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Colunas

Relato 06: “Eu quero a droga que meu amor usa disponível no postinho”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, latinoamericana, feminista, escrivinhadora, mãe, usuária da RAPS, militante da Resistência-Campinas, da Luta Antimanicomial pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial (CLNMSMA) e Conselheira Municipal de Saúde;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Andréa Santos Miron – Mulher, feminista, apaixonada pelo Sistema Único de Saúde, por fazer trilhas e astronôma amadora; Assistente Social de formação pela Universidade Federal de São Paulo, pós-graduada em Saúde Pública, Saúde Mental e Psiquiatria; Militante pela Resistência / Psol – Mauá/SP, pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial, pelo Fórum Paulista da Luta da Luta Antimanicomial e Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Mulher de Egresso do Sistema Prisional 

Prezados políticos que acham “bonitinho” criminalizar usuário de droga,

Peço para vocês todos pararem com essa desgraceira de tentar colocar as mãos no meu marido. Ele usa droga, vai continuar usando droga em um futuro previsível, e isso não é da conta de vocês. Isso é problema dele, da família dele e do CAPS AD (Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e outras Drogas) que cuida dele. 

Ninguém nesse mundo tem obrigação de gostar de ninguém, mas nós devemos o mínimo de respeito uns com os outros. Então, eu venho por meio desta, explicar aos desentendidos e dar uns presta atenção naqueles que insistem em se meter na vida alheia.

Eu quero a droga que meu amor usa disponível no postinho, não porque eu acho lindo ver meu amor se entupindo com droga, mas porque não quero que ele volte para a sarjeta. Quero que ele tenha um espaço seguro e protegido de uso e que receba os cuidados éticos necessários que reduzam os possíveis danos desse uso. Eu prefiro que ele faça o uso de substâncias em um espaço seguro e de cuidado, do que ver ele na rua cometendo crimes para pagar pela droga que faz uso, engordando o tráfico e alimentando a máquina de prender, internar e matar gente preta, pobre e periférica, em ciclos intermináveis de violência.

Eu só quero que ele tenha as mínimas condições para conseguir viver bem, com dignidade, e parar de torrar mais da metade do que ganhamos com droga. E ele consegue viver bem. Nós conseguimos viver bem. Ele consegue fazer trabalho lícito também. Ele consegue muitas coisas. É um homem inteligente, um amor de pessoa e eu o amo de paixão. Mas ele não dá conta de parar de usar droga. Ele precisa do chazinho dele pra ele conseguir viver, para conseguir trabalhar, levantar da cama, ficar menos ansioso. 

Toda droga pode gerar danos, inclusive as drogas psiquiátricas. Vale a gente perguntar, então, por que determinadas drogas são lícitas e outras não. Vale a gente pensar porque determinadas pessoas que usam determinadas drogas são criminalizadas e outras pessoas que usam outros tipos de droga não são criminalizadas. Também precisamos pensar porque algumas drogas são vendidas nas farmácias e dispensadas nos postinhos e outras não. Existe uma guerra contra determinadas pessoas e não uma guerra às drogas e a gente deve se perguntar quem ganha com essa guerra. Meu marido e eu e tantos outros usuários de substâncias e outros familiares só perdemos nessa guerra. 

Tem dia que meu companheiro passa, sim, deitado no quarto só conseguindo fumar. E se não existissem drogas ilícitas, vossas excelências, ele estaria entupido de outras tantas drogas lícitas e medicamentosas que engordam os cofres da indústria farmacêutica. A diferença é que não teria polícia e procurador de justiça atrás da gente.  

Usar droga é a condição dele para conseguir sobreviver depois de anos sendo internado e preso na cadeia; depois de anos sofrendo racismo e exclusão social. Mas ao invés de vocês estarem aí ampliando CAPS AD para ajudar no cuidado dos familiares, vocês estão o quê? Enfiando mais fuzil nas nossas cabeças. Querendo mais bota enfiada nas nossas portas. Tirando as condições de vivermos uma vida digna. Tirando nossas forças e a força dos nossos familiares. 

Meu companheiro tem um problema de saúde, como muitas pessoas têm. Está fazendo tratamento e precisa da droga dele. Ponto. Simples assim. Não tem nenhuma equação matemática de quinto grau aqui. Talvez um dia consiga substituir as drogas ilícitas pelas lícitas, talvez não. Isso não deveria ser caso de polícia. Mas aqui, nesse país, é. 

Então eu peço assim, encarecidamente, que tirem as mãos do meu marido. É curioso demais como vocês não veem problema nenhum no fato de seus agentes penitenciários enfiarem as mãos nas nossas vaginas nas filas das visitas dos presídios, não veem problema nenhum nos agentes repressivos do estado chegarem atirando nas favelas, fazerem chacina com nosso povo – mas ficam criando caso com quem tem problema de cabeça. O código Penal docês só vale para pobre, preto e periférico, e aí ficam pagando de machão, aí no ar-condicionado, com seus ternos e gravatas, achando que vão acabar com as drogas e o crime na canetada. Se os senhores querem que paremos de comprar drogas no tráfico, pelo menos tenham a decência de dar uma forma de aquisição lícita. 

E eu, aqui do meu lado, vou continuar lutando. Vou lutar para que ele consiga a prescrição médica da maconha que ele faz uso atualmente, para que ele não volte a usar outras substâncias. Vou lutar para, caso ele volte a usar outras substâncias, que ele não tenha que vender droga para custear o vício. Vou lutar para que ele tenha espaço de uso seguro e para que ele não fique jogado na sarjeta. Vou lutar para que haja CAPS AD funcionando bem, que garanta a ele tratamento digno, humanizado, laico, no SUS e em liberdade. Vou lutar para que nenhuma outra pessoa que faça uso prejudicial de droga se submeta ao trabalho análogo ao escravo, que é estar no tráfico de drogas, muito menos que amargue cadeia ou comunidade terapêutica, e lutar para que todas as pessoas recebam nossos cuidados. E, principalmente, vou lutar para que possamos viver livremente nosso amor sem manicômios e sem cadeias.