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COLUNISTAS

A questão da soberania do Quebec

Por Henrique Carneiro

O Quebec é a maior província canadense, fora os territórios boreais. Se fosse um país, seria o 18º do mundo, possuindo um território 3 vezes maior que a França ou 7 vezes maior que o Reino Unido.

Sua população, no entanto, é pequena, chegando a pouco mais de 8 milhões em toda a província.

Na ilha de Montreal vivem cerca de 2 milhões e ao longo das margens do rio Saint Laurent estão 80% dos habitantes do Quebec, que representam um quarto de todo o Canadá.

Um milhão de lagos e 130 mil rios lhe dão um enorme potencial hídrico. A sua produção hidrelétrica é 14,4% da produção mundial!

A sua reserva de água doce representa 16% das reservas mundiais. Metade da província é coberta de florestas, mas a parte ártica e semi-ártica é a maior. Os recursos florestais respondem por 20% da sua economia que possui um PIB de mais de 300 bilhões.

Embora menos conhecido que os movimentos separatistas da Catalunha e da Escócia, a defesa da soberania do Quebec é também extremamente popular e no último referendo sobre a independência, em outubro de 1995, o não ganhou por apenas 50,58% contra 49,42% pela autonomia.

Para entender a essa questão é preciso lembrar que o Canadá foi inicialmente colonizado pelos franceses, que se estabeleceram no rio Saint-Laurent desde o século XVII. A maioria da população e a maior cidade durante muito tempo foi de língua francesa. Quando ocorreu a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), que definiu com a vitória britânica a hegemonia global dessa potência, a França se retirou do território do atual Canadá que se tornou colônia britânica. Após a independência dos EUA, o último reduto britânico que restou foram os chamados Alto e Baixo Canadá, que só se unificaram em 1840 com o Act of Union, ainda como colônia.

Essa guerra dos Sete Anos é conhecida na historiografia estadunidense como a “French and Indian War”, pois os grupos indígenas se dividiam entre os que se aliavam com os franceses (algonquins) e os aliados britânicos (iroqueses). Apesar da repressão e do racismo, até hoje o Canadá é um país muito mais indígena que o Brasil, por exemplo (cerca de 3,5% da população é considerada indígena, incluindo 1,5% de mestiços, enquanto no Brasil, segundo o último censo são 0,49% apenas).

Essa guerra global que definiu a vitória britânica perante a rivalidade imperial com a França começou na Pensilvânia com a tomada pelos franceses do Forte Duquesne, em 1755, e se encerrou com o Tratado de Paris, em 1763, envolveu várias outras nações e foi travada na Europa Central, no Caribe, na Índia e no Canadá.

Desde então, o Canadá continua sendo formalmente parte da Coroa Britânica. Mesmo com a independência formal em 1867, o Reino Unido continua exercendo influência política, econômica e diplomática sobre o Canadá.

Assim, todo deputado eleito para o parlamento do Quebec (que é chamado de Assembleia Nacional) tem que fazer um juramento de lealdade à rainha da Inglaterra.

O líder da esquerda independentista, do partido chamado Quebec Solidaire, Gabriel Nadeau-Dubois, ex-dirigente estudantil da grande greve de 2012, ao tomar posse neste ano de 2017 como deputado do parlamento do Quebec, acrescentou um preâmbulo ao juramento obrigatório de lealdade à rainha que ficou da seguinte forma:

“Esperando a emergência de uma república livre, forjada em parceria com os povos autóctones do Quebec… eu, Gabriel Nadeau-Dubois declaro solenemente que serei fiel e terei verdadeira lealdade a Sua Majestade, a rainha Elizabeth II”.

A rainha cuja efígie está na nota de 20 dólares canadenses e que também é, portanto, a rainha do Canadá, evita visitar o Quebec quando vai ao Canadá, pois lá já foi objeto de protestos mais de uma vez.

No centenário do Canadá, em 1967, ao visitar a Expo 67, em Montreal, em pleno 14 de julho o presidente da França, Charles De Gaulle, proferiu o famoso grito de “Viva o Quebec Livre!”, causando um incidente diplomático. Alguns anos mais tarde, um grupo armado, a Frente de Libertação do Quebec, sequestrou um empresário britânico e o ministro do trabalho da província, assassinando o primeiro. Isso provocou uma decretação de estado de guerra, com centenas de prisões e o envio de milhares de soldados para o Quebec.

Os independentistas se dividem em um tradicional partido de direita, católico e conservador, chamado Partido Quebecois, e uma esquerda que tem crescido nos últimos anos em torno ao Québec Solidaire, que é uma frente de diversos setores e tendências.

As diferenças entre a província francófona e as demais províncias anglófonas se refletem em vários aspectos da história canadense. A proibição das bebidas alcoólicas, por exemplo, nunca foi aprovada no Quebec, salvo um curtíssimo período durante a primeira guerra mundial, enquanto em todas as demais houve anos de proibição e depois de interdição do uso público.

Já o voto feminino foi conquistado no lado anglófono desde 1919, enquanto no Quebec foi preciso esperar até 1940 (na França, ainda pior, só em 1945 as mulheres puderam votar!).

Mais recentemente, no entanto, o Quebec foi pioneiro em aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

O bilinguismo continua a ser relativo, pois há muita resistência ao uso do inglês pelos francófonos do Quebec e do francês pelos anglófonos das demais províncias, sobretudo no âmbito da educação pública.

O uso da bandeira do Quebec, ao invés da canadense, continua a ser popular, inclusive nas janelas das residências, e todas as placas de automóveis no Quebec trazem a frase “Eu me lembro” (“Je me souviens”).

A unidade do Canadá ainda é precária, a última província a aderir à Confederação, a Newfoundland (Terra Nova e Labrador), só o fez em 1949, e o questionamento da monarquia britânica pela Escócia, que ameaça a separação e a proclamação de uma república, pode incentivar novamente os anseios de independência do Québec. Dos países do mundo, apenas três são efetivamente federativos: os EUA, o Canadá e a Suíça.

O Império Britânico acabou, mas seus resquícios continuam a manter uma estrutura de estados leais à Coroa Britânica e, nos momentos das grandes guerras, o Canadá foi um dos países que mais sofreu sacrifícios no apoio a sua antiga metrópole colonial. Resta saber até quando a simbologia monárquica continuará a ser o quadro institucional comum dos 53 países da Commonwealth, dos quais 16 são considerados como “reinos da Commonwealth”, sendo o mais importante o Canadá.