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EDITORIAL

Lições da revolução síria: entrevista com Ghayath Naisse,da Corrente Revolucionária de Esquerda

O Esquerda Online começa a publicar vários materiais da esquerda síria para auxiliar na compreensão do complexo processo vivido no país desde o levante de 2011. Nesta recente e longa entrevista, publicada recentemente na revista britânica International Socialism, o socialista revolucionário Ghayath Naisse, dirigente da Corrente Revolucionária de Esquerda, conversou com Simon Assaf sobre a brutalização na Síria, os objetivos daqueles que estão intervindo e as perspectivas para os socialistas na região[1].

SA: Começando com o imperialismo. O que aqueles que estão intervindo na Síria – Rússia, os sauditas, EUA e a Turquia – esperam alcançar?

GN: A Síria serve como um estudo de caso muito particular, na medida em que praticamente todas as potências imperialistas e regionais estão em ação no mesmo território.

Primeiro, falemos sobre a intervenção da Rússia e seus aliados. O imperialismo russo tem um importante interesse geoestratégico na região. Depois da Líbia, a Síria é agora o último bastião onde a Rússia teve uma presença militar por décadas. Tem a base naval em Tartus, que tem crescido nos últimos anos, e a base aérea em Hmeimim perto de Latakia. Assim, em um nível geoestratégico, se perde a Síria, a Rússia não tem presença e nenhum canal para influência diplomática na bacia do Mediterrâneo.

Esse interesse particular se combina com outro mais geral. Desde a ascensão de Vladimir Putin, a Rússia tem procurado recuperar seu lugar entre as grandes potências – fazendo com que as outras potências imperialistas reconheçam seu lugar entre elas, pela força, se necessário. Isso moldou suas ações na Ucrânia e também está moldando o que acontece na Síria.

Para entender o outro “campo” imperialista, os Estados Unidos e seus aliados, devemos começar por ver que a invasão anglo-americana do Iraque em 2003 terminou em fracasso e derrota. A saída das forças dos EUA em 2011 foi uma impressionante demonstração de fracasso para o imperialismo norte-americano em toda a região e no Iraque em particular. O que está acontecendo agora com o Estado Islâmico (EI) permitiu que os EUA voltem para a região, não apenas para o Iraque, mas também para a Síria, pelo menos dentro dos limites de uma “intervenção de baixo custo”. Isso significa que ele não precisa colocar suas tropas no terreno, mas tem uma grande presença aérea.
Então, supostamente para enfrentar o EI, houve um retorno dos EUA ao Iraque. E na Síria, onde anteriormente os EUA tinham uma presença mínima, em grande parte diplomática, agora intervêm diretamente. Possuem forças especiais ao longo da fronteira e no norte, e uma incontestável supremacia aérea. Isso é o que está em jogo para os EUA – o seu interesse em retornar a uma região da qual tinham sido forçados a sair. Esta é uma região importante para os EUA, onde seus aliados como Israel e os Estados do Golfo foram ameaçados pelo levante e as revoluções que varreram a região.

SA:Parte da esquerda radical critica a política dos EUA na região por “não fazer nada”. Mas isso não é verdade. Os EUA intervieram. Têm atuado. Eles fizeram alguma coisa. Sua política para a Síria era a de permitir que os diferentes grupos se matassem entre eles, por um lado. Mas seu objetivo também era o de destruir as capacidades econômicas e militares da Síria, até o ponto em que o regime – ou qualquer outro regime futuro depois desse [de Assad] – nunca pudesse constituir qualquer tipo de ameaça a Israel.

Vale a pena notar que os EUA não assumiram inicialmente uma posição firme sobre a Revolução Síria. Barack Obama disse para Ben Ali abandonar o poder após duas semanas da Revolução Tunisiana, e para Hosni Mubarak sair da presidência apenas depois de uma semana da Revolução egípcia. Mas sua primeira declaração sobre Bashar al-Assad foi em agosto de 2011 – cinco meses depois que a revolução começou.

