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O desejo no lugar da realidade: Quando o ultraesquerdismo brasileiro se transformou em oportunismo

Queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989

Queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

“Ou é o começo do fim, ou é o fim”
(Vital Farias)

Querendo ou não os teóricos do ultraesquerdismo, as décadas que se seguiram à queda do Leste Europeu e da União Soviética entrarão para a história (numa perspectiva marxista, é claro) como um período de inúmeras derrotas para a classe trabalhadora internacional. Evidentemente, todos os revolucionários, em particular os trotskistas, desejavam que a derrota da burocracia estalinista contrarrevolucionária ocorresse por meio de revoluções políticas dirigidas pelos marxistas, e que estas possibilitassem, de imediato, o avanço da revolução socialista internacional. Freud, porém, já alertou que nossos desejos e a realidade não são propriamente a mesma coisa, embora muitas vezes se confundam para o sujeito. A vitória que significou a derrubada dos monstruosos aparelhos estalinistas se deu acompanhada do fim dos chamados “Estados Operários (burocraticamente degenerados)” e de suas conquistas sociais ainda existentes – tentar dissociar os dois eventos, alocando um antes do outro, não é senão um artifício historiográfico puramente ideológico.

O fato histórico real é que, com a queda do dito “socialismo real”, os revolucionários não tomaram o poder e a propriedade privada foi restaurada. Se incluirmos China, Cuba e Vietnã ao lado de Alemanha Oriental, Tchecoslováquia, Polônia, Bulgária, Romênia, Albânia, Iugoslávia, Hungria e da própria Rússia, pode-se dizer que a burguesia retomou diretamente sua dominação sobre enorme parcela da população mundial. Terá sido isso, a restauração capitalista por completo, uma grande vitória do proletariado mundial? Impossível responder positivamente a esta questão, salvo em caso de delírios febris.

Se o que se verificou nos países do antigo “socialismo real” foi, portanto, um retrocesso social sem tamanho (desemprego, pobreza, prostituição, surgimento de sistemas políticos mafiosos etc.), à escala mundial se observou um avanço da reestruturação produtiva, da precarização e da exploração do trabalho, do desemprego, do neoliberalismo, da retirada de direitos, das contrarreformas, das privatizações, do enfraquecimento dos sindicatos, além, claro, de toda a campanha ideológica (vitoriosa) do capital baseada no insidioso aforismo de que o socialismo havia morrido, e de que o capitalismo, em sua faceta neoliberal, representaria a única forma de organização social da espécie humana.

No entanto, a adoção da ideia de que, desde a queda do Leste e da União Soviética, “vivemos em uma etapa revolucionária” levou e vem levando, no Brasil, determinados agrupamentos ultraesquerdistas a um brutal impressionismo no que diz respeito às resistências populares (supervalorizando-as) e, com isso, a tremendos erros políticos. Para tais agrupamentos, que tomam uma suposta “IV etapa” como um axioma matemático, um pressuposto dogmático, a situação brasileira nas últimas décadas é quase sempre classificada como pré-revolucionária (“em transição para revolucionária”), e o regime político é sempre visto como estando em crise (uma espécie de “crise de regime permanente” naquela que talvez seja a democracia liberal mais estável da América Latina desde o fim das ditaduras militares no continente).

Trotsky já disse, certa feita, que “o papel aguenta tudo, mas a história não”. Agora ela vem cobrar seu preço, e a decadência de tais agrupamentos hoje é indisfarçável. Caso estes grupos, nos quais a presença de lutadores honestos e valorosos é inegável, continuem a olhar para a realidade e procurar nela os elementos de uma revolução em curso acelerado, terão o mesmo êxito daqueles intrépidos aventureiros que dedicaram suas vidas à descoberta do Eldorado na América colonial.

No Brasil recente, a defesa do “Chega de Dilma!” foi um divisor de águas na história da esquerda socialista. Alguns ousaram cruzar o rubicão, e não foram poucos. Correntes com importantes trajetórias nas lutas da classe trabalhadora brasileira, inclinadas de vez ao ultraesquerdismo, lançaram mão de uma palavra de ordem que não era senão uma variação dos lemas empunhados pelas massivas manifestações de direita (“Fora Dilma!”, “Basta de Dilma!”, “Fora PT!”, “Impeachment!” etc.), até que, finalmente, aderiram a tais lemas. Ocorre que, na interpretação das direções daquelas correntes, as manifestações reacionárias iniciadas no dia 15 de março de 2015 não teriam sido propriamente manifestações de direita, mas apenas “dirigidas pela direita”. Por expressarem uma rejeição ao governo petista, as manifestações em questão – que tiveram algumas das reivindicações mais reacionárias das últimas décadas no país – teriam sido, segundo os intérpretes ultraesquerdistas, “objetivamente progressivas”.

