Raúl Marcelo Devia Ilabaca, 56, é advogado trabalhista e dirigente da Izquierda Comunista (Chile). Ele fala sobre movimento “No más AFP” que agita o país e também sobre o resultado das últimas eleições municipais ocorrida em 23 de outubro. Candidato à prefeito em San Antonio, Raúl obteve 16,38% dos votos, a maior votação do pacto eleitoral Pueblo Unido.
AV: Como foi o dia nacional de paralisação e mobilização, ocorrido no último dia 4 de novembro? Qual o seu balanço?
R: Foi um êxito. Houve manifestações e paralisações convocadas pela Coordenação Nacional do movimento “NO+AFP” desde as 6 horas da manhã. Elas me fizeram recordar as jornadas de protesto contra a ditadura militar de Pinochet, com bloqueios de ruas nas principais cidades do país, paralisações o dia todo dos serviços públicos, universidades e algumas escolas secundárias ocupadas por estudantes e professores.
No setor produtivo, paralisaram setores portuários do norte e sul do país e mineiros do norte, como é o caso da mina de Chuquicamata. Ocorreram marchas e concentrações nas capitais de todo país e em outras tantas mais, que tomaram os centros das cidades com milhares de manifestantes demostrando sua adesão ao fim das Administradoras de Fundos de Pensiones (AFP).
AV: Qual é a origem e como funciona o sistema previdenciário no Chile?
R: O sistema previdenciário do Chile foi imposto pela ditadura militar em 1980, mudando o sistema solidário de distribuição tripartite, inter-geracional, conhecido como caixas da previdência social, que antes existiam por setores da produção e serviços. Eram 32 caixas aproximadamente. No seu lugar colocaram um sistema de capitalização individual, administrado pelo setor privado, que foi imposto para a acumulação de capital, para impulsionar a economia neoliberal.
Essas administradoras dos fundos previdenciários colocam o dinheiro do trabalhador em ações de grandes empresas nacionais e internacionais para render e quando o trabalhador se aposenta, entregam um salario para o resto de sua vida em mensalidades, que hoje são muito pequenas. Elas equivalem a 25% do salário do trabalhador ativo em sua categoria.
Mas essa mudança só ocorreu para os trabalhadores do setor público e privado. Já as forças armadas até hoje conservam o sistema de caixas da previdência social antiga. Assim, conseguem manter seus salários da ativa e se aposentam com 30 anos de serviço. Já os demais trabalhadores se aposentam, quando homens, aos 65 anos e, as mulheres, aos 60 anos, através do atual sistema de capitalização individual.
AV: Como começou o conflito?
R: Bom, há 6 anos um setor da classe trabalhadora formou uma coordenação nacional chamada “No más AFP”. É como se dissessem: não queremos mais as Administradoras dos Fundos de Pensão (AFPs). Bancários, trabalhadores da saúde, funcionários públicos, comerciários, portuários, dirigentes sindicais, fizemos dois congressos nacionais, em Valdivia, em 2013 e, depois, em Santiago, em 2016. Com isso, foi impulsionada a luta contra este sistema previdenciário, que estava outorgando pensões de miséria aos aposentados.
Foi depois do congresso de 2016 que definimos um calendário de manifestações mais consistente, já que surgiram alguns fatos que impulsionam fortemente a luta: a denúncia na imprensa de que a esposa do presidente da Câmara de Deputados, Osvaldo Andrade, havia recebido um salário milionário como aposentadoria. Era de cinco milhões de pesos chilenos (quase 25 mil reais), como ex- funcionária da Gendarmaria – seguranças do sistema carcerário – do Chile.
O mesmo ocorreu com outros dirigentes desse mesmo setor, como é o caso dos militares, marinheiros, setor da aeronáutica e carabineiros – um equivalente à PM do Brasil -, todos eles usufruindo do sistema antigo de aposentaria, ao contrário dos trabalhadores do setor público e privado. Todos esses elementos da realidade produziram uma situação nova no país, de rechaço e ódio ao sistema das AFP´s. Nesse contexto, a Coordenação Nacional do “NO+AFP” convocou uma passeata familiar para 21 de julho deste ano. O resultado foi que milhares de pessoas saíram às ruas para se manifestar contra o sistema previdenciário atual.