Em primeiro lugar, entre as potências regionais estão os Estados do Golfo, liderados pela Arábia Saudita. No primeiro mês da Revolução Síria, a Arábia Saudita deu ao regime de Assad 3 bilhões de dólares em ajuda. Viram a amplitude e o radicalismo do levante popular, cuja dinâmica constituiu um perigo para todos os regimes reacionários e ditatoriais da região. Quando eles intervieram, foi contra o regime, mas também em apoio a facções islâmicas radicais, diretamente apoiadas pelo Estado saudita ou por uma miríade  de outras organizações que controla. E houve um fluxo de fundos e lutadores para facções extremistas como Jabhat al-Nusra e Ahrar al-Sham[2]. Pouco a pouco, com o Exército Livre da Síria lutando por equipamentos, esses grupos tomaram a frente do cenário militar na Síria.

O segundo ponto para a Arábia Saudita é sua rivalidade com o Irã. A Arábia Saudita viu o Irã ganhar influência no Iraque – graças, aliás, à intervenção dos EUA – e os aliados do Irã, a Rússia e o Hezbollah, estão ajudando o regime sírio[3]. Assim, uma vitória do regime e do Hezbollah sobre a Revolução Síria constitui uma ameaça para a Arábia Saudita que reduziria sua influência na região. Para o Irã, o regime sírio tem sido um aliado desde a Primeira Guerra do Golfo – o sangrento e mortal conflito entre o regime iraniano e Saddam Hussein no Iraque[4]. Essa guerra matou e feriu milhões e trouxe grande destruição a ambos os países, com a ajuda das potências imperialistas. O Irã também tem interesse em preservar uma zona de influência que se extende do Iraque através da Síria até o Líbano. Assim, o Irã esteve militarmente do lado do regime desde o início, e foi seguido, timidamente no início, pelo Hezbollah a partir de 2012. Em 2013, o líder do Hezbollah, Hasran Nasrallah, disse que estava intervindo na Síria para proteger os locais sagrados do Islã xiita contra os Takfiri[5]. Assim, o eixo iraniano foi parte do conflito sírio desde o início.

Essa rivalidade inflamou o aspecto sectário do conflito. Por um lado, a Arábia Saudita ajudou extremistas islâmicos, e, por outro lado, o Irã interveio sob seus próprios slogans religiosos. Esses partidos provocaram um conflito religioso que não estivera presente na revolução síria.
Para a Turquia as apostas são ligeiramente diferentes. A questão curda é o pesadelo do Estado turco desde sua fundação. A maior população curda do mundo é a que está dentro das fronteiras da Turquia. A Revolução síria permitiu a libertação do povo curdo na Síria e levantou a questão da libertação nacional curda.

A Revolução Síria e o aspecto militar do conflito permitiram que o PYD [Partido da União Democrática) curdo controlasse uma vasta área do que é chamado de Rojava- Curdistão Sírio, que compreende os três cantões de Jazira, Kobanê e Afrin[6]. Entretanto, faltava algum território entre Kobanê e Afrin. A capacidade das forças curdas e dos seus aliados árabes para ligar os dois cantões criaria um território de fato contínuo e efetivamente autônomo no norte da Síria. Assim, a Turquia interviu para impedir qualquer continuidade entre Jazira e Kobanê no leste e Afrin no oeste. O fez com pelo menos dois objetivos: esmagar a aspiração pela autonomia curda na Síria, que tem consequências dentro da Turquia, e garantir que o futuro da Síria não será decidido sem a participação ativa da Turquia.

Finalmente, Israel não deve ser esquecido. Desde o início em 2011, Ehud Barak fez uma declaração reveladora[7]. Ele disse que a Síria não deve seguir o caminho do Iraque. O regime deve ser melhorado, mas o exército sírio e o Partido Baath devem permanecer intactos[8]. Israel quer a Síria enfraquecida econômica e militarmente, mas sem a queda do regime, o que abriria uma guerra civil desenfreada que ameaçava Israel e toda a estabilidade da ordem imperialista na região.


