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MUNDO

Guerra na Ucrânia: dez lições da Síria

O texto a seguir foi escrito por um coletivo de exilados sírios “https://cantinesyrienne.fr/”, participantes ativos nos protestos contra o ditador Bashar al-Assad, durante a Primavera Árabe de 2011, e na Guerra Civil que se seguiu. Após uma década de um conflito que envolveu, em lados opostos, a Otan e a Rússia de Putin, estes ativistas da Revolução Síria trazem, a partir de suas experiências, uma contribuição de como apreender os recentes conflitos e traçar uma estratégia contra todos os imperialismos, um “internacionalismo a partir de baixo”, como eles destacam.

Tradução: João Gabriel Tury
Reprodução/Viacheslav Ratynskyi

Sabemos que pode ser difícil se posicionar em um momento como esse. Entre a unanimidade ideológica da grande mídia e as vozes que transmitem sem escrúpulos a propaganda do Kremlin, pode ser difícil saber a quem escutar. Entre uma OTAN de mãos sujas e um regime russo vilão, não sabemos mais a quem combater, a quem apoiar.

Como participantes e amigos da revolução síria, queremos defender uma terceira opção, oferecendo um ponto de vista baseado nas lições de mais de dez anos de revolta e guerra na Síria.

Deixemos isso claro desde o início: hoje, ainda defendemos que a revolta na Síria foi, sob qualquer perspectiva, uma revolta popular, democrática e emancipatória, especialmente os comitês de coordenação e os conselhos locais da revolução. Embora muitos tenham esquecido tudo isso, sustentamos que nem as atrocidades e propaganda de Bashar al-Assad nem as dos jihadistas podem silenciar essa voz.

Não pretendemos, a seguir, comparar o que está acontecendo na Síria e na Ucrânia. Se ambas as guerras começaram com uma revolução, e se um dos agressores é o mesmo, as situações permanecem muito diferentes. Em vez disso, com base no que aprendemos com a revolução na Síria e, posteriormente, com a guerra, esperamos oferecer pontos de partida para auxiliar aqueles que adotam, de forma sincera, princípios emancipatórios na elaboração de suas posições.

1. Ouça as vozes das pessoas imediatamente impactadas pelos eventos

Em vez de especialistas em geopolítica, devemos ouvir as vozes daqueles que viveram a revolução em 2014 e viveram a guerra; devemos ouvir aqueles que sofreram sob o governo de Putin na Rússia e em outros lugares por vinte anos. Convidamos você a preferir as vozes de pessoas e organizações que defendem os princípios da democracia direta, feminismo e igualitarismo, nesse contexto. Compreender suas posições na Ucrânia e as suas exigências para os que estão fora o ajudará a chegar a uma opinião própria e informada.

Adotar essa abordagem para a Síria teria promovido – e talvez sustentado – os impressionantes e promissores experimentos de auto-organização que floresceram em todo o país. Além disso, ouvir as vozes vindas da Ucrânia nos lembra que todas essas tensões começaram com a revolta de Maidan. Por mais imperfeita ou “impura” que ela possa ser, não cometamos o erro de reduzir a revolta popular ucraniana a um conflito de interesses entre grandes potências, como alguns fizeram intencionalmente para confundir a revolução síria.

2. Cuidado com a geopolítica de bancada

um enquadramento geopolítico abstrato da situação pode deixá-lo com uma compreensão abstrata e desconectada do local.

Certamente, é desejável compreender os interesses econômicos, diplomáticos e militares das grandes potências; contudo, contentar-se com um enquadramento geopolítico abstrato da situação pode deixá-lo com uma compreensão abstrata e desconectada do local. Essa forma de compreensão tende a ocultar os protagonistas comuns do conflito, aqueles que se assemelham a nós, aqueles com os quais podemos nos identificar. Acima de tudo, não esqueçamos: o que acontecerá é que as pessoas sofrerão por causa das escolhas de governantes que veem o mundo como um tabuleiro de xadrez, como um reservatório de recursos a serem saqueados. Este é o modo como os opressores veem o mundo. Essa perspectiva nunca deveria ser adotada pelos povos, que devem se concentrar em construir pontes entre eles, em encontrar interesses comuns.

