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EDITORIAL

Repercussões no Oriente Médio da vitória de Trump

Por: Waldo Mermelstein, de São Paulo, SP

Após a vitória de Trump, em todo o mundo procura-se interpretar quais serão as consequências de suas posições no plano econômico e diplomático-militar internacionais.

Em primeiro lugar, uma advertência: as propostas feitas pelo candidato Trump não necessariamente serão as propostas implementadas pelo novo presidente. Por duas principais razões:

1) as propostas são genéricas e em um contexto internacional em que as finanças, o comércio, os tratados diplomáticos são tão complexos e interligados e a crise econômica que começou em 2008 ainda não terminou, somente se poderá ver exatamente o que poderá ocorrer com o seu detalhamento.

2) as decisões do governo americano, em termos mais amplos, dependem das posições de uma complexa rede de instituições, em que se inclui o governo, é claro. Elas são influenciadas de forma decisiva pelas grandes empresas capitalistas e compreendem, entre outras, os “think tanks”, o intrincado complexo dos organismos de segurança que, segundo reportagem do Washington Post, empregam mais de 800 mil pessoas (!!), o próprio Congresso, sem falar na cúpula do partido Republicano. As negociações já começaram e seguirão pelo menos até a posse em janeiro.

Do ponto de vista das posições internacionais, mesmo sem seguir ao pé da letra as afirmações eleitorais, a tendência parece ser a de diminuir a tentativa de ingerência americana mais direta em todos os cenários. Isso reforçará uma característica dos últimos anos que é a de dar mais poder e autonomia para as potências regionais, deixando para a intervenção americana direta apenas as situações de crise mais grave e em alguns pontos estratégicos. O que o estado americano poderia continuar a fazer do ponto de vista estritamente militar, já que seu orçamento de defesa é superior ao dos sete países que o seguem, com centenas de bases militares ao redor do mundo. Os EUA seguem sendo a potência militar dominante, o que não quer dizer que possam intervir em vários grandes conflitos de forma simultânea. Foi que se viu nos problemas que enfrentaram nas invasões do Iraque e do Afeganistão, por exemplo.

Mas essa opção pode significar mudanças bastante importantes em várias regiões e nenhuma garantia de estabilidade, fator fundamental para o capital internacional, incluído o americano.

Os caminhos intrincados de um barril de pólvora regional
Tomemos a situação do Oriente Médio: a anunciada reaproximação com a Rússia pode significar uma aceitação mais clara do papel de Moscou na região, em particular na Síria. Isso significaria uma pressão para a mudança na posição das potências regionais aliadas de Washington, particularmente a Arábia Saudita, o Qatar e a Turquia para que negociem algum tipo de governo de coalizão em que Assad poderia participar. De qualquer forma, nestes dias, a vitória de Trump deixa as mãos de russos e do governo sírio livres para tentar a conquista e/ou destruição da parte de Aleppo ainda dominada pelos opositores.

Outra dramática consequência da posição contra os imigrantes e refugiados poderá ser o confinamento dos milhões de refugiados sírios em campos dentro de território sírio, sem deixar que cruzem a fronteira para tentar entrar em outros países, particularmente na Turquia e nos países europeus. E a região está prestes a ter uma nova leva de centenas de milhares de refugiados com a ofensiva sobre Mossul – além dos 42 mil que já fugiram da cidade e seus arredores. Além disso, a destruição da cidade e/ou execuções sumárias que já começaram, como denunciou no dia 10/11 a Anistia Internacional, podem acabar transformando o Iraque em um amontoado de cantões sectários e disputados por facções étnicas, tribais e as potências regionais.

Por outro lado, na Palestina, a extrema-direita mais dura no governo de Netanyahu exulta com a vitória de Trump; A razão é que o programa anunciado após as eleições por seus assessores, Jason Greenblatt e David Friedman, sobre o tema, augura mudanças importantes ainda mais a favor de Israel. Entre elas:

– o abandono da ficção da criação de dois estados, a não ser que os palestinos reconheçam Israel como estado judaico (o que significa aceitar oficialmente o status de cidadãos de segunda categoria para os mais de 20% de palestinos com cidadania israelense) e deixem de lutar por seus direitos
– não exigir que Israel desocupe a Cisjordânia (o que significa aceitar os assentamentos judaicos que lá se instalaram desde 1967)
– combater o movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções como antissemita
– transferir a embaixada americana de Tel-Aviv para Jerusalém (o que significa aceitar a anexação desta).

Além de oferecer ainda mais apoio militar e diplomático para Israel.

Como se fosse pouco, as críticas ao acordo nuclear com o Irã, se levadas ao pé da letra, levariam a ainda maior instabilidade no Iraque, hoje governado por grupos xiitas ligadas ao regime iraniano. E pressuporia que os russos romperiam a aliança com o Irã. Ressalte-se que o Irã faz fronteira com a Rússia e é o país mais populoso da região, tendo uma das maiores reservas de petróleo do mundo.

Ademais, a insinuação de autorizar que a Arábia Saudita tenha armas nucleares coloca a perspectiva de um desequilíbrio que mudaria toda a configuração geopolítica regional. Ao mesmo tempo, a afirmação de que os sauditas deveriam pagar pela proteção americana não deve ter agradado nada à monarquia. Esta já está às voltas com sérios problemas financeiros pela queda do preço do petróleo e uma guerra custosa no Iêmen.

Esta é apenas uma rápida menção aos intrincados problemas da região. Como se não fosse o bastante, há crise entre tradicionais aliados americanos: a Arábia Saudita cortou o suprimento de 700 mil toneladas de petróleo mensais fornecidas ao Egito, o que obrigou o regime do ditador Sissi a abrir negociações com…o Irã para conseguir outro fornecedor. O motivo mais imediato dessa crise teria sido o apoio à posição russa na ONU sobre o regime de Assad. O general que governa o Egito foi o primeiro dirigente do mundo a cumprimentar Trump.  A afoiteza tem razões: com o apoio do FMI acaba de desvalorizar a libra egípcia em 48%, o que levou a um aumento nos preços internos e à ameaça de instabilidade em seu regime.

A invasão do Iraque (e o estímulo pelos ocupantes americanos da divisão sectária do país)  e a destruição da Sìria pela guerra desfechada pelo regime de Assad geraram a expansão da Al-Qaeda e o surgimento do autodenominado Estado Islâmico (EI). Os repetidos ataques grosseiros de Trump contra os muçulmanos, se levados à prática, poderiam ter efeitos adicionais imprevisíveis em uma região em que a religião possui grande implantação popular. Além da justa e massiva indignação contra ataques islamofóbicos, dariam ainda mais combustível para o florescimento dos grupos jihadistas.

Nem foram mencionadas as grandes tensões entre o regime turco e as forças independentistas curdas, exacerbadas pela guerra ao EI na Síria e no Iraque.

As mudanças anunciadas poderiam resultar em um Oriente Médio ainda mais devastado do que o deixaram as últimas décadas de intervenção americana direta, em uma região que concentra a maioria das reservas de petróleo do mundo.

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