SA: Qual é a natureza do regime de Assad?

GN: Historicamente, foi o exército que assumiu o poder na Síria, com o Partido Baath e o que podemos chamar de pequena burguesia ou classe média. Tony Cliff descreveu como, numa situação em que tanto o proletariado como a burguesia são fracos, a classe média pode desempenhar um papel-chave, numa espécie de revolução de cabeça para baixo[9].

Quando o exército e o Partido Baath assumiram o poder representaram a classe média diante de uma burguesia enfraquecida, particularmente pelas nacionalizações e a reforma agrária do regime de Nasser durante a união entre o Egito e a Síria em 1958-61[10]. Nos anos 50 houve um crescimento dos comunistas na Síria. A esquerda era forte e os desafios das classes populares tornavam-se perigosos tanto para a burguesia como para o regime, e a burguesia escolheu uma união com o Egito para tentar acabar com essa revolta radical. Este foi um longo período de instabilidade política na Síria, com um ou dois golpes de Estado quase todos os anos a partir de 1949.

O regime Baath empreendeu uma série de reformas – particularmente sob a ala radical do partido, no poder de 1966 a 1970 – que foram relativamente positivas e as mais radicais na região. Isso enfraqueceu ainda mais a burguesia síria, até o colapso.

Hafez al-Assad assumiu o poder em um golpe em 1970 e governou por 30 anos. Inicialmente ele desempenhou um papel relativamente bonapartista[11]. Enquanto velhas formações sociais foram destruídas, o estado ajudou a criar novas. Como marxistas reconhecemos que o Estado pode influenciar o desenvolvimento das classes sociais. O regime sírio ajudou a forjar uma “nova e velha” burguesia síria que estava intimamente ligada ao Estado. Burocratas de alto nível unidos através de laços matrimoniais ou empresariais com a velha burguesia tradicional. E, por meio da corrupção, esses burocratas se tornaram muito ricos e procuraram investir sua nova riqueza na economia. Assim, pouco a pouco, o regime começou a quebrar o monopólio econômico do estado, notadamente com o Decreto Número 10 em 1991, que abriu a economia ao capital privado. Os mesmos burocratas corruptos foram transformados por seus laços com a velha burguesia, que já não tinha a mesma capacidade de investir. Eles injetaram suas riquezas na economia terciária em particular – construção civil, fábricas, turismo – e, a partir da década de 1990, tornaram-se uma nova burguesia organicamente ligada ao regime de Assad.

Ao mesmo tempo, Hafez al-Assad supervisionava uma partilha não declarada, mas rígida, de posições no aparelho de Estado ao longo de linhas sectárias ou regionais. Por exemplo, cada um de seus governos tinha que incluir dois Druze, um primeiro-ministro sunita e talvez um ministro da defesa também sunita, etc[12]. E ele era capaz de integrar todas as hierarquias religiosas ao estado. Embora ateu, ele se certificou de ser visto rezando em mesquitas à maneira sunita, participando de festivais cristãos e até judaicos. O fruto da política do Estado foi visível na Revolução síria, onde a hierarquia de cada religião se aliou ao regime.

