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CULTURA

Mulher, negra e liderança do movimento Hip Hop em Porto Alegre

Aretha Ramos, uma liderança do movimento Hip Hop aqui do RS e fundadora da Batalha do Mercado, nos concedeu uma entrevista via áudio de whats app. Reproduzimos aqui alguns trechos dessa conversa que fala da vida dessa guerreira, da Batalha do Mercado, da cena do rap atual e do machismo no movimento Hip Hop.

Francisco: Oi Aretha, pra gente começar fala um pouco de ti, quantos anos tu tens, o que tu anda fazendo e como foi a tua ligação com o RAP.

Aretha: Eu tenho 23 anos, estou cursando o 4º semestre em Administração (curso superior) e trabalho nessa área. Eu sempre tive uma grande influência musical. A Black Music tá enraizada na minha família a partir da minha mãe. Até pelo meu nome que é uma referência de uma cantora de Soul Aretha Franklin. Minha mãe sempre gostou da Black Music, meus tios também. Então eu já nasci no meio e já gostei dessa cultura. E aos poucos fui conhecendo através do rádio um Rap ou outro e com a chegada da internet conheci de fato o Rap nacional. Com a internet eu consegui chegar até alguns eventos e batalhas que aconteciam fora de Porto Alegre. Vi alguns vídeos, ouvi músicas e fui me interessando pela cultura Hip Hop em si. Até então eu gostava do gênero, da música, mas eu não conhecia a fundo sobre isso. Eu tinha o gosto musical apenas. E aí me inseri no meio.

E com a internet eu acabei conhecendo umas pessoas que tinham vontade de formar um grupo. E naquela época 2009/2010 eu participei de um grupo onde eu era a única mulher. E a gente fez um trabalho, um EP. E isso foi uma experiência muito boa para eu entender como era o processo de produção de um Rap uma letra enfim. Mas pra mim aquele papel não era o papel que eu iria agregar na cultura de alguma forma. Eu achava que a letra poderia ser boa, mas ela não era boa o bastante. Acho que ela não tocava as pessoas de fato.

Com esse grupo eu fui conhecendo as Batalhas de MC’s e então fui conhecendo a Batalha da Leste de São Paulo que se inspirou na Batalha Santa Cruz que é a mais tradicional. Entrei em contato com o organizador dizendo que eu gostava daquele procedimento. E aí se criou uma amizade. E ele perguntou como era a cena local aqui no RS em POA. Eu particularmente não sabia de nenhum movimento de rua de batalhas de rua, só conhecia que havia batalhas tradicionais no Entre Bar e alguns eventos de Rap de vez em quando. Alguns shows. Não era uma coisa muito rotineira. Aí a gente teve a ideia de fazer uma edição especial da Batalha da Leste em POA. Sem ajuda de custo nenhum o organizador da Batalha da Leste, o Augusto, veio pra cá. Ele mesmo pagou a passagem. E eu recebi ele aqui na minha casa e fizemos uma edição. Essa edição eu não conhecia ninguém no meio do RAP, apesar de eu ter feito parte de um grupo eu não conhecia ninguém apenas aqueles guris mesmo e um círculo bem pequeno de amizades do Rap.

Então eu comecei através da internet a ir atrás de alguns MC’s que eu vi alguns vídeos na internet, que faziam freestyle. Começou um a divulgar pra outro que teria uma batalha de Rap de verdade. Uma edição especial de São Paulo aqui. Na primeira batalha não foram muitas pessoas, no máximo 8. A gente começou na Redenção e como não tava muito movimento a gente se estendeu pro Parque Germania. E lá que eu conheci o grupo SNLombra que foi o grupo que batalhou nessa edição. E daí conversando com eles e com o organizador da Batalha da Leste em São Paulo eu disse que tinha essa vontade de ter um evento contínuo aqui, num lugar assim a ceu aberto e gratuito e bem underground mesmo, bem de rua pra que a gente pudesse ter um local pra curtir sem precisar gastar e tudo mais e daí a gente decidiu fazer uma batalha local e foi aí que eu comecei a trabalhar com projetos de Rap e a cultura Hip Hop. Eu e mais esse grupo SNLombra começamos a Batalha do Mercado.

F: E hoje a Batalha do Mercado é super conhecida, é referência dentro do movimento Hip Hop de Porto Alegre e região metropolitana. Foi uma coisa que vocês começaram lá atrás e deu super certo. Como funciona a Batalha do Mercado?

A: Ela acontece todo último sábado do mês com inscrições gratuitas e na hora. Existe uma chave nas batalhas de MC’s que pode ser de 8 ou 16 até semi final e final. Era por ordem de chegada, mas desde uns 6 ou 7 meses atrás estamos sorteando. A ideia é sempre dar uma premiação pra Batalha. Apesar de ela ter sido criada como um local pra interagir, pra fazer freestyle, curtir e conhecer novas pessoas, aos poucos a gente foi entendo a importância de uma Batalha de MC’s na vida de um MC iniciante. Então eu comecei a dar muita importância à premiação. Uma premiação na qual o MC possa sair dali e continuar o trabalho dele. Não simplesmente ganhar uma camisa. Então o básico da premiação é dar uma gravação e uma instrumental para o MC vencedor. E depois disso a gente vê o que mais pode ser dado. Ela funciona à capela como é mesmo que funciona as batalhas de MC’s.