Isso não significa que devemos negligenciar a estratégia, mas significa criar estratégias em nossos próprios termos, em uma escala na qual possamos agir nós mesmos – não discutir se devemos mover divisões de tanques ou cortar as importações de gás. Veja nossas propostas concretas no final do artigo para saber mais.

3. Não aceite qualquer distinção entre exilados “bons” e “maus”

Vamos ser claros – embora não ideal, a recepção de refugiados sírios na Europa foi muitas vezes mais acolhedora do que a recepção oferecida a refugiados da África Subsaariana, por exemplo. Imagens de refugiados negros rejeitados na fronteira entre a Ucrânia e a Polônia, e comentários na mídia corporativa privilegiando a chegada de refugiados ucranianos de “alta qualidade” em detrimento de bárbaros sírios são provas de um racismo europeu cada vez mais desinibido. Defendemos o acolhimento incondicional dos ucranianos que fogem dos horrores da guerra, mas recusamos qualquer hierarquia entre os refugiados.

4. Desconfie da mídia corporativa

Se, como na Síria, eles fingem adotar uma agenda humanista e progressista, a maioria desses veículos tendem a se limitar a um retrato vitimizado e despolitizado dos ucranianos, em sua terra e no exílio. Eles só terão a oportunidade de falar sobre casos individuais, pessoas fugindo, medo de bombas e assim por diante. Isso impede que os espectadores entendam os ucranianos como atores políticos de pleno direito capazes de expressar opiniões ou análises políticas sobre a situação em seu próprio país. Além disso, esses meios de comunicação tendem a promover uma posição grosseiramente pró-ocidental, sem nuances, sem profundidade histórica ou investigação sobre os interesses que guiam os governos ocidentais, os quais são apresentados como defensores da bondade, da liberdade e de uma democracia liberal idealizada.

5. Não retrate os países ocidentais como o eixo do bem

Ocidente construiu seu poder sobre o colonialismo, o imperialismo, a opressão e a pilhagem da riqueza de centenas de povos ao redor do mundo – e continua todos esses processos hoje.

Mesmo que não invadam diretamente a Ucrânia, não sejamos ingênuos em relação à OTAN e aos países ocidentais. Devemos nos recusar a apresentá-los como os defensores do “mundo livre”. Lembre-se, o Ocidente construiu seu poder sobre o colonialismo, o imperialismo, a opressão e a pilhagem da riqueza de centenas de povos ao redor do mundo – e continua todos esses processos hoje.

Para falar apenas do século XXI, não esquecemos os desastres infligidos pelas invasões do Iraque e do Afeganistão. Mais recentemente, durante as revoluções árabes de 2011, em vez de apoiar as correntes democráticas e progressistas, o Ocidente se preocupou principalmente em manter sua dominação e seus interesses econômicos. Ao mesmo tempo, continua vendendo armas e mantendo relações privilegiadas com ditaduras árabes e monarquias do Golfo. Com sua intervenção na Líbia, a França encobriu uma guerra por razões econômicas com a vergonhosa mentira de um esforço para apoiar a luta pela democracia.

Além desse papel internacional, a situação nesses países continua a se deteriorar à medida que o autoritarismo, a vigilância, a desigualdade e, acima de tudo, o racismo continuam se intensificando.

Hoje, se acreditamos que o regime de Putin representa uma ameaça maior à autodeterminação dos povos, não é porque os países ocidentais de repente se tornaram “bonzinhos”, mas porque as potências ocidentais não têm mais tantos meios para manter sua dominação e hegemonia . E continuamos desconfiados dessa hipótese – porque se Putin for derrotado pelos países ocidentais, isso contribuirá para dar-lhes mais poder.