A repressão impediu o desenvolvimento de atividades políticas, sindicais ou de ONGs independentes do regime. E o regime manteve presos dezenas de milhares de opositores políticos e sindicalistas por muito tempo. Um dos meus primos foi preso por 25 anos – entrou aos 33 anos e saiu aos 58. As pessoas apodreceram na prisão por imensos períodos de tempo. O regime tinha um controle estreito na sociedade, e esta era uma geração que teve que ser corajosa para desafiá-lo.
Quando Bashar al-Assad herdou o poder de seu pai em 2000, cerca de 11% da população estava abaixo da linha de pobreza. Depois de dez anos, isso havia chegado a 33%. Isso significa que Bashar al-Assad aplicou na Síria as políticas neoliberais mais severas, mais radicais e monstruosas da região – pior do que no Marrocos, pior do que o Egito, pior do que a Jordânia. Ele pensou que não haveria oposição, nenhuma resistência. Ele pensou que tinha herdado uma sociedade que tinha sido esmagada. Por isso, permitiu-se aplicar políticas sociais que em dez anos tinham feito com que a proporção da população que vivia com cerca de dois dólares por dia ou menos crescesse para enormes 50 por cento.

SA: Como a revolução mudou a natureza do regime?

GN:A guerra, as intervenções, a revolução, a mudança demográfica mudaram a natureza do regime. Agora nada mais é do que a milícia de uma família e seus aliados – uma facção que forma o núcleo duro da burguesia síria – a milícia de um clã em guerra com o povo.

SA: É justo dizer, como alguns argumentam, que a revolução foi suplantada por um conflito sectário?

Isso é apenas parcialmente verdade. Sim, por um lado, há grupos islâmicos que são sectários reacionários. Por outro lado, o regime também usa milícias sectárias xiitas como o Hezbollah ou a milícia afegã e iraniana. Isso é uma realidade. Mas constituem-se em talvez 100.000 ou 200.000 pessoas. Como é para o povo sírio como um todo? Deixe-me dizer-lhe em primeiro lugar em termos de minhas experiências.

Estive na Síria várias vezes durante esses anos. Não recebi quase nenhuma hostilidade sectária ou religiosa. Além disso, temos um punhado de camaradas que saíram da Síria nos últimos meses. Para fazer isso, eles tinham que atravessar zonas controladas por islâmicos – e alguns desses companheiros são de minorias religiosas que os islâmicos sunitas não devem aprovar. Mas eles não foram impedidos. Eles não foram decapitados. A população de lá disse: “Vocês são nossos irmãos”. Um desses companheiros passou dois meses dentro desta zona antes que ele pudesse chegar à Turquia.

A verdade é que se este fosse um conflito sectário, teríamos visto massacres sectários sem fim. Houve alguns massacres sectários, cometidos primeiro pelo regime e depois por alguns grupos islâmicos. Mas eles são esporádicos e de escala limitada. Até agora, no conflito sírio, houve 600.000 mortes. O número de mortos em conflitos sectários foi talvez de 1.100. Não vimos ninguém matar uma aldeia inteira de alauitas, cortando milhares de gargantas, não vimos o sangue fluir da maneira que isso implicaria[13]. Vimos incidentes. Mas em geral não acontece, e as pessoas não são espontaneamente sectárias. Na região controlada pelo regime há pessoas que foram deslocadas de toda a Síria. Somente em Latakia eles são um milhão e meio – sunitas e não sunitas – vivendo entre alauitas em um momento em que soldados alauitas estão morrendo às dezenas. Mas você já ouviu falar desses sunitas sendo massacrados? Não, porque não aconteceu. Em termos da população comum, as pessoas ainda não se transformaram em monstros sectários.

Dizer que isso se tornou um conflito religioso e não há nada que possamos fazer sobre isso é uma desculpa fácil para abdicar toda a responsabilidade pela solidariedade com a luta do povo sírio. Não, há um aspecto sectário do que está acontecendo, como há outros aspectos, mas a tendência fundamental, a base de tudo isso, é uma revolução popular – que viu altos e baixos, pontos de viragem, intervenção imperialista e uma guerra de terra arrasada pelo regime, que tem visto um refluxo para o movimento popular, mas não a ponto que possamos dizer que tudo acabou.

SA: O que está acontecendo atualmente com as forças da revolução e os diferentes grupos armados?