F: E tu tá participando hoje de algum grupo, segue rimando alguma coisa assim?

A: Ahh sim (risos). Não. Depois ali daquela experiência com o grupo em 2010 eu não cantei mais. Pelo menos não profissionalmente. Me dediquei mais a produção de eventos. E é o local que de fato eu me situo melhor é na parte de produção. É onde eu posso render mais. Digamos que me sinto melhor ali atrás do palco (risos). E o Rap é meu trabalho que eu faço de forma não remunerada com muito amor, muito amor mesmo. E de outro lado eu também trabalho, estudo e acabo de certa forma usando muito a experiência do Rap pra minha vida profissional. Uma coisa sempre agrega a outra. Assim como a Administração sempre me ajuda a tentar conduzir um evento.

F: E como tu enxerga hoje a cena do Rap? Os Racionais foram e são até hoje o grupo mais famoso do Rap nacional. O grupo mais popular de Rap no Brasil. Alguns anos atrás começaram a surgir outros grupos com características digamos um pouco diferentes. Então como tu enxerga tudo isso? A cena do Rap com esses novos grupos. E também como tu acha que as novas tecnologias impactaram no Rap? Esse negócio de tu tá em casa e poder produzir teu próprio som e tal.

A: Como o Rap é um elemento da cultura Hip Hop e a cultura Hip Hop tem uma identidade de livre expressão, de exigir direitos, de usar a arte pra se expressar e expressar revolta e de certa forma tratar da realidade, o Rap a gente espera que ele seja assim. Que ele passe a mensagem voltada à identidade da cultura Hip Hop. E é o que os Racionais, que foram um dos iniciantes de um Rap nacional, faziam. Como toda mudança e mudança repentina que foi rápida no Rap nacional gera desconforto. Acabou que foi indo pra vários lados né?! A característica que tu disse que mudou foram letras não tão coerentes com a realidade, agregou-se também além das instrumentais alguns efeitos voltados ao POP, à dança. Eu particularmente não critico. Desde que a letra esteja de acordo com a identidade da cultura, não seja uma letra mentirosa porque essa não é a ideia de um Rap nacional. Que é a ideia de passar uma mensagem de verdade, da realidade, que vá contribuir na vida de alguém ou que vá fazer alguém refletir melhor sobre determinado assunto. Que fale sobre assuntos que pelo menos instigue os jovens a procurar saber mais. E eu espero apenas que as letras do Rap nacional hoje em dia sejam assim.

Mas não tem como a gente ter controle. Infelizmente com a tecnologia e as pessoas sem o conhecimento da necessidade de se profissionalizar de fato pra ter uma evolução, pra que seu Rap e sua identidade no Rap seja reconhecida, isso acaba se desvirtuando com a capacidade que a internet tem. Tipo de tu gravar em casa e divulgar nas tuas redes sociais de tu poder criar uma conta e divulgar ali. Não tem mais a necessidade de tu querer ouvir a música no rádio, a necessidade de tu fazer um EP físico. Isso é um crescimento que creio a gente não pode controlar, mas eu acredito que criando-se eventos (eventos com instruções, que deem oportunidade mas que também exijam determinadas atitudes que vejam seu Rap como seu trabalho mesmo e não um hobby) e a velha escola participando mais disso. E que a velha escola aceite quem tá chegando, aceite a diferença, aceite o novo que também tem pontos a agregar. Eu vejo que isso vai acabar ajudando porque toda pessoa que tá começando alguma coisa, não somente no Rap, precisa de uma instrução de quem já tá no ramo. Precisa de um auxílio, de um conhecimento.

F: Tu falou antes que lá atrás tu havia participado de um grupo em que tu era a única mulher. Nós sabemos que dentro do movimento tem bastante preconceito contra as mulheres, o machismo né. E que muitas letras reproduzem essa visão machista também. Tu é uma mulher e uma liderança do movimento Hip Hop aqui da região. Então como é que é isso pra ti?

A: O machismo tá presente em todo lugar principalmente nos ambientes que são pré denominados masculinos como futebol. E toda a vez que tem a presença de uma figura feminina a capacidade daquela mulher é testada pelos homens. E seu eu for sempre me basear nisso eu e outras mulheres nunca vamos conquistar o mesmo espaço. Claro, lidei com isso no início. Principalmente no início. E apesar de eu acreditar que possa ter gente que não acredita na capacidade pelo fato de eu ser mulher o início foi bem mais forte essa questão. No início que eu digo não quando eu comecei o grupo de rap mas quando eu comecei a Batalha do Mercado com um grupo de amigos. Quando eu fazia convites eu notava que não era bem aceito ou que era subestimado o evento e só depois que realmente foi apresentado o resultado foi que se conquistou uma confiança, um respeito. E é isso que eu faço não só em ambientes que tem maior figura masculina. A gente mostra na prática a capacidade de se igualar ao homem nessa questão de atividade, capacidade, habilidade. Não de carregar alguma coisa, mas sim de organizar. Capacidade de pensar mesmo. Não me diferencia de alguém pelo meu gênero né. Então, se no início foi bem mais complicado hoje se existe é bem mais mascarado. Eu pelo menos não lido tanto com o machismo porque eu não me concentro muito se tão acreditando na minha capacidade. Mas com certeza existe né.

Dica de evento: 58º edição da Batalha do Mercado
Quando: 24/09 à partir das 22h
Onde: Largo Glênio Peres (em frente a praça 15)