Por: Romero Venâncio*, de Aracaju, SE
*Teólogo. Professor de Filosofia na Universidade Federal de Sergipe
Chega a chamar a atenção o interesse de uma geração de marxistas de primeira hora pelo cristianismo em seus momentos iniciais. Podemos notar num arco de tempo que vai de 1895 a 1924. Nomes formadores da tradição marxista escreveram e estudaram historicamente o Cristianismo: Engels, Rosa Luxemburgo, Kautsky, etc… Marx, desde sua juventude na metade do Século XIX havia feito algumas reflexões sobre a religião e seu papel político e ideológico na história. Correu o mundo a sua famosa frase: “A religião é o ópio do povo”. Fica claro nessa frase cortante: a religião tem uma função básica numa estrutura social que é “alienar”. Obviamente, a frase é mais rica e instigante que essa litura básica. Mas a frase ficou marcada como a leitura de Marx no que diz respeito à religião.
Engels inaugura dentro da tradição marxista um caminho novo nas reflexões sobre a religião, em particular, sobre o Cristianismo. Michael Lowy nos chama a atenção para o papel central de Engels nessa nova leitura crítica da religião. Em 1895, Engels escreve um dos seus últimos trabalhos intitulado: “Contribuição para a história do Cristianismo primitivo”. Obra marcante naquela quadra histórica. Engels volta ao primeiro cristianismo para tentar entender como uma religião de escravos e nascida a partir de escravos e “proletários” se tornou a religião da ordem e reacionária do Século XIX. Essa questão abre todo um caminho a se construir na leitura do cristianismo na Europa e seu papel político.
Engels percebe que a nova religião cristã tinha como horizonte a ideia e a prática da liberdade. O interesse do pensador alemão era perceber como esse ideário religioso levou a uma série de rebeldias plebeias na antiguidade. Motivado pela prática religiosa e acreditando num “reino de Deus”, praticavam os cristãos primeiros a luta contra uma ordem estabelecida. A tese que se tornará clássica é: estabelecer uma relação entre os primeiros cristãos e os socialistas da primeira internacional comunista. Engels não faz anacronismo, que fique claro. O interesse dele é estabelecer uma relação a partir das peculiaridades entre cristãos antigos e socialistas modernos. Na verdade, o que mais deve interessar a um marxista nessa leitura de Engels do cristianismo primitivo deverá ser a da “leitura estratégia” do papel do cristianismo na organização dos trabalhadores e trabalhadoras.
Aqui, chega-se ao núcleo do interesse de Engels por uma religião particular. Não se trata de converter ninguém ou a levar alguém a acreditar numa divindade. Interessa aprender uma “tática” de arregimentamento de pessoas pobres para as fileiras do socialismo e uma maneira de combater um clero reacionário e inimigo do socialismo.
Nessa mesma linha de Engels vai o “livrinho” de Rosa Luxemburgo escrito em 1905: “O socialismo e as Igrejas”. Foi publicado inicialmente como um texto do Partido Social Democrata Polaco. Rosa parte de uma perspectiva diferente da de Engels, onde destaca mais a situação do cristianismo atual e sua reação ao socialismo. A pensadora busca compreender como o cristianismo se torna reacionário e aliado dos mais cruéis poderes da história. Rosa nos leva a pensar as origens do anticomunismo em suas origens. A sua questão central no pequeno texto é: quem é mais coerente com o primeiro cristianismo: o clero reacionário e adorador de dinheiro ou os socialistas pobres da primeira internacional? A resposta a essa pergunta leva a um paradoxo: os ateus socialistas são mais coerentes com um cristianismo que não fazem parte, do que os prelados e seus seguidores anticomunistas.
Rosa Luxemburgo não era religiosa, muito pelo contrário. Era claramente e por convicção ateia. Mas sabia da correlação de força do início do Século XX para a classe trabalhadora e sua luta pelo socialismo e de como era importante saber da história do cristianismo primitivo para a organização da classe trabalhadora. Os primeiros cristãos souberam organizar uma massa de proletários pobres e lhe dar convicção da liberdade.
Os socialistas do Partido Social Democrata precisavam saber disto e tornar isto sua prática, assim pensava Rosa em 1905. Aqui temos uma crítica estratégica ao cristianismo na linha de Engels, ou seja, entendia-se a religião em sua perspectiva histórica e o seu significado em tempos presentes. Esse breve ensaio sobre as igrejas e o socialismo é muito revelador da posição de Rosa Luxemburgo sobre a democracia de base. A pensadora polonesa percebia no cristianismo primitivo um tipo de organização no qual as bases eram ouvidas e determinavam a estrutura organizacional da comunidade. Nada mais fascinante para se pensar a prática socialista moderna.
Por fim, a leitura de Karl Kautsky em seu volumoso: “A origem do Cristianismo”. A edição em nossa língua da editora civilização brasileira vem com introdução, notas e apêndice do professor Moniz Bandeira. Publicado originalmente em 1908, é um exame histórico e sociológico profundo dos primórdios do Cristianismo. Importante contribuição, inclusive do ponto de vista teológico, para o entendimento do papel histórico de Jesus e do cristianismo como fenômeno social e político. É considerada (e com razão!) a obra mais rigorosa dentro do marxismo sobre a história do cristianismo primitivo.
Independente das posições políticas que tomou seu autor dentro do marxismo e de sua disputa com Lenin, essa obra se mantém na tradição marxista por seu valor histórico em si mesmo. Kautsky fez uma pesquisa apurada e com imenso material usado como fonte. Conhecia teologia, exegese bíblica e faz um levantamento histórico da Palestina na época de Jesus, rara dentro do marxismo.
Estuda as organizações políticas judaicas como poucos e situa de maneira incontestável a situação política de Jesus e as razões políticas de sua morte, por exemplo. Por razões estranhas ao livro, as teses de kautsky sobre as origens do Cristianismo primitivo foram basicamente abandonadas dentro do marxismo depois da revolução de 1917. Foram estudados por Ernst Bloch em seu “Thomas Münzer: o teólogo da revolução” e por muitos poucos marxistas depois dos anos 30 do século passado. Ironicamente, foi recuperado por alguns teólogos da chamada “Teologia da libertação”.
Em conclusão provisória, diria o seguinte: torna-se necessária uma reflexão séria e sem dogmatismos sobre a história do cristianismo numa perspectiva marxista. Depois de tudo que vivemos e vimos no século XX e nesse momento em que pensamos os 100 anos da Revolução Russa, se faz necessário entender que dentro do próprio marxismo temos uma tradição crítica de estudos sobre o cristianismo e que não deve nada às “historiografias revisionistas”.
Romero Venâncio (Teólogo. Professor de Filosofia na Universidade federal de Sergipe)
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