GN: Primeiro, vamos examinar o Exército Livre da Síria, sobre o qual muito ouvimos. Muitos observadores cometem um erro quando falam do Exército Livre da Síria como se fosse um exército organizado e com uma estrutura de comando. É realmente um rótulo genérico que abrange diversos fenômenos. Para entender o que é podemos olhar para trás e ver como começou. Com a militarização do levante, a partir do segundo semestre de 2011, começamos a observar a ocorrência de dois fenômenos.

Por um lado, algumas das pessoas que estavam protestando e sendo baleadas como pássaros pelos soldados do regime, decidiram pegar em armas e se proteger. Estes eram os indivíduos que levaram armas com eles para proteger as manifestações. Ao mesmo tempo, houve um número crescente de deserções do exército. No final de 2011 e especialmente em 2012 houve 20.000-30.000 soldados que desertaram com suas armas. Destes fenômenos foi criado o Exército Livre da Síria.
Era muito parecido com o que chamamos de coordenação. Em cada bairro, em cada aldeia, em cada aldeia, as pessoas se organizavam e criavam coordenações que chamavam manifestações, decidiam sua rota, acertavam seus slogans, planejavam vias de evacuação caso chegassem as forças do regime e organizavam o tratamento e a evacuação dos feridos. Eram um fenômeno local, e isso era tanto a sua fraqueza como a sua força. Foi uma fraqueza porque sempre careciam de uma rede que pudesse coordená-las em nível nacional. Mas também ajudou-as a sobreviver mais tempo – é muito difícil para o regime esmagar algo tão localizado e múltiplo.

O Exército Sírio Livre, da mesma forma, era realmente uma combinação de desertores e de  pessoas comuns que tomaram as armas em suas áreas locais. Havia pouca coordenação entre eles. Os poderes regionais ajudaram a criar algo também, mas este era um fenômeno real do povo. Novamente, seu localismo era tanto a sua fraqueza como a sua força. Ainda hoje, na Síria, ainda existem 3.000 “grupos armados” além das grandes organizações islâmicas – estes são realmente os que foram mais bem organizados, mas o fenômeno em seu auge foi muito mais amplo.

 SA: Quem foi que teve que ser evacuado em Al-Zabadani[14]? Você ouviu sobre eles?

GN: Era gente comum da zona rural ao redor de Damasco. Era o Exército Livre da Síria. Eram pequenos grupos locais aqui e ali que se defenderam quando foram jogados nas mãos da Jabhat al-Nusra. O regime fez um jogo esperto em jogá-los para as mãos da Al Qaeda – isto permitiu que o regime dissesse que somente a Al Qaeda e o EI  lutavam contra ele, e que Al Qaeda tinha que ser destruída.

O fenômeno da resistência popular, na verdade, não teve qualquer solidariedade das potências regionais porque o povo em armas é uma coisa perigosa para eles. Eles dão a alguns grupos, cuidadosamente identificados e que estão em sua folha de pagamento.

Juntamente com isso, temos as forças curdas – o PYD e suas Unidades de Proteção Popular – que já têm décadas de experiência na guerrilha na Turquia e nas montanhas. Era o único partido curdo com seu próprio poder militar. Com a retirada do regime de algumas áreas do norte da Síria em 2012, essas forças – ligadas ao PKK – apossaram-se imediatamente e consolidaram sua presença militar. Isso ocorreu a partir de julho de 2012, seguindo-se uma dinâmica de autoadministração e criação e desenvolvimento das Unidades de Proteção da Mulher. No ano passado, aliaram-se com alguns batalhões do Exército Livre da Síria para formar a Força Democrática da Síria, uma força curda-árabe ou árabe-curda no norte da Síria. Estamos em estreito diálogo fraterno com parte deste agrupamento em particular, uma aliança nacionalista democrática, incluindo assírios, turcomanos e árabes, com uma presença ao norte e ao oeste de Aleppo[15].