AV: Qual é a proposta do movimento No Más AFP?
R: A proposta é a transformação radical do sistema previdenciário. Acabar com o sistema de capitalização individual. Propomos um sistema de distribuição solidário, tripartite, universal e estatal de previdência social.
AV: O que propôs o governo?
R: O governo, até agora, propôs uma AFP estatal, subir a contribuição mensal em 5%, mas para chegar a 15% do total do salário (este último a cargo do patrão) e elevar a idade para aposentadoria das mulheres para 65 anos e dos homens a 70. Isso na verdade é manter o sistema individual de capitalização. Agora está falando em implementar um aumento do pilar solidário do estado para os aposentados, que hoje é muito pequeno. Isso significa um custo ao Estado do Chile de forma a não prejudicar o empresariado que utiliza os fundos previdenciários.
AV: Por que foi rechaçada a proposta, mesmo que se proponha uma AFP estatal?
R: Foi rechaçada toda esta proposta, porque mantém um caráter de sistema individual de capitalização e o que nós queremos é uma transformação total do sistema. Ela não resolve de verdade os problemas dos aposentados, ela mantém o que os empresários querem, ou seja, fundos para utilizar em suas empresas, um recurso muito lucrativo para eles, mas para a classe trabalhadora se mantém a miséria e pobreza em sua vida ativa ou como aposentado.
AV: Como é organizado o movimento?
R: O movimento se organiza através dos sindicatos nacionais, como bancários, saúde, mineiros, comerciários, portuários e funcionários públicos, por um lado, e também através de coordenações territoriais de muitas cidades do país. Essas duas vertentes conformam uma executiva nacional e assembleias nacionais, que através de congressos nacionais definem o caminho da luta.
AV: Como conseguiram gerar uma mobilização tão massiva?
R: Foi uma situação impulsionada por fatos pontuais, como falei anteriormente, mas também pelo que acontece no país nos últimos dois anos: corrupção de parlamentares, do próprio filho da presidenta Bachelet, manipulação de preços de algumas mercadorias por empresas contra a população. Essa combinação de fatos provocou a ira da população, bem captada pela coordenação. O chamado à passeata pacífica e familiar em um domingo foi muito bem recebido por todo mundo. Assim, surge a massiva mobilização que se combinou com um programa bem preparado pelo congresso de “No más AFP”, realizado em Santiago em abril do 2016, que contou com a participação de mais do 300 delegados de todo país. Nele definimos os passos a seguir. Entre eles estava o chamado à paralisação nacional do dia 4 de novembro.
AV: Qual foi a posição da CUT e dos partidos de esquerda?
R: Eles não participam da Coordenação. A CUT é dirigida por burocratas dos partidos tradicionais da esquerda chilena, ou seja, do Partido Comunista e do Partido Socialista. Eles fazem parte da coalização que sustenta o governo de Bachelet. Então eles apoiam as medidas do governo e não as dos trabalhadores organizados na Coordenação.
AV: Existe algum plano para seguir a mobilização?
R: Agora, depois do êxito da Paralisação Nacional, se chamará uma nova assembleia nacional da Coordenação para que em conjunto se defina os passos seguintes da mobilização. É muito importante assinalar que a Presidenta Bachelet, não tem dado resposta à Carta entregue pessoalmente a ela pela Executiva Nacional há dois meses. Isso demostra a paralisia do governo frente à demanda da classe trabalhadora organizada.
AV: Nas eleições de 23 de outubro, você foi candidato a prefeito no município de San Antonio obtendo 16,83%, ficando como 3º colocado. Você acha que foi um bom resultado? O que explica esse resultado?
