Por Pedro Henrique Antunes da Costa, Professor na UnB e Resistência/DF
Este é o terceiro texto aqui na Coluna Saúde Pública Resiste em homenagem ao centenário de Franco Basaglia. No primeiro, abordei alguns dos impasses à Reforma Psiquiátrica brasileira, a luz das reflexões basaglianas, mas desde nossas particularidades. No segundo, discorri sobre como há em Franco uma pertinente crítica às chamadas Comunidades Terapêuticas (CTs) de nosso país, que não são comunidades nem terapêuticas, mas reatualizações e radicalizações manicomiais.
Neste pequeno artigo, apresento algumas breves reflexões motivadas por um intercâmbio de uma semana em Trieste e em Gorizia (1) para conhecer a experiência basagliana em tais contextos e que foram basilares para a Reforma Psiquiátrica italiana e influenciaram a nossa Reforma Psiquiátrica e outras iniciativas com intuitos semelhantes pelo mundo. Creio que elas são menos analíticas e mais sentimentais ou afirmativas acerca da relevância de Basaglia para o tempo presente.
Basaglia está por boa parte de Trieste e Gorizia, que foram dois dos lugares que atuou como diretor de hospital psiquiátrico, implementando inúmeras mudanças na saúde mental que até hoje se mostram incontornáveis para um horizonte sem manicômios. Contudo, apesar da importância de Basaglia não só na Itália, mas para a saúde mental brasileira – e mundial –, predomina uma certa apropriação asséptica e tecnicista de sua práxis em nosso país. Chega até nós o Basaglia psiquiatra, por mais que crítico da psiquiatria, como se ele não fosse também o Basaglia militante, da luta política. Esse meio Basaglia é um não Basaglia, afinal, o descaracteriza ao fragmentar esferas ou momentos de sua trajetória, reduzindo-o a uma delas. Não existe o técnico sem o político. As mudanças técnicas operadas por ele e colegas estão atreladas à sua luta à sua militância. Mais, foram construídas no bojo de lutas, em parceria com movimentos sociais, sindicatos, partidos políticos etc. Para que os hospitais psiquiátricos de Trieste e de Gorizia fossem fechados – o segundo somente após a sua morte –, transformando-se em marcos da luta contra manicômios, a práxis basagliana teve que ir para além da dimensão técnico-assistencial, por mais que ele não a tenha desconsiderado.
Mesmo os marcos políticos (formais) oriundos de sua luta, como é o caso da Lei 180 de 1978, que é o marco fundamental da Reforma Psiquiátrica italiana, não sendo lidos e compreendidos como resultantes desta luta (e de outras), acabam sendo despolitizados. Com isso, já temos um importante ensinamento que não é uma lei ou qualquer outro instrumento legal, normativo que garantirá nada, mesmo com ela sendo oriunda de muitas lutas. Isso vale para a Lei 180 da Itália, como para a Lei 10.216, de 2001, que é a Lei da Reforma Psiquiátrica brasileira. Não só ela já representa um horizonte bastante rebaixado em comparação com o projeto de lei e com a própria Lei 180 – que colocou a proibição de internações em hospitais psiquiátricos e a extinção gradual de tais instituições públicas –, como traz consigo contradições que devem ser apontadas no sentido de fortalecimento daquilo que ela tem de melhor. Mesmo este melhor não tem sido cumprido à risca ou tem sido frontalmente desrespeitado e até retrocedido.
E, novamente, a despeito da relevância, qualquer debate que comece e termine nas leis, ne letra fria, desconsidera o que está subjacente a ela, o que ela expressa, o que pode alterá-la ou materializá-la. Só para se ter uma ideia, apesar de a Lei 180 ser chamada de Lei Basaglia, o próprio Basaglia não chegou a participar da redação dela, tendo inclusive uma postura crítica a como ela, contraditoriamente, poderia despolitizar o processo de fechamento e superação dos manicômios da Itália ao institucionalizá-lo. Apesar de reconhecer a relevância da Lei, tanto ele quanto Franca Ongaro Basaglia fizeram análises críticas sobre o desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica na Itália, suas contradições e inflexões, denunciando os problemas da sua institucionalização com a Lei 180, da mesma forma que esta não foi cumprida integralmente.
Ressalto que as experiências goriziana e triestina não se reduzem a Basaglia, nem se findaram com a sua morte. Da mesma forma, não pretendo aqui santificá-lo ou sacralizar os movimentos goriziano e triestino, apresentando-os como isentos de contradições, limites e até mesmo alguns retrocessos. Basaglia é, na verdade, uma síntese: de muitos e muitas; do acúmulo da própria classe trabalhadora, do conjunto dos explorados e oprimidos, dos condenados da terra e do asfalto, dos manicômios, prisões, campos de concentração e senzalas. Justamente por expressar essa unidade, por não ser um, mas uno, uma unidade na diversidade é que ele é tão importante. Eis a sua força.
