No dia 23 de fevereiro, a Inglaterra viveu eleições complementares em dois distritos: Stoke e Copeland. Chamadas de by-elections, essas eleições acontecem quando o parlamentar de determinado distrito interrompe seu mandato (renúncia, cassação, falecimento – ou em muitos casos troca de partido) antes de uma eleição geral.
O Partido Trabalhista (Labour Party) vive um estado de “guerra civil” desde 2015. A partir daquele ano, as bases e os trabalhadores sindicalizados vêm derrotando a estrutura do partido e elegendo Jeremy Corbyn como lider do Labour. Recorde-se que os sindicalizados podem definir a escolha de sua liderança parlamentar mesmo que não sejam filiados.
Corbyn tem, apesar de suas limitações, um perfil e programa anti-capitalista. Combate as políticas de austeridade e o racismo e defende estatizações, direitos sociais e trabalhistas e investimentos sociais. Essa situação voltou a aproximar uma grande parte da vanguarda, e organizações que haviam rompido com o Labour nas últimas décadas. Esse movimento objetiva defender Jeremy Corbyn contra os ataques da estrutura tradicional do Labour e da direita.
O candidato do Labour perdeu uma das eleições e derrotou na outra, Stoke, o líder do partido de extrema-direita UKIP. Com esses resultados, os caciques do partido (apoiados em grande parte da mídia) intensificaram seus ataques a Corbyn como “radical demais” ou “candidato inviável a Primeiro Ministro”. Traduzimos a seguir um artigo do cineasta Ken Loach, publicado no jornal The Guardian logo após as eleições. Este artigo, muito mais que analisar o atual processo de disputa político-social na Grã-Bretanha, traz interessantes reflexões sobre a atuação dos partidos tradicionais “de esquerda” na sociedade, sua relação com a classe trabalhadora e o espaço que deixam aberto para a extrema-direita reacionária. Por Vicente Marconi, Londres(Grã-Bretanha)
Ken Loach
A enxurrada de pedidos para que Jeremy Corbyn renuncie, desde os resultados das eleições da semana passada em Stoke e Copeland é extremamente previsível e foi premeditada. Ela expõe muito da agenda política da mídia, e absolutamente nada sobre as necessidades reais e as experiências da população.
Eu estive em Stoke e Whitehaven, em Cumbria, poucos dias antes da votação. O Momentum organizou exibições públicas do [filme] Daniel Blake. Fomos a bases do Labour em regiões bastante negligenciadas, velhos espaços distantes do centro. Em um deles me perguntaram: “por que vocês vieram até aqui? Ninguém nunca vem aqui. ”
Joe Bradley e Georgie Robertson, os organizadores dos eventos, foram um exemplo de como os ativistas do Labour deveriam militar: cheios de energia, trabalhando duro e com uma eficiência brilhante. Prepararam uma calorosa recepção para todos os presentes, checaram toda a estrutura para a exibição, organizaram o espaço para os colaboradores locais de forma que as pessoas da comunidade se sentissem bem à vontade – em um evento deles, onde seriam ouvidos. Essa é a forma que o Labour pode se reconectar.
Ambas as exibições estavam cheias. As discussões foram apaixonadas, informativas e revigorantes, completamente diferentes daqueles clichês batidos, comuns nos discursos em público. Isso não era um exercício de marketing, mas um compromisso real com as pessoas e com suas preocupações.
A falha dos governos do Labour – e, importante, dos vereadores do Labour – foi um tema comum. Não é difícil perceber o abandono ao redor de Stoke. Base sólida do Labour, com certeza,, mas que benefícios isso trouxe para eles? Um relatório de 2015 sobre a área levantou que 60.000 pessoas vivem na pobreza, 3.000 residências dependem de caridade para se alimentar, e há 25 milhões de Libras em atrasos de taxas municipais. A presença do BNP, agora substituído pelo UKIP, mostra como a falência do Labour deixou o espaço aberto para a extrema direita.
Em Copeland a situação foi bastante parecida. As indústrias sumiram – siderúrgicas, minas, uma fábrica química – sem qualquer projeto de reposição. O Labour é visto como tão culpado quanto os Tories(Conservadores). Um presente falou que em Copeland se tratava de um voto anti-establishment, e o Labour representa o establishment local. Foi um voto contra Tony Blair, Gordon Brown e os últimos parlamentares Jack Cunningham e Jamie Reed.
Nos dois distritos, os candidatos do Labour foram convidados, nenhum deles da esquerda do partido. Mas ambos ignoraram as reuniões. Com a cobertura que tiveram na TV, radio e imprensa, isso é estranho. Seria porque os eventos foram organizados pelo Momentum? Estavamos lá para apoiar o Labour. Não houve sequer uma resposta, nem mesmo por cortesia.
Agora façamos as perguntas certas. Quais são os grandes problemas que as pessoas enfrentam? Qual a análise e o programa da direção do partido? Por que o Labour é, aparentemente, impopular? Quem são os responsáveis pela divisão no partido?
As respostas aos problemas são bem ensaiadas, mas raramente relacionadas à questão da liderança. Uma classe trabalhadora vulnerável que conhece a insegurança no emprego, baixos salários, “trabalho por conta própria” falacioso, pobreza, incluindo os que têm emprego, regiões inteiras abandonadas e apodrecendo: essas são as consequências das políticas de livre mercado realizadas tanto pelos Tories como pelo Novo Labour. A “flexibilização” defendida pelos patrões é a precarização dos direitos dos trabalhadores. Os serviços públicos estão sendo desmembrados, terceirizados, fechados, são fonte de lucro para poucos e de empobrecimento social para muitos. O fato central é muito óbvio: os anos Blair, Brown e de Peter Mandelson foram centrais para essa degeneração. Esse foi o motivo que levou os membros do Labour a votar em Jeremy Corbyn.