Portanto, aconselhamos os ucranianos a não contarem com a “comunidade internacional” ou as Nações Unidas – que, como na Síria, são evidentes em sua hipocrisia e tendem a induzir as pessoas a acreditar em quimeras.

6. Lute contra todos os imperialismos!

esse anti-imperialismo maniqueísta, que é puramente abstrato, recusa-se a ver o imperialismo em qualquer ator que não seja o Ocidente.

“Campismo” é a palavra que usamos para descrever uma doutrina de outra época. Durante a Guerra Fria, os adeptos desse dogma sustentavam que o mais importante era apoiar a URSS a todo custo contra os estados capitalistas e imperialistas. Esta doutrina persiste hoje na parte da esquerda radical que apoia a Rússia de Putin na invasão da Ucrânia ou então relativiza a guerra em curso. Como fizeram na Síria, usam o pretexto de que os regimes russo ou sírio encarnam a luta contra o imperialismo ocidental e atlantista [isto é, pró-OTAN]. Infelizmente, esse anti-imperialismo maniqueísta, que é puramente abstrato, recusa-se a ver o imperialismo em qualquer ator que não seja o Ocidente.

No entanto, é necessário reconhecer o que os regimes russo, chinês e até iraniano vêm fazendo há anos. Eles vêm estendendo sua dominação política e econômica em certas regiões, despojando as populações locais de sua autodeterminação. Que os campistas usem a palavra que quiserem para descrever isso (caso “imperialismo” lhes pareça inadequado); mas nunca aceitaremos qualquer desculpa, em nome de uma precisão pseudoteórica, que sirva para infligir violência e dominação sobre populações.

Pior ainda, essa posição impele essa “esquerda” a retransmitir a propaganda desses regimes a ponto de negar atrocidades bem documentadas. Falam de “golpe de estado” quando descrevem o levante Maidan ou negam os crimes de guerra perpetrados pelo exército russo na Síria. Essa esquerda chegou ao ponto de negar o uso do gás sarin pelo regime de Assad, apoiando-se em uma (muitas vezes compreensível) desconfiança da grande mídia para espalhar essas mentiras.

É uma atitude desprezível e irresponsável, considerando que a ascensão de teorias da conspiração nunca favorece uma posição emancipatória, mas sim a extrema direita e o racismo. No caso da guerra na Ucrânia, esses anti-imperialistas imbecis, alguns dos quais ainda se dizem antifascistas, são aliados circunstanciais de grande parte da extrema direita.

Na Síria, inflamada por fantasias supremacistas e sonhos de uma cruzada contra o Islã, a extrema direita já defendia Putin e o regime sírio por suas supostas ações contra o jihadismo – sem nunca entender a responsabilidade que o regime de Assad tinha pela ascensão dos jihadistas na Síria.

7. Não atribua responsabilidades iguais à Ucrânia e à Rússia.

Gostaríamos que aqueles que defendem a liberdade e a igualdade fossem unânimes em se posicionar contra esses ditadores que promovem guerras contra o povo. Teríamos apreciado se esse tivesse sido o caso em referência à Síria.

Na Ucrânia, a identidade do agressor é conhecida por todos. Se a ofensiva de Putin é, de certa forma, uma resposta à pressão da OTAN, é sobretudo a continuação de uma ofensiva imperial e contra-revolucionária. Depois de invadir a Crimeia, depois de ter ajudado a esmagar os levantes na Síria (2015-2022),  Bielorrússia (2020) e Cazaquistão (2022), Vladimir Putin não tolera mais esse vento de protesto – representado pela derrubada do presidente pró-Rússia na revolta Maidan – dentro dos países sob sua influência. Ele deseja esmagar qualquer desejo emancipatório que possa enfraquecer seu poder.

Também na Síria não há dúvidas sobre quem é o responsável direto pela guerra. O regime sírio de Bashar al-Assad, ao ordenar à polícia que atirasse, prendesse e torturasse os manifestantes desde os primeiros dias de protesto, optou unilateralmente por iniciar uma guerra contra a população. Gostaríamos que aqueles que defendem a liberdade e a igualdade fossem unânimes em se posicionar contra esses ditadores que promovem guerras contra o povo. Teríamos apreciado se esse tivesse sido o caso em referência à Síria.