Contudo, em face do atual estágio de desenvolvimento capitalista, alguns dos avanços com os quais ele contribuiu, seja em Gorizia ou em Trieste, foram e estão sendo retrocedidos e outros estão em perigo, sendo alvos de medidas privatizantes das políticas como um todo, bem como do avanço reacionário e conservador, cuja Itália é só uma amostra. Está em voga um amplo esforço de negação da experiência basagliana e triestina na própria Itália, assim como vemos avançar a Contrarreforma Psiquiátrica em nosso país. Segundo conversas com profissionais, Trieste e Gorizia fazem parte de um cinturão de contenção frente aos retrocessos privatistas, psiquatrizantes e manicomializantes – por mais que não passem ilesos deles também. Nisso, talvez uma das maiores lições que podemos extrair, e que denota como o capitalismo deve ser analisado como uma totalidade – sem negar as suas particularidades e o seu caráter dinâmico -, é que a luta é um processo constante, unindo Brasil, Itália e o conjunto do explorados e oprimidos contra a ofensiva do capital que se volta a destruir ou anular as conquistas históricas da classe trabalhadora, como estamos vivenciando no nosso campo da saúde mental, álcool e outras drogas.
A despeito de ser um nome incontornável para uma série de experiências que foram nomeadas como reformistas, no guarda-chuva da Reforma Psiquiátrica, a trajetória de Basaglia nos permite afirmar, com bastante tranquilidade, que se trata de um revolucionário; um grande intelectual e militante marxista e, como disse: “[e]u sou um comunista, mas um comunista que faz autocrítica” (2). Basaglia não se contentou a melhorar aquilo que não era passível de ser reformado, a saber, a psiquiatra e sua instituição por excelência, o manicômio, afinal, eram expressões bastante pronunciadas e bem-acabadas das estruturas desumanizadas e desumanizantes (exploratórias, opressivas) de nossa sociabilidade. Como o próprio alertou, o perigo era (e é) o “de cair em um simples reformismo psiquiátrico” (3).
Por mais que tenha tido que mediar uma série de contradições impostas pela realidade, e que eram a própria realidade em movimento, um resgate basagliano no presente momento adquire ainda mais relevância quando nos deparamos com o seguinte cenário: por um lado, se intensifica o avanço barbárico do capital, nos fazendo confrontar com a possibilidade do fim da humanidade; e, por outro, o melhorismo e o possibilismo capitalistas – que se expressam também na saúde mental – tendo as reformas como uma de suas expressões, ao mesmo tempo que nos legaram inúmeros avanços, se deparam com seus próprios limites, que, ao fim e ao cabo, são os limites do capitalismo. Vivemos, portanto, numa quadra histórica em que a radicalidade basagliana pode nos inspirar, nas particularidades do campo da saúde mental (álcool e outras drogas) e para além dele, para confrontarmos os inúmeros retrocessos vividos, nos marcos da radicalização de nossa práxis no mundo, rompendo com as narrativas do capitalismo como fim da história, de um lado, e de outro, com o próprio movimento destrutivo do capital de impor a nós o nosso fim.
Enquanto houver manicômios, Basaglia não só seguirá vivo, como a sua radicalidade se mostrará necessária. Somos continuidades de Basaglia, assim como de Frantz Fanon, Dona Ivone Lara, Ignacio Martín-Baró, e muitos/as outros/as que denotam que a produção humana é humana porque é histórica, social. Por isso, nunca está findada, está pronta ou acabada. É humana porque é historicizada; é historicização.
Certa feita, ao falar do fim da experiência que coordenou em Gorizia, Basaglia disse o seguinte: “‘Rei morto, Rei Posto’, morta Gorizia viva Gorizia, porque a situação das pessoas que saíram de Gorizia se disseminou numa diáspora” (4). Podemos dizer que, a partir de Trieste, essa diáspora se consolidou para além da Itália, sendo o Brasil um de seus destinos, mesmo sem Basaglia na condução direta.
Resgatamos e comemoramos Basaglia para que, em algum momento, não seja mais necessário resgatá-lo. Para que seja a última vez. Para que, enfim, possamos dizer: Basaglia está morto, viva Basaglia! Enquanto isso, Basaglia permanece não só vivo, mas cada vez mais necessário.
Reproduzindo uma faixa colocada no Parque Cultural de San Giovanni, em Trieste, no local do antigo hospital psiquiátrico, cujo fechamento por Basaglia e sua equipe é um marco da Luta Antimanicomial mundial: “Franco está vivo e lutando conosco!” (“Franco è vivo e lotta insieme a noi!”).
Viva Basaglia!
Viva a Luta Antimanicomial, mas oxalá um dia também possamos comemorar a sua morte!
Por uma sociedade sem manicômios!
Notas
1 Agradeço ao Centro Educacional Novas Abordagens Terapêuticas (CENAT) pela iniciativa, às facilitadoras e todas/os colegas que participaram da iniciativa.
2 BASAGLIA, F. Saúde e trabalho. In: BASAGLIA, F. Psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. São Paulo: Editora Brasil Debates, 1982a. p. 62-73.
3 Trecho de fala sua em: SCHITTAR, L. A ideologia da comunidade terapêutica. In: BASAGLIA, F. (Org.). A instituição negada. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985. p. 135-156.
4 BASAGLIA, F. Curso: a Comunidade Terapêutica. In: BAREMBLITT, G. (Org.). Um encontro inesquecível. Primeiro Simpósio Internacional de Psicanálise, Grupos e Instituições. Belo Horizonte: Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, 2024a. p. 577-609.
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