O proibicionismo das drogas parece abalado como nunca antes. O ano de 2011 assistiu inúmeros governantes e ex-governantes mudarem suas convicções e suas práticas de décadas e passarem a defender o fim da guerra contra as drogas. FHC, Gaviria, Zedillo, Paul Volcker e George Schultz se somaram a opinião de que a regulamentação das drogas ilícitas é a única saída para a espiral de violência, mortes, aprisionamento e hipertrofia de lucros causados pela proibição de certas drogas.
As marchas dos tradicionais ativistas da legalização da maconha cresceram, ocuparam as ruas com coragem de desafiar a interdição policial e ganharam seu direito de expressão levando o debate para o STF. Aumenta o consenso entre cientistas, artistas e intelectuais de que a proibição é uma política falida. Filmes, debates e simpósios se sucedem sobre o tema.
Da mesma forma que sempre ocorreu diante das grandes causas sociais, diante da falência e da derrocada de políticas injustas que subsistiram por muito tempo, como foi com a causa da abolição da escravidão, do direito ao voto feminino ou dos direitos civis para homossexuais, quando começam a desabar os pilares de uma injustiça, muitos dos que antes estavam no campo da velha ordem passam a mudar de lado com o intuito de amenizar a mudança repetindo a velha toada do “é preciso mudar para que tudo continue igual”. Diante das exigências de rupturas, clamam pela impossibilidade de mudança radical, propondo pequenas alterações que não atinjam a estrutura básica em questão.
Assim como no passado, ao invés de defender a abolição total da escravidão, buscaram-se medidas transitórias como uma lei do ventre livre ou dos sexagenários.
Ora, o que se exige atualmente é o fim do proibicionismo e não sua adaptação.
Dezesseis estados norte-americanos já permitem o uso terapêutico da maconha, nas próximas eleições em três estados (Colorado, Oregon e Washington) haverá plebiscitos pela legalização plena para maiores de idade. No Uruguai, o presidente Mujica está propondo a legalização com controle estatal da grande produção e comércio e, em seu projeto, menciona que o Uruguai tem defendido a necessidade de um debate que “debe poner en cuestión las modalidades de control y fiscalización, y los princípios que sustentan dicho modelo, sustanciados en instrumentos jurídicos internacionales: la Convención Única de Estupefacientes de 1961, y la Convención Contra El Tráfico Ilícito de Drogas de 1988”. Mesmo sem explicitar que “por em questão” deva significar a denúncia do tratado, ou seja, a ruptura e retirada do país de sua participação nele, que é, ao meu ver, o único caminho e condição sine qua non para a revisão global do paradigma proibicionista.
Enquanto isso, no Brasil, vemos algumas iniciativas como a da reforma do Código Penal ou a campanha por uma nova lei de drogas levada pelo Viva Rio. Mais recentemente, também se somou a esse debate as propostas da rede Pense Livre, lançada com a presença mais festejada do próprio FHC. Em todas estas iniciativas subsiste um consenso: o uso de drogas pode ser descriminalizado, mas continuará sendo punido como crime hediondo caso se configure o comércio. E nenhuma palavra se diz quanto ao questionamento da ordem internacional da política de drogas.
Isso é não só uma incongruência como uma injustiça. Mesmo que se aceitasse o direito de autocultivo de maconha, o que é mais do que legítimo, restaria a questão da manutenção de um comércio clandestino, regido pela ilegalidade, violência e corrupção.
E as propostas de reforma no Brasil são mais do que tímidas e limitadas. São cúmplices com a própria lógica proibicionista ao proporem medidas que mantém a criminalização do plantio, do pequeno comércio e até mesmo da cessão gratuita!
Está sendo apresentado como se fosse uma grande mudança na política de drogas algo um conjunto de propostas que alteram pouco a situação atual.
A proposta de alteração do Código Penal continua a incluir diversas condutas ligadas ao uso de drogas[1]. Aquilo que é apresentado como um suposto avanço, a exclusão do crime no caso de consumo pessoal, continua ao arbítrio da autoridade, pois “Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, à conduta, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, bem como às circunstâncias sociais e pessoais do agente”. E, ainda pior, alguns parágrafos à frente e se criminaliza a cessão para o uso gratuito a “pessoa do seu relacionamento”:
“Indução ao uso indevido de droga
Art. 219. Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga:
Pena – prisão, de seis meses a dois anos e pagamento de cem a trezentos dias-multa.