Se entendemos e nos juntamos ao apelo para acabar com a guerra, insistimos que devemos fazê-lo sem qualquer ambiguidade quanto à identidade do agressor. Nem na Ucrânia, nem na Síria, nem em qualquer outro lugar do mundo, as pessoas comuns podem ser culpadas por pegar em armas para tentar defender suas próprias vidas e as de suas famílias.

De maneira mais geral, aconselhamos as pessoas que não sabem o que é uma ditadura (ainda que os países ocidentais estejam se tornando mais abertamente autoritários) ou o que é ser bombardeado a se abster de dizer aos ucranianos – como alguns já disseram aos sírios ou aos ativistas de Hong Kong – que não devem pedir ajuda ao Ocidente ou não devem querer a democracia liberal ou representativa como sistema político mínimo. Muitas dessas pessoas já estão cientes das imperfeições desses sistemas políticos – mas sua prioridade não é manter uma posição política irrepreensível, mas sim sobreviver aos bombardeios do dia seguinte, ou não acabar em um país em que uma palavra descuidada pode colocá-lo vinte anos na prisão. Insistir nesse tipo de discurso purista demonstra a determinação de impor sua análise teórica em um contexto que não é o seu. Isso indica uma desconexão real com o local, um tipo de privilégio muito ocidental.

Em vez disso, vamos ouvir as palavras dos camaradas ucranianos que disseram, ecoando Mikhail Bakunin: “Acreditamos firmemente que a república mais imperfeita é mil vezes melhor do que a monarquia mais esclarecida”.

8. Compreenda que a sociedade ucraniana, como na Síria e na França, é atravessada por diferentes correntes

Estamos familiarizados com o procedimento em que um governante rotula uma séria ameaça com a intenção de espantar potenciais apoiadores. Isso inclui a retórica sobre o “terrorismo islâmico” que Bashar al-Assad usou desde os primeiros dias da revolução na Síria; da mesma forma, Putin e seus aliados têm brandido hoje o “nazismo” e o “ultranacionalismo” para justificar sua invasão da Ucrânia.

Se, por um lado, reconhecemos que essa propaganda é deliberadamente exagerada e que não devemos legitimá-la ao pé da letra, por outro, nossa experiência na Síria nos encoraja a não subestimar as correntes reacionárias dentro dos movimentos populares.

Na Ucrânia, nacionalistas ucranianos, incluindo fascistas, desempenharam um papel importante nos protestos de Maidan e na guerra que se seguiu contra a Rússia. Além disso, eles se beneficiaram dessa experiência e se tornaram parte legítima do exército regular da Ucrânia, como o Batalhão Azov. No entanto, isso não significa que a maioria da sociedade ucraniana seja ultranacionalista ou fascista. A extrema direita obteve apenas 4% dos votos nas últimas eleições; ucraniano, judeu e falante russo, o presidente foi eleito por 73%.

Na revolta na Síria, os jihadistas começaram como atores marginais, mas ganharam importância crescente, em parte graças ao apoio externo, permitindo-lhes impor-se militarmente em detrimento do movimento civil e dos participantes mais progressistas. Em toda parte, a extrema direita ameaça a ampliação das democracias e das revoluções sociais; este é o caso na França hoje, sem dúvida. Na França, essa mesma extrema direita tentou se impor durante o  movimento dos Coletes Amarelos. Se ela então foi derrotada, foi por causa da presença de posições igualitárias e da determinação de ativistas antiautoritários e antifascistas, não pelo tagarelar de especialistas.