Além disso, há os grupos islâmicos mais poderosos. Se deixarmos o EI de lado – porque para mim é um fenômeno separado – existem dois poderes principais. Um deles é Ahrar al-Sham, uma milícia islâmica que quer um regime salafista, jihadista, mas com uma diferença: não querem impor o estado islâmico de imediato, mas ganhar tempo para o futuro e, entretanto, atrair as pessoas para a religião. E há Jabhat Fateh al-Sham, originalmente al-Nusra. É o maior poder, e tem uma força militar importante ao norte de Aleppo, em Aleppo e em torno de Idlib. Em Damasco e arredores há também Jaysh al-Islam, uma milícia que é uma espécie de feudo da família de Zahran Alloush, que foi assassinado pelos russos em 2015.

SA: O que está acontecendo no sul, ao redor de Daraa?

GN: A região de Daraa tem essa especificidade – sua geografia é uma ratoeira. Para grupos lá, as coisas podem ocorrer de duas maneiras. Se o regime jordaniano abrir a fronteira, eles podem respirar; Se ele fechar a fronteira, eles serão sufocados entre o regime sírio e a Jordânia. Esta geografia torna-os muito sensíveis às políticas de fronteira do regime jordaniano.

Muitos dos batalhões do Exército Livre da Síria se viram obrigados, em função da busca de solidariedade, munições, armas e tratamento médico para os feridos, a se tornar muito dependentes da Jordânia. Agora mesmo, a Jordânia não quer uma guerra, e está fechando essa torneira. Então, essas pessoas não podem fazer muito mais ou serão esmagadas.

SA: Os comitês populares formados durante a revolução ainda existem? O que eles estão fazendo?

Uma coisa importante que caracterizou a revolução síria foi que ela foi capaz de criar – ou as massas populares foram capazes de criar – órgãos de auto-organização. Estas foram as coordenações locais que já discutimos e, a partir de 2012, os chamados conselhos civis ou conselhos locais, os órgãos de autoadministração para a gestão da vida quotidiana. Em 2011, 2012 e até mesmo em 2013, este foi um fenômeno imenso. Onde quer que o regime não estivesse presente – e mesmo em alguns lugares onde estava – havia esses dois órgãos de auto-organização e autoadministração.

No entanto, 2013 trouxe, por um lado, o EI e o avanço dos grupos islâmicos reacionários e sectários e, por outro lado, a violência sem precedentes do regime. Esse foi o ponto onde realmente começou a aplicação com selvageria de uma guerra de terra arrasada, destruindo infra-estrutura e edifícios. Isso foi quando as ondas de refugiados sírios realmente começaram a crescer, a partir de 2013 em diante. Foi também quando esses conselhos e coordenações se enfraqueceram, com as pessoas que estavam dirigindo sendo mortas, deslocadas ou transformadas em refugiados. É por isso que falamos do avanço da contra-revolução a partir de 2013 e com ela o refluxo do movimento popular.

Refluxo não significa desaparecimento.

Hoje, há apenas uma hora, houve uma manifestação popular na cidade de Zakieh, perto de Damasco. Hoje ainda há algumas coordenações, embora enfraquecidas. O movimento popular não está morto. Cada vez que as armas silenciam, as massas populares reaparecem. Elas renascem. Vemos isso apesar da destruição, apesar da guerra, apesar do massacre, apesar do deslocamento e do êxodo.

Isso ainda existe hoje, mas é muito fraco. Participamos em alguns comitês de coordenação em condições muito difíceis, e ainda existem alguns conselhos locais que ainda estão ativos. Embora as organizações do movimento tenham retrocedido e foram severamente enfraquecidas, elas sobrevivem.

SA: Esta é a grande questão: o que deve ser feito? Qual é a estratégia da esquerda revolucionária na Síria?