R: Sim, foi muito bom o resultado. O que explica esse fenômeno é que o programa da candidatura partiu das palavras de ordem da população como a de “No mas AFP”, contra a lei da pesca artesanal, da defesa da educação gratuita e a defesa do porto de San Antônio para seus trabalhadores e trabalhadoras.
Mas também deve ser mencionado que foi a única candidatura da esquerda da comuna, um trabalho em equipe com os dirigentes sindicais, políticos e dos movimentos populares, que em conjunto com candidatos a vereadores, mostramos a unidade verdadeira frente à população de San Antônio, representando una alternativa ao duopólio da direita e da nova maioria (coalizão do governo Bachelet).
Por outro lado, posso assinalar que eu também sou muito conhecido na cidade. É minha cidade de infância, fiz todo meu ensino básico lá. Minha família tem professores muito conhecidos também. Além disso, parte de minha vida profissional como advogado trabalhista a serviço da classe trabalhadora também se deu lá. Tudo isso, em conjunto, explica a votação de um trotskista, militante do Izquierda Comunista e da LIT-QI.
AV: Você foi candidato pelo pacto eleitoral Pueblo Unido (PU). Que é quem faz parte de PU? Como se define os candidatos de PU?
R: Pueblo Unido foi um pacto eleitoral conformado pelo Partido Igualdade, definido como ferramenta do povo, em unidade com o Partido Regional Força Popular. Também fazem parte outros pequenos grupos e coletivos políticos sem legalidade para apresentar candidatos, como é o caso do Ukamau, movimento de moradores, movimento Todos a la Moneda, MST, Esquerda Libertária. Cada um deles apresenta seus candidatos nas diversas comunas onde há militantes. Também se abriu a legenda para lutadores sociais, populares, sindicais. Há um acordo sobre a proposta de candidatos e é apresentada em cada comuna onde podemos fazer a legenda PU.
AV: Qual o seu balanço mais geral das eleições como um todo? Quem se fortaleceu e quem saiu como perdedor?
R: Bem, no Chile, o fenômeno mundial de abstenções também fez parte da realidade de forma brutal. Cerca de 70% da população não foi votar no país. Isso é muito forte. Tudo isso mostra uma contradição entre a força do movimento de luta social na rua, que não se expressa claramente nas eleições burguesas. Quem terminou se favorecendo foi a direita que avançou em muitos municípios, tanto em números de prefeitos e vereadores eleitos, quanto em quantidade de votos.
Por outro lado, a nova maioria e seu governo, Bachelet, foram os perdedores. Em todos sentidos. Perderam as principais cidades do país para a direita e muitos municípios da região metropolitana caíram nas mãos da direita também.
Como um fenômeno à parte cabe destacar o triunfo na cidade de Valparaíso de um jovem advogado, Jorge Sharp, que é parte do movimento estudantil, de um setor autonomista, que foi apoiado pela esquerda, pelo pacto Pueblo Unido, Pacto Alternativa Democrática, movimentos sociais, políticos e de intelectuais, que teve 54% da votação, sendo a maior surpresa do país, um fenômeno a estudar para obter as lições para o próximo ano.
AV: Qual o desafio da esquerda revolucionária no Chile para as próximas eleições de 2017? Serão eleições gerais?
R: Em dezembro de 2017 haverá eleições para presidente, para o congresso nacional (deputados e senadores) e para os conselheiros regionais. Estes não têm poder de legislar, mas definem os orçamentos.
A esquerda revolucionária no Chile tem o desafio de enfrentar uma nova situação politica nacional marcada pelas lutas – principalmente o movimento “NO más AFP” -, pela crise que atravessa o governo de Bachelet (PS) e também pelo crescimento da direita. Neste cenário é muito importante ver como se responde ao um novo fenômeno que surgiu a partir da vitória de Sharp em Valparaiso. Junto com outros agrupamentos, como a Nova Democracia e a Esquerda Libertária, ele está chamando à conformação de um novo partido, tipo Podemos. Penso que estes são os desafios que temos pela frente.
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