Ter o cuidado de defender a resistência popular (tanto na Ucrânia quanto na Rússia) contra a invasão russa tampouco equivale ser ingênuo em relação ao regime político que emergiu de Maidan. Não se pode dizer que a queda de Yanukovych resultou em uma extensão real da democracia direta ou no desenvolvimento da sociedade igualitária que desejamos para a Síria, Rússia, França e todo o mundo. Usando uma expressão que nos é bem conhecida, alguns ativistas ucranianos chamam o pós-Maidan de “revolução roubada”. Além de conceder um lugar importante aos ultranacionalistas, o regime ucraniano foi restabelecido por oligarcas e outros que se preocupavam em defender seus próprios interesses econômicos e políticos e estender um modelo capitalista e neoliberal de desigualdade. Da mesma forma, embora o nosso conhecimento sobre este assunto resta limitado, é difícil para nós acreditar que o regime ucraniano não tenha qualquer responsabilidade pelo agravamento das tensões com as regiões separatistas do Donbass.

Na Síria, os revolucionários envolvidos no local têm todo o direito de criticar ferozmente as escolhas da oposição política que se posiciona em Istambul. Ainda lamentamos sua escolha de não levar em conta as reivindicações legítimas de minorias como os curdos.

Um regime neoliberal e elementos fascistas são ingredientes encontrados em todas as democracias ocidentais. Embora esses oponentes da emancipação não devam ser subestimados, isso não é motivo para não defender a resistência popular a uma invasão. Pelo contrário, como gostaríamos que outros tivessem feito durante a revolução síria, pedimos a você que apoie as correntes auto-organizadas mais progressistas dentro da defesa.

9. Apoie a resistência popular na Ucrânia e na Rússia

Como as revoluções árabes, os Coletes Amarelos e os Maidan provaram, as revoltas do século 21 não serão ideologicamente “puras”. Embora entendamos que é mais confortável e estimulante identificar-se com atores poderosos (e vitoriosos), não devemos trair nossos princípios fundamentais. Convidamos a esquerda radical a tirar seus velhos óculos conceituais para confrontar suas posições teóricas com a realidade. Essas posições devem ser ajustadas de acordo com a realidade, e não o contrário.

É por essas razões que, na Ucrânia, convocamos as pessoas a priorizar as iniciativas de apoio que vêm da base: as iniciativas de autodefesa e de auto-organização que estão florescendo atualmente. Pode-se descobrir que, muitas vezes, as pessoas que se organizam podem de fato defender concepções radicais de democracia e justiça social – mesmo que não se considerem de “esquerda” ou “progressistas”.

Além disso, como  muitos ativistas russos disseram, acreditamos que um levante popular na Rússia poderia ajudar a acabar com a guerra, assim como em 1905 e 1917. Quando consideramos a extensão da repressão na Rússia desde o início da guerra – mais de dez mil manifestantes presos , censura da mídia, bloqueio de redes sociais e talvez, em breve, da internet – é impossível não ter esperança que uma revolução possa levar à queda do regime. Isso finalmente acabaria, de uma vez por todas, com os crimes de Putin na Rússia, Ucrânia, Síria e outros lugares.

Este é também o caso da Síria onde, após a internacionalização do conflito, longe de estarmos ressentidos com o povo iraniano, russo ou libanês, suas revoltas poderiam nos fazer acreditar novamente na possibilidade de que Bashar al-Assad também caia.

Da mesma forma, queremos ver agitações radicais e extensões radicais da democracia, justiça e igualdade nos Estados Unidos, na França e em todos os outros países que baseiam seu poder na opressão de outros povos ou em parte de sua própria população.

10. Construa um novo internacionalismo a partir de baixo

Embora nos oponhamos radicalmente a todos os imperialismos e a todas as formas modernas de fascismo, acreditamos que não podemos nos limitar apenas a posturas antiimperialistas ou antifascistas. Mesmo que sirvam para explicar muitos contextos, também correm o risco de limitar a luta revolucionária a uma visão negativa, reduzindo-a à reatividade, à resistência permanente sem um caminho a seguir.