GN: A perspectiva de curto prazo de nossa organização socialista revolucionária na Síria, a Corrente Revolucionária de Esquerda, envolve várias tarefas. É claro, precisamos sobreviver – para conservar a força que temos e recrutar novos ativistas. Em segundo lugar, precisamos tomar parte em todas as lutas que ocorrem, nas coordenações e conselhos sobreviventes. Onde quer que haja luta, seja em que condição for, precisamos fazer parte dela. Por mais difíceis que sejam as condições, nossa tarefa é participar das lutas enquanto se constrói o partido. Nosso jornal é produzido na Síria. Quando você olha para ele, há alguns erros de impressão, erros ortográficos e gramática ruim – e daí? O importante é que são os ativistas de lá, não nós no exílio, que o estão produzindo e distribuindo. É uma experiência de aprendizagem, em condições onde raramente há eletricidade[16].

Isso é a metade da tarefa. A outra é que precisamos criar uma frente única, reunindo todas as forças da esquerda e todas as forças democráticas e revolucionárias na Síria. Esse poderia ser um pólo de atração diferente da oposição burguesa, do regime e dos seus aliados ou dos extremistas islâmicos. Fizemos alguns passos nessa direção, apesar das dificuldades. Anunciamos um acordo de cooperação com a Aliança Democrática, que envolve vários partidos, incluindo os antigos comunistas. Precisamos dessa frente tanto para dar forma ao que está acontecendo hoje quanto no longo prazo. Para nós, é importante preparar-se para o período que está por vir. O atual estado de coisas não pode durar para sempre. Chegará o momento em que a guerra e o bombardeio cessarão, e quando isso acontecer precisaremos estar a prontos. Precisaremos de força para nos enraizar na população, nas classes populares. Precisamos estar com eles para garantir que o destino da Síria não seja decidido pelas potências regionais ou imperialistas ou pela burguesia síria.

Criar esse equilíbrio de forças começa hoje. Portanto, esse é o tripé em que se baseia nosso trabalho – estar nas lutas das massas, construir o partido e formar uma frente única das forças democráticas. Claro, também levantamos nossos slogans, dizendo: “Nem Washington nem Moscou, nem Riyadh nem Ankara nem Teerã”. Isto é para educar as pessoas, para sublinhar que a solução não virá desses poderes, mas que é o próprio povo sírio quem deve decidir seu próprio destino. E é para pressionar a oposição burguesa que está negociando com o regime, para que não aceitem a continuação do regime com alguns ajustes e alguns postos para si próprios.

Precisamos aprofundar as lutas das massas sírias para obter a mais profunda e democrática mudança social e política. Essa será uma luta muito longa, por isso precisamos construir nossas forças para continuar lutando por um longo tempo.

SA: Você é pessimista ou otimista?

GN: Estou muito otimista, contrariando o humor geral. A batalha é difícil. Mas veja, nossa revolução já dura seis anos. Que lições trouxeram esses seis anos?

Primeiro, que podemos nos revoltar, que o regime não pode simplesmente esmagar a vontade popular, não importa os meios que ele utilizar contra ela e os aliados que encontrar. Algo está destruído no regime. Alguma coisa terminou. Se os americanos, os russos e as demais potências nos impuserem uma situação em que Bashar al-Assad e seu clã continuarão a reinar, nunca mais poderão reinar como antes.

O regime sobrevive com um chamado ambiente “lealista”, composto por mais de dez milhões de pessoas, quase a metade da população, ainda sob seu controle. E essas pessoas têm um ódio, um ódio real, desse regime. Sua vida diária é um martírio. Há imensas manifestações contra o regime e a família Assad. Há grandes explosões à frente, e é aí que eles vão acontecer. Onde o regime pensa que é mais estável é onde menos o é. Os dias em que alguém poderia governar o povo sírio dizendo: “Calem suas bocas, vou fazer o que eu quero”, acabaram.

