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MUNDO

Jihad contra o Terceiro Mundo. A história oculta do integrismo islâmico

Sostenes Brilhante Rodrigues Silva*
“Deixemos esta Europa que não cessa de falar do Homem, mas o massacra em todos as esquinas, em todos os cantos do mundo em que o encontra”
Franz Fanon, Os Condenados da Terra

Era o ano de 1962, os anos cinquenta e 60 representam talvez um ponto alto das lutas de libertação nacional em África, Ásia e de luta por uma verdadeira emancipação nacional na América Latina. Para ficar em alguns exemplos podemos nos recordar das lutas pela Independência da Argélia, da luta do povo vietnamita, do nasserismo no Egito e da Revolução Cubana liderada por Fidel Castro e Che Guevara.

Estas lutas com seus limite e contradições, cada uma respondendo a dilemas muito específicos impostos pelo caráter radical da expansão capitalista no globo tiveram também uma expressão institucional a nível internacional, o movimento dos países não alinhados liderados por Nehru da Índia, Nasser do Egito e Bros Tito da Iugoslávia, a Conferência de Bandung trazia voz a um movimento a nível internacional que contestava objetivamente as bases das relações internacionais inter-imperialistas e o equilíbrio entre EUA e a URSS que representava bem ou mal uma alternativa a ordem capitalista mundial.

Como disse o historiador marxista indiano Vijay Prashad, o Terceiro Mundo, nunca de fato existiu, ele foi um projeto. Projeto este que esboroou diante das contradições internas de um movimento que no âmbito nacional de seus membros, respondia a um caráter de classe polimorfo, a incapacidade das principais lideranças do terceiro mundismo de ir além de uma aliança policlassista, apesar de algumas intenções socializantes, transformou o movimento em um gigante de pês de barro. Com exceção de Cuba e Vietnã poucos países foram capazes de levar adiante uma transição, em condições muito adversas em ambos os casos, rumo ao socialismo.

No entanto neste breve relato queremos focar no outro lado da equação, o comunismo em toda a Asia e África, além é claro da América Latina, era bem mais do que um espectro, era uma força bem real, que ora em aliança com as diversas formas de nacionalismo radical, ora divergindo deles assustava as camadas mais reacionárias da sociedade e seus aliados naturais do imperialismo ianque, anglo-francês e etc.

Voltemos a 1962, Meca, Arabia Saudita, no mês de maio o então príncipe herdeiro da absolutista dinastia Saud, Faisal, recebia um encontro de 111 ulemás, lideres religiosos tradicionalistas, que haviam acudido inicialmente a peregrinação anual a Meca mas tinham também o propósito de ressuscitar uma instituição islâmica moribunda, o Congresso Mundial Muçulmano, eles resolveram sob patrocínio do príncipe herdeiro Faisal, recriar o organismo com o nome “Rabitat al Alam al Islami” que quer dizer Liga Mundial Muçulmana.

“Quem renega o Islã e distorce o chamado que este faz disfarçando-o de nacionalismo são, na realidade, os mais acerbos inimigos dos árabes, cujas glorias estão indissoluvelmente ligadas as glorias do Islã” ( LMM, apud in Prashad, 2008)

A declaração acima proferida no ato de criação da entidade deixa claro seus objetivos de combate ao nacionalismo árabe do qual o nasserismo era um modelo acabado, na visão dos ulemás quem atentava entre outras coisas contra o caráter teocrático do Estado, contra a ordem social hierárquica das sociedades tradicionais supostamente querida por Alá, atentava contra o próprio islamismo,

Aquele que alguns anos posteriores se tornaria rei, Faisal, era um verdadeiro crente da versão wahabista do islamismo, esta doutrina que recorrendo a um termo de Samir Amin (1989) podemos denominar de integrismo islâmico defendia uma volta ao passado como solução para os problemas das sociedade árabes, convulsionadas pela luta pela libertação nacional, impulsos de modernização ora mais conservadores ora mais radicais, luta de libertação feminina e etc.

O wahabismo tem sua origem nas doutrinas teológicas de Mohamed ibn Abd al Wahbi que no século XVIII teve importância na própria fundação da dinastia Saud.  A estrutura social da sociedade árabe era tida como um resultado da vontade de Ala, sendo pernicioso contestar esta hierarquia supostamente divina.

“Faisal era um símbolo de outros muitos lideres similares e das forças que eles representavam. Estas pessoas, estes Faisals rejeitavam o nacionalismo do Terceiro Mundo, tanto o nacionalismo, como o laicismo, o socialismo e o tipo de modernidade que propunham. [….] Contra a agenda programática do Terceiro Mundo, as velhas classes dominantes dos rincões do planeta propagaram diversos tipos de ideias culturais recalcitrantes  para disciplinar as suas populações. Desde Meca, a LMM propagava um Islã rigoroso e masculinista.“ ( Prashad, 2012  pg 431, tradução do autor)

Samir Amin em sua devastadora crítica do Eurocentrismo enquanto uma ideologia culturalista baseada na suposta superioridade humana da Europa sobre o conjunto da humanidade, fez também um diagnóstico preciso do integrismo islâmico como uma reação romântica e reacionária aos dilemas postos as sociedades árabes pela dominação imperialista, a falências de suas classes dominantes tradicionais e a incapacidade do movimento nacionalista como o nasserismo de levar adiante o desafio de superar o atraso tradicionalista e sua superposição imperialista no século XIX e XX .