Qualquer marxista sabe – ou deveria saber – que é sempre necessário distinguir, de forma dialética, as mobilizações de massa das suas direções políticas. Distingui-las, entretanto, não significa opô-las de modo antitético. As condições objetivas e subjetivas não podem ser tomadas como instâncias separadas, estanques, sem conexão. Como já apontamos em outra oportunidade, as manifestações multitudinárias anteriores, as Jornadas de Junho de 2013, haviam sido “objetivamente progressivas”, na medida em que foram movidas contra os efeitos nocivos das contrarreformas neoliberais das últimas décadas e, por isso, exigiam “Mais Saúde”, “Mais Educação”, “Tarifa Zero” etc. Subjetivamente, entretanto, aquelas manifestações não foram, a nosso ver, manifestações antirregime, já que a democracia liberal blindada, usurpadora de direitos sociais, não era vista como inimiga dos manifestantes (com a exceção, claro, das pequenas vanguardas). (1)

Algo bem diferente, entretanto, é a interpretação que até hoje os dirigentes e teóricos ultraesquerdistas apresentam em relação às manifestações, ocorridas em 2015 e 2016, que levaram ao Golpe de 2016. Ao subdimensionarem o fato de que os setores médios privilegiados foram socialmente majoritários naquelas, classifica-as como “objetivamente progressivas” e, por fim, apresentam suas direções como se elas tivessem estado opostas ao “justo sentimento de revolta” dos presentes, traindo-os.

A sequência do raciocínio formalista produzido pelos intérpretes ultraesquerdistas parece ser a seguinte:

(1) as “massas” estiveram nas ruas porque estavam insatisfeitas;

(2) a insatisfação era “justa”, já que as condições de vida estavam em declínio;

(3) o responsável por tal declínio era o governo Dilma, que governava nos marcos do capitalismo;

(4) as “massas” culparam o governo pela crise;

(5) um governo burguês estava recebendo, portanto, uma “justa” oposição das “massas”;

(6) um governo burguês receber uma “justa” oposição das “massas” era algo “progressivo”;

(7) os aspectos não-progressivos do movimento residiam apenas no âmbito de suas direções, pois estas eram reacionárias. Rejeitando – também quase como um dogma – o fato de que amplos setores sociais, sobretudo os setores médios, podem se mobilizar com fitos reacionários (ou o problema da Marcha sobre Roma, em 1922, e o das marchas da família com Deus pela Liberdade, em 1964, seria apenas as suas direções reacionárias???), a interpretação ultraesquerdista criou – e até hoje esposa – uma falsa dicotomia (nada dialética, portanto) entre as “massas” e as direções dos atos. Vistos, portanto, como “objetivamente progressivos”, os atos não teriam sido um dado irretorquível do crescimento da direita e do avanço da Onda Conservadora no país, e sim poderiam ser alocados ao lado de greves e genuínos protestos populares enquanto mostras de uma suposta ruptura das massas com o governo petista. Transformando alhos em bugalhos, e vice-versa, as correntes ultraesquerdistas propugnavam a necessidade de “disputar a base” dos atos reacionários, ao mesmo tempo em que, pela “esquerda”, acabaram por adotar a principal bandeira da Oposição de Direita: “Fora Dilma!”.

Tudo que ocorreu desde o golpe e a chegada de Temer ao poder – cuja a lista de ataques aos trabalhadores demandaria aqui rios de tinta – não parece ter sido suficiente para que os ultraesquerdistas brasileiros tentassem, ao menos por um momento, substituir, no plano da análise, seus desejos pela realidade. A alta dosagem dos teores oníricos levou à cegueira, e os nossos ultraesquerdistas chegaram ao descalabro de considerar que a prisão de Lula se deveu, de fato, ao seu envolvimento com o triplex chinfrim e, consequentemente, à ruptura das massas populares com o ex-presidente e o PT. Ao fim e ao cabo, ao apoiar a prisão de Lula pelos artífices do Golpe, o ultraesquerdismo converteu-se, tristemente, em oportunismo.  Atingindo seu ápice, o sectarismo encontrou-se com a direita. Não tendo sido mera desatenção, o apoio ao encarceramento de Lula foi a gota d’água num copo cheio já cheio de equívocos (e de mágoas) do ultraesquerdismo brasileiro contemporâneo.

NOTAS
1 – “Nas ruas por direitos: uma análise das jornadas de junho de 2013”, disponível no blog Esquerda Online