capita da média da população branca é mais que o dobro da renda da população negra: são R$ 1.097,00 para brancos contra R$ 508,90 para negros. Somos quase 70% do sistema prisional. Segundo o índice de Desenvolvimento Humano Municipal, que leva em conta renda, saúde e educação, os negros no Brasil têm dez anos de atraso quando comparados aos brancos.

No parlamento, neste 12 de maio, o senador Eder Mauro (PA) gritava que deseja que a polícia mate mais gente negra, como fez na chacina de Jacarezinho, pois ali só haviam bandidos. E, no passado, o senador João Mauricio Wanderley o Barão de Cotegipe, esbravejava contra a abolição afirmando que “neste país não há mais propriedade, que tudo pode ser destruído por meio de uma lei, sem atenção a inconvenientes futuros!”.

A Lei Áurea faz parte desta encruzilhada nacional, onde aquilo é e também não é. Ela é duas coisas ao mesmo tempo. Ela faz parte da história não oficial, aquela da luta por liberdade, mas é também parte do processo de nosso aprisionamento.

Uma história de liberdade 

Se hoje a população negra está no fim, é justamente porque no início da invenção do Brasil, nós também estávamos nesse lugar. Um ditado yoruba fala “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”. Este ensinamento tem muito a ver com o momento que vivemos hoje.

Não é coincidência que em um dia 13 de Maio aconteçam mais de 60 cidades com atos por todo o país contra o genocídio do povo negro e denunciando mais um massacre do Estado brasileiro. É fruto de nossa história. De nossa abolição inconclusa, do nascimento de nosso país a partir do tráfico de corpos negros, e da história de luta por liberdade que continua a ser escrita.

Para sairmos da posição que estávamos no início, é preciso ver que nós nunca aceitamos esta posição. Nos forçam a ela, mas constantemente a rejeitamos.

Se a história oficial nos apaga, precisamos reafirmar a nossa história marginal. Dos Quilombos, das revoltas, das Rodas de Samba e Clubes Negros. Enquanto a história oficial nos empurra heróis, nós construímos os nossos no cotidiano. A maioria deles anônimos.

O big bang brasileiro gera dois Brasis, que se repelem e brigam entre si. Um deles já nasce morto, pois é através da morte que ele nasce e segue como um zumbi ao longo dos anos. Esse país, um Brazil com Z, oferece ao outro Brasil apenas a morte como opção, morrer de fome, de covid, ou de bala. Morrer disso ou daquilo… Morrer.

Da história oficial e do Brazil inventado, desse Brazil com Z, nada pode nos ser útil. Nós temos nossa história e nosso Brasil. Um Brasil que luta por uma liberdade que não veio por decreto e que ainda estamos a conquistar.

Um Brasil que joga uma pedra hoje para podermos quebrar as correntes que nos prenderam no passado.

*Gabriel Santos é educador popular em Maceió (AL) e ativista do Afronte!