“Com efeito o integrismo se baseia na visão metafísica medieval, além disso na sua versão mais empobrecida. Com efeito a ideologia do movimento se baseia no desprezo a razão humana, paradoxalmente aquilo que determina a grandeza do islamismo – sua construção metafisica racionalizante – expressa por exemplo em Sayed Qotb [….] Se da pois prioridade necessariamente a uma adesão ritualista (apego a letra da Charia) e as manifestações superficiais de uma pretensa identidade como a vestimenta.” ( Amin, 1989 pg. 121)

Esta visão reacionária constitui uma manifestação no mundo árabe do irracionalismo que grassa nas sociedades burguesas, as similitudes são evidentes, como nos lembra Gyorgy Lukacs, o irracionalismo corresponde a necessidade de dar respostas reacionárias aos dilemas sócio históricos impostos pela dinâmica das sociedades burguesas. Amin argumenta que a visão reacionária do integrismo lança as sociedades árabes num beco sem saída, a atual situação de países como Síria, Iraque, Afeganistão nos revelam esta interação perversa entre os interesses das potências imperialistas ocidentais e a constituição de forças sociais reacionárias como o Talibã, o Estado islâmico, Al Qaeda e etc. Sob um aparente radicalismo, que seduz até insuspeitas organizações politicas da esquerda ocidental, o integrismo não é uma forma de nacionalismo anti-imperialista religioso, longe disso a total integração da dinastia Saud ao Ocidente capitalista e a sua capacidade de constituir um complexo e capilarizado aparelho de hegemonia molecularmente difundido nas sociedades árabes, demonstra o casamento perfeito entre as classes dominantes reacionárias que recobrem sua visão irracionalista sob o manto do fanatismo religioso, que não faz jus a riqueza e beleza da tradição islâmica, e a exploração que praticam como sócios menores do imperialismo sob os próprios povos árabes.

No momento em que Faisal acolhia os ulemás e trabalhava na formulação de sua visão reacionária da tradição islâmica, os EUA através da CIA já atuavam pelo menos desde o fim da década de 50 (Prashad, 2012)  no financiamento de células religiosas de cunho extremista como forma de se contrapor ao avanço do nacionalismo nasserista e do comunismo nas sociedades árabes, a LMM foi descrita pelo embaixador francês na Arábia, Georges de Boutellier,  como uma rede tentacular destinada a propagar seus ideais que paralelo ao financiamento pela CIA de células extremistas, funcionava estabelecendo uma ampla rede associativa de tipo hegemônico. Escolas religiosas, organizações de caridade, organizações defensoras da Charia, que de acordo com o próprio Manifesto da Entidade deveriam atuar numa verdadeira jihad contra o comunismo infiel, no qual estava incluso as versões laicistas do nacionalismo árabe para os ideólogos da LMM.

Estamos, portanto, diante de uma ampla rede associativa, na qual, para recorrer ao pensamento de Antonio Gramsci, se formaram amplas casamatas de uma sociedade civil de cunho reacionário a serviço da classe dominante e do imperialismo.

Até o início dos anos 70 os frutos do integrismo reacionário da LMM pareceram se esboroar ante as versões nacionalistas e socialistas que atingiam até mesmo setores do clero muçulmano, mas o esboroar do projeto terceiro mundista vítima de suas contradições internas e da insidiosa e implacável atuação dos agentes internos e externos do imperialismo levaria ao ascenso daquilo que se conhece como fundamentalismo islâmico.

Este breve relato não visa dar conta dos intricados processos que levaram a ascensão do integrismo reacionário, seu proposito é bem mais modesto, chamar atenção que os movimentos como o Talibã não são o resultado de “vitorias deformadas da luta antiimperialista” como uma visão superficial e esquemática pode defender, ao contrário o integrismo reacionário é o filho legitimo das classes dominantes reacionárias e da ação do imperialismo para manter sua exploração sobre os povos árabes. Um ocasional conflito entre organizações reacionárias como a Al Quaeda e o Talibã com o imperialismo não anulam o papel objetivamente reacionário destas organizações, frutos de um verdadeiro processo de “reforma moral e  intelectual” para citar Antônio Gramsci, de cunho reacionário que como advertiu Samir Amim só pode conduzir ao beco sem saída em que se encontram países como o Afeganistão. 

Não podemos ser seduzidos pela falácia imperialista de que se identifica com a mudança social, o progresso social destes povos, sua utilização cínica da causa das mulheres e nem tampouco no canto da Sereia das “vitorias anti-imperialistas” de organizações reacionárias cuja origem direta e indireta se encontra na luta contra qualquer forma de progresso seja ele o limitado das modernizações do nacionalismo árabe ou das perspectivas revolucionárias e anti-imperialistas que surgiram no seio destes povos.

 

Referências 

Amin, Samir. El Eurocentrismo . Critica de uma Ideologia. Bogota Siglo Veintiuno Editores 1989

Prashad, Vijay. Las Naciones Oscuras. Uma Historia del Tercer Mundo .Barcelona Ediciones Peninsula. 2012

 

*Licenciado em História

**Este artigo não representa, necessariamente, a posição do Esquerda Online. Somos um portal aberto às polêmicas da esquerda socialista.

 

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