Enquanto esperamos o surgimento, como parece estar acontecendo no Chile, de novas organizações revolucionárias baseadas em iniciativas locais auto-organizadas, defendemos um internacionalismo que apoie as revoltas populares e acolha todos os exilados.

Acreditamos que continua sendo essencial fazer uma proposta positiva e construtiva como o internacionalismo. Isso significa vincular revoltas e lutas pela igualdade em todo o mundo.

Uma terceira opção existe além da OTAN e Putin: o internacionalismo desde baixo. Hoje, um internacionalismo revolucionário deve convocar as pessoas em todos os lugares para defender a resistência popular na Ucrânia, assim como deve convocá-las para apoiar os conselhos locais sírios, os comitês de resistência no Sudão, as assembleias territoriais no Chile, as rotatórias dos Coletes Amarelos, e a intifada palestina.

É claro que vivemos à sombra de um internacionalismo operário – apoiado por Estados, partidos, sindicatos e grandes organizações – que foi capaz de influenciar os conflitos internacionais na Espanha em 1936 e, posteriormente, no Vietnã e na Palestina nos anos 1960 e anos 70.

Hoje, em todo o mundo – da Síria à França, da Ucrânia aos Estados Unidos – carecemos de forças emancipatórias em grande escala dotadas de bases materiais substanciais. Enquanto esperamos o surgimento, como parece estar acontecendo no Chile, de novas organizações revolucionárias baseadas em iniciativas locais auto-organizadas, defendemos um internacionalismo que apoie as revoltas populares e acolha todos os exilados. Também neste esforço estamos preparando o terreno para um verdadeiro retorno ao internacionalismo, que, esperamos, um dia volte a representar um caminho alternativo distinto dos modelos das democracias capitalistas ocidentais e do autoritarismo capitalista, seja russo ou chinês.

Frente ao que estávamos fazendo na Síria, tal concepção certamente teria ajudado que a revolução mantivesse uma cor democrática e igualitária. Quem sabe até poderia ter contribuído para que atingíssemos a vitória. Portanto, somos internacionalistas não apenas por uma questão de princípio ético, mas também como consequência de uma estratégia revolucionária. Defendemos, portanto, a necessidade de criar vínculos e alianças entre forças auto-organizadas que trabalham indistintamente pela emancipação de todos.

Isso é o que chamamos de internacionalismo a partir de baixo, o internacionalismo dos povos.

 

Posições propostas sobre a invasão russa da Ucrânia

  • Expressar total apoio à resistência popular ucraniana contra a invasão russa.
  • Priorizar o apoio a grupos auto-organizados que defendem posições emancipatórias na Ucrânia por meio de doações, ajuda humanitária e divulgação de suas demandas.
  • Apoiar as forças progressistas anti-guerra e anti-regime na Rússia e divulgar suas posições.
  • Abrigar exilados ucranianos e organizar eventos e infraestrutura para que suas vozes sejam escutadas.
  • Combater todo o discurso pró-Putin, especialmente da esquerda. A guerra na Ucrânia oferece uma oportunidade crucial para acabar definitivamente com o campismo e a masculinidade tóxica.
  • Combater o discurso pró-OTAN por ideologia. 
  • Recusar apoio àqueles na Ucrânia e em outros lugares que defendem políticas ultranacionalistas, xenófobas e racistas.
  • Crítica e desconfiança permanente das ações da OTAN na Ucrânia e em outros lugares.
  • Manter a pressão sobre os governos por meio de manifestações, ação direta, banners, fóruns, petições e outros meios para que sejam cumpridas as demandas de atores auto-organizados no local.

 

Infelizmente, isso não é muito, mas é tudo o que podemos oferecer enquanto não haja, aqui ou em outro lugar, uma força autônoma lutando por igualdade e emancipação e que seja capaz de fornecer apoio econômico, político ou militar.

Esperamos sinceramente que, desta vez, essas posições levem a melhor. Se isso acontecer, ficaremos profundamente felizes, mas nunca esqueceremos que isso esteve longe de ser o caso da Síria, e que isso custou muito caro.