Consumo compartilhado de droga
Art. 220. Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem:
Pena – prisão, de seis meses a um ano e pagamento de e pagamento de setecentos a mil e quinhentos dias-multa.”
O projeto de lei que está sendo objeto de uma campanha de arrecadação de um milhão de assinaturas com uma campanha de mídia apoiado pelo Viva Rio sofre da mesma insuficiência de querer ser um remendo supostamente progressista no edifício em desabamento do proibicionismo, ao continuar tipificando como crime a conduta de comércio de substâncias ilícitas.
A única saída possível da guerra às drogas é a legalização do consumo e do abastecimento. Subsiste o debate sobre a melhor forma de fazê-la, se por meio do Estado, da iniciativa privada, de cooperativas ou de qual combinação entre estas esferas, mas deveria haver um consenso do pensamento antiproibicionista de que o denominador comum mínimo é a legalização. O projeto uruguaio ao menos propõe “la normalización e inclusión social del uso de marihuana, de forma que los usuários no sean estigmatizados ni tratados a partir de la aplicación de ley penal” e resolve o problema do abastecimento ao propor que o Estado regularize e nacionalize a grande produção e o atacado.
Reduzir o objetivo estratégico da legalização por medidas de criminalização só de certas quantias mantém o mercado paralelo e toda violência, corrupção e danos vigentes. A ideia de uma quantia aceitável de “cinco dias de consumo” significa a impor aos consumidores a necessidade de frequentarem um traficante a cada cinco dias!
Uma descriminalização apenas do consumo mantém o centro do problema que é o mercado ilegal e suas consequências de violência e corrupção. Só a legalização pode levar a um efetivo controle da produção, distribuição,comercialização e consumo de drogas
Atores antes ausentes ou do lado da repressão no debate da política de drogas como os presidentes da Colômbia, da Guatemala ou do México surgem nos últimos anos defendendo reformas num sistema proibicionista que deve não ser reformado, mas desmantelado como estrutura repressiva global de controle social e criminalização da pobreza. O tema vem se tornando um debate cada vez mais intenso e é preciso demarcar claramente um campo democrático radical antiproibicionista.
O proibicionismo viola princípios da autonomia humana. A legalização das drogas é uma causa ética e filosófica, pois envolve um aspecto profundo da autodeterminação humana, dos direitos civis em relação ao próprio corpo. É uma causa social, pois defende milhões de vítimas diretas, presos ou assassinados, e de toda a sociedade que, com a proibição, se vê tutelada por mecanismos de controle social e de criminalização da pobreza. A legalização é uma das grandes reformas sociais necessárias. Haver obstáculos para sua realização, especialmente numa opinião pública conservadora alimentada pela mídia e por muitas religiões e, em parte, financiada pelos lucros diretos ou indiretos da proibição, só deve nos fazer afirmar mais categoricamente a condição inalienável de direito humano a liberdade de amenizar o seu sofrimento por meio dos fármacos que a natureza e a ciência disponibilizaram para a humanidade.
Assim como ocorreu com os homossexuais, vai ser a saída às ruas dos milhões de usuários que vai poder conquistar as mudanças necessárias.
Estima-se em cerca de um milhão e meio os consumidores diários de maconha no Brasil. Seu direito de existência como cidadãos é uma garantia democrática fundamental do direito à liberdade sobre o próprio corpo e modo de vida.
Proponho os seguintes tópicos centrais para um posicionamento sobre drogas para uma articulação e uma ação antiproibicionista real e unificada:
1) Recusa à guerra contra as drogas como doutrina totalitária, neo-colonial e imperial. Denúncia dos tratados iniciados desde a Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961. Pela retirada do Brasil desses tratados.
2) Defesa da legalização das drogas. O uso de drogas é uma questão social e cultural e o seu abuso pode ser um problema de saúde pública, mas não pode ser encarado como um crime, pois tal conduta não fere nenhum direito alheio, não constitui uma agressão ao patrimônio nem à pessoa, não tendo, portanto, nenhuma lesividade.
3) Ênfase numa campanha internacional e nacional imediata pela legalização da maconha, com eixo em três aspectos:
a) uso terapêutico
b) uso recreacional
c) uso para investigação neurocientífica
4) Abertura de um amplo debate sobre os modelos necessários e possíveis de uma legalização real com respeito aos direitos humanos e de cidadania dos consumidores de drogas.
Comentários