Depois, há a lição da experiência. Tempos atrás, se você fosse um dos “velhos” socialistas revolucionários e queria falar sobre socialismo, poderia dizer que queremos um Estado operário baseado em conselhos operários e camponeses e tudo mais. As pessoas faziam perguntas, então você poderia dizer, isso aconteceu, pelo menos por um momento, na Alemanha, na Hungria, e mais importante, na Rússia. Você poderia dizer tudo isso, mas estava muito longe da experiência das pessoas. Agora tudo isso é muito mais simples. A auto-organização é algo que as pessoas entendem por causa das coordenações. O povo sírio, sem ler Lenin, Marx ou Trotsky, já fez isso em suas lutas. Então, quando falamos de conselhos operários e camponeses, eles o entendem porque o fizeram. É a sua experiência vivida.

A terceira lição diz respeito às forças islâmicas. Eles sempre costumavam dizer que o Islã é a solução. Essa hipótese está agora esgotada na Síria. As pessoas viram o que significa quando as forças islâmicas religiosas impõem seu modelo de governo. Esse argumento foi posto à prova e falhou.

O que resta é o socialismo. Compete a nós. Acreditamos que essa é a única solução, a mais humanista e a mais igualitária, para as massas da Síria e de qualquer outro lugar. A luta continua.

Ghayath Naisse é um dirigente da Corrente Revolucionária de Esquerda, uma organização socialista revolucionária síria. Simon Assaf é membro do Socialist Workers Party e al-Muntada al-Ishtiraki (Fórum Socialista) no Líbano.

 

 

Tradução ao português de Francisco Silva

 

[1] Obrigado a Dave Sewell por seu trabalho na transcrição desta entrevista.

[2]  Jabhat al-Nusra foi a organização síria da Al Qaeda, que subsequentemente rompeu com a segunda e se rebatizou de Jabhat Fateh al-Sham al-Islamiyya. Ahrar al-Sham é outra milícia islâmica, atualmente aliada com Jabhat Fateh al-Sham.

[3] O Hezbollah é uma milícia islâmica xiita e um partido político baseado no Líbano.

[4] A guerra Irã-Iraque de 1980-88.

[5] Takfiri é um termo árabe derrogatório para um muçulmano que acusa os outros de serem incrédulos. É freqüentemente usado para descrever grupos como ISIS.

[6] O PYD (Partiya Yekîtiya Demokrat, Partido da União Democrática) é um partido curdo no norte da Síria aliado ao PKK (Partiya Karkerên Kurdistanê, Partido dos Trabalhadores do Curdistão), a principal organização curda na Turquia.

[7] Barak, ex-primeiro-ministro de Israel, foi ministro da Defesa de 2007-13.

[8] O Partido Baath, ao qual o Presidente Bashar al-Assad pertence, foi o partido no poder da Síria desde o golpe de 1963 e é discutido em mais detalhes abaixo.

[9] Esta é uma referência à teoria de Tony Cliff da revolução permanente desviada, detalhada em um panfleto do mesmo nome e disponível on-line aqui: www.marxists.org/archive/cliff/works/1963/xx/permrev.htm

[10] Anne Alexander escreveu sobre o líder egípcio Gamal Abdel Nasser no número 112 desta revista: http://isj.org.uk/suez-and-the-high-tide-of-arab-nationalism

[11] O termo “bonapartista” deriva da análise de Karl Marx do regime de Napoleão Bonaparte na França, que conseguiu estabelecer-se em um golpe de Estado quando as forças das classes insurgentes desencadeadas pelas revoluções de 1848 se esgotaram.

[12] Os Drusos são uma minoria religiosa encontrada principalmente na Síria, no Líbano e em Israel.

[13] Os alauítas são membros de um ramo do Islã xiita, encontrado principalmente na Síria e na Turquia, a que Assad pertence.

[14] Al-Zabadani é uma pequena cidade na fronteira com o Líbano.

[15] Assírios e turcomanos são ambos grupos minoritários na população síria.

[16] A RLC, fundada na Síria em outubro de 2011, publica na Síria um jornal mensal chamado Frontline.