Corbyn e seu shadow chancellor[1], John McDonnell, fazem uma análise distinta, e estão propondo políticas diferentes. O Mercado nunca irá prover uma vida digna e segura para a ampla maioria. Se existe a necessidade, mas não há lucro, a necessidade será sempre relegada a segundo plano. Coletivamente, nós podemos planejar um futuro seguro, usar as novas tecnologias em benefícios de todos, garantir que todas as regiões serão recuperadas com indústrias reais, e reconstruir os serviços públicos e a qualidade de nossa voda social. Essa é uma visão transformadora de mundo e uma rejeição à sociedade amarga, dividida e empobrecida que vemos ao nosso redor.
As políticas de Corbyn seriam um começo. Primeiramente, investimentos públicos nas regiões mais negligenciadas para promover empregos com uma remuneração decente; um Sistema de Saúde (NHS) integralmente custeado pelo Estado, em que os faxineiros até os consultores sejam diretamente empregados e as empresas terceirizadas excluídas; resolvendo o desastre das PPPs tão amadas pelo Novo Labour; políticas públicas locais de moradia para resolver a crise de habitação, com comunidades planejadas e sustentáveis; e os transportes devolvidos ao poder público para acabar com o caos da privatização. Existe uma compreensão dos problemas, e idéias para iniciar a reconstrução. Como financiar isso? Remediar a desigualdade através da taxação de grandes fortunas e lucros. Eu ainda adicionaria que a economia precisa de mudanças fundamentais para que “todos recebam os frutos integrais de seu trabalho”, como diria minha velha carteirinha do Labour Party.
A ironia está em que essas medidas são populares. Em uma recente pesquisa, conduzida pela Media Reform Coalition, 58% se opõe ao envolvimento privado no NHS, 51% apóiam a propriedade estatal das vias férreas, e 45% são favoráveis ao aumento de investimentos públicos e aumento de impostos para os mais ricos. Por que não vemos os parlamentares do Labour defendendo este programa? Por que o silêncio dos caciques que se recusam a integrar o shadow cabinet? Eles rejeitam essas políticas, preferindo as do Novo Labour de privatização e austeridade, ou se mantêm em silêncio para isolar Corbyn e seus apoiadores?
Corbyn e seu pequeno grupo encaram os Tories de frente e se deparam com um motim silencioso pelas costas. Até aqui os parlamentares, que não representam os membros, estão causando um grande prejuízo. Por que a mídia não os coloca na berlinda? Pois são eles, e seus apoiadores na burocracia do partido, os que vêm sendo rejeitados.
Foi o Labour Party deles, e não o de Corbyn, que perdeu a Escócia, perdeu duas eleições e tem visto a votação do partido encolher de forma inexorável. Mesmo com tudo isso, ainda se acham no direito de dirigir o partido. Eles toleraram ou endossaram a erosão do estado de bem-estar social, o abandono de velhas áreas industriais, a privatização e os cortes nos serviços públicos, e a guerra ilegal que causou a morte de milhões de pessoas e desestabilizou o Iraque e seus vizinhos. Se Corbyn puder ser removido, tudo será mais do mesmo, com uma diferença cada vez menor entre o Labour e o Partido Conservador. Se for para transformar a sociedade, esse partido precisa ser transformado.
E a imprensa? Os abusos da ala direita são rudes, como era esperado. Mas os veículos de imprensa que se apresentam como radicais revelaram não ser nada disso. O Guardian e o Mirror (jornais diários britânicos) se tornaram chefes de torcida do velho establishment do Labour. Coluna após coluna, defendem a deposição de Corbyn. Vulcões extintos do Novo Labour são citados com satisfação. Cederam uma grande manchete para Mandelson: “Eu trabalho todos os dias para derrubar Corbyn. ” Mandelson teve de renunciar do gabinete por duas vezes, em descrédito. Por que dariam a ele tanta importância, se não for pelo fato de estar sempre cantando os mantras anti-Corbyn?
As redes de TV seguem os mesmos passos da imprensa escrita. Um relatório apontou que durante a campanha de reeleição de Corbyn, a BBC entrevistou duas vezes mais apoiadores hostis a Corbyn do que seus apoiadores. As críticas são no nível pessoal, e são tão perversas como a campanha realizada contra Arthur Scargill[2]. Uma boa demonstração da força de Corbyn é o fato de continuar de pé, apesar de todo esse massacre.
E por que todos esses ataques? Por que aliviam os que vem se abstendo dessas questões, enquanto ele é pessoalmente responsabilizado pelo declínio do partido? Seria o medo que Corbyn e McDonnell apliquem as políticas que defendem? Se eles tivessem um movimento forte que os sustentasse, o Labour sob sua liderança poderia começar a minar o poder do grande capital, remover as multinacionais dos serviços públicos, restaurar os direitos trabalhistas, e iniciar o processo de criação de uma sociedade segura e sustentável da qual todos poderiam se beneficiar. Essa é uma causa pela qual vale a pena lutar. Seria o começo, apenas o começo, de uma longa jornada.
[1] No sistema parlamentar britânico, o principal partido de oposição forma um gabinete sombra para fiscalizar a atuação do gabinete oficial. O Shadow Chancellor cumpre a função de chanceler, ou líder do gabinete sombra.
[2] Arthur Scargill foi dirigente da Federação dos Mineiros da Inglaterra que liderou a greve histórica de meses contra o fechamento das minas pelo governo de Magareth Thatcher entre 1984 e 1985.
Comentários