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Colunas

Franco Basaglia, 100 anos e os impasses da Reforma Psiquiátrica

Saúde Pública resiste

Uma coluna coletiva, produzida por profissionais da saúde, pesquisadores e estudantes de várias partes do País, voltada ao acompanhamento e debate sobre os ataques contra o SUS e a saúde pública, bem como às lutas de resistência pelo direito à saúde. Inaugurada em 07 de abril de 2022, Dia Mundial de Luta pela Saúde:

Ana Beatriz Valença – Enfermeira pela UFPE, doutoranda em Saúde Pública pela USP e militante do Afronte!;

Jorge Henrique – Enfermeiro pela UFPI atuante no DF, especialista em saúde coletiva e mestre em Políticas Públicas pela Fiocruz, integrante da Coletiva SUS DF e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal;

Karine Afonseca – Enfermeira no DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB, integrante da Coletiva SUS DF e da Associação Brasileira de Enfermagem, seção DF;

Lígia Maria – Enfermeira pela ESCS DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB. Também compõe a equipe do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei do DF;

Marcos Filipe – Estudante de Medicina, membro da coordenação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), militante do Afronte! e integrante da Coletiva SUS DF;

Rachel Euflauzino – Estudante de Terapia Ocupacional pela UFRJ e militante do Afronte!;

Paulo Ribeiro – Técnico em Saúde Pública – EPSJV/Fiocruz, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana – PPFH/UERJ e doutorando em Serviço Social na UFRJ;

Pedro Costa – Psicólogo e professor de Psicologia na Universidade de Brasília;

Por Pedro Costa

Nesta segunda, dia 11 de março de 2024, comemoramos os 100 anos de Franco Basaglia. Psiquiatra italiano, marxista e militante revolucionário, foi um dos principais nomes do que veio a ser chamado de Movimento Antimanicomial. Este, por sua vez, teve (e tem) como uma de suas principais conquistas o desenvolvimento de uma série de ações, no âmbito das políticas de saúde, denominadas por Reforma(s) Psiquiátrica(s). “Reforma” aqui não é um nome que representa o projeto de sociedade sem manicômios de Franco – e de muitos(as) que vieram antes dele e outros(as) depois, desenvolvendo a sua práxis acordo com as particularidades históricas e sociais.

Contudo, não quero falar aqui de Basaglia propriamente, mas daquilo contra o qual ele tanto lutou e luta, afinal, sua morte foi apenas física. Quero falar da mulher com a qual tive contato recentemente. Uma mulher jovem, de 18 anos, surda. Uma mulher, jovem, de 18 anos, surda, há quase um ano e meio em um hospital psiquiátrico (um manicômio). 

Segundo ela, e relatos de profissionais que trabalham na instituição, está ali basicamente por ser uma mulher, jovem, de 18 anos e surda. Sua trajetória de vida expressa inúmeras dificuldades, nenhuma delas “culpa” dela: o pai cumprindo o papel hegemônico de mero genitor, se ausentando da vida dela e de suas responsabilidades; o abandono pela família, contrastado pelo afeto da avó, que infelizmente faleceu, deixando-a “sozinha”, o que resultou em uma tristeza muito grande e na sua internação. 

Internação que é sinônimo de moradia, afinal, já se aproxima de um ano e meio – algo que é comum, ao se tratar de manicômios. E uma moradia em um hospital psiquiátrico, o que acaba por negar o próprio significado e o sentido de morada, de moradia. Asilada, manicomializada por ser mulher, jovem e surda. O asilamento e manicomialização como continuidade e recrudescimento do isolamento como normal a quem é mulher, jovem e surda.

E as dificuldades de sua vida não são por conta da surdez em si, mas de uma sociedade que dificulta a existência e produção de vida de qualquer uma(a) que foge da norma – estipulada por essa mesma sociedade e quem a domina. Não por acaso, a mulher, jovem, de 18 anos e surda falou muito para nós. Falou e fala tanto que a silenciam diariamente, não só nestes mais de um ano asilada-manicomializada. 

Jamais esquecerei do abraço apertado que ela deu na companheira que, ao escutá-la de verdade, ao conversar com ela, foi agarrada e escutou com aquele abraço um “não vá embora”. Sabe-se lá qual foi a última vez que a mulher, jovem, de 18 anos e surda foi, de fato, escutada. Se é que foi em algum momento da sua jovem vida.

“Mas ela não tem para onde ir ou com quem ficar”. A família não quer ficar com ela. Ora, então a saída é manicomializá-la? Só nos resta isso? Como aceitamos isto? Como deixamos isto acontecer?

Ouvimos relatos de que ela ficou triste com a morte da avó e até chegou a ter um surto. Ora, e isto não seria uma resposta normal à situação vivida? Uma manifestação consciente de alguém que parecia saber o que aquela perda indicava. Que era muito mais que a perda da avó querida e cuidadora. Era, antes de tudo, mais uma vez, a perda de si.

“Ela aqui tem alimentação, moradia…” Desde quando naturalizamos a noção de “mal menor”, sendo que este “mal menor” é ser e ficar asilada-manicomializada? Que “mal” é este? Que “menor” é este? E aqui questiono não os profissionais da instituição, mas todos nós, de modo que o “problema dela” é meu, é seu, é nosso. 

É ainda mais simbólico, ao ser real, o fato de ser uma mulher, jovem, de 18 anos e surda. O silenciamento de uma mulher, jovem, de 18 anos e surda como normal e norma. Se fosse uma história ficcional, roteiro de filme, reclamaríamos do clichê, de ser excessivamente professoral, didático.

As perguntas são feitas, de maneira genuína e com boas-intenções. Contudo, não se escuta as respostas, ao menos as mais importantes, já que a mulher, jovem, de 18 anos e surda, a qual as perguntas se referem não é escutada – mesmo com ela falando.

Lembrei dos inúmeros casos de pessoas, sobretudo mulheres, manicomializadas por, na época, serem “mudas”, “surdas”, outras por discordarem de seus maridos, dentre outros inúmeros motivos. Numa sociabilidade em que cabe à mulher ser recatada e do lar, nada melhor que o recato do lar” manicomial. Eis uma amostra – das muitas – de nosso presente pretérito no campo da saúde mental, que tem se avolumado no contexto de desmonte das políticas, do SUS, e da Contrarreforma Psiquiátrica.

Na conversa com ela, na qual fui mero assistente de anotações, fiquei o tempo todo me perguntando: o que poderíamos fazer? Pensei em todas as instituições, políticas e programas que cabiam, que eram direito dela, dizendo de suas necessidades assistenciais. Contudo, junto a isso, vinham não só a certeza de que ou eles não existiam ou estariam em número insuficiente, desestruturados, não podendo atendê-la – ou podendo reproduzir violências contra ela. 

Por fim, veio a constatação de que, mesmo que os serviços, os programas e as políticas existissem – e eles existem – e pudessem atendê-la, nenhum deles, nesta sociabilidade, de fato, atenderá as suas necessidades. Muito menos repararão todas as necessidades que foram criadas ou recrudescidas pela violência e o silenciamento os quais ela foi e tem sido submetida. 

É por isto que Reforma alguma, apesar de relevante, nos é suficiente. Queremos e necessitamos de mais.

Como disse Frantz Fanon, referência incontornável para Basaglia e para a Luta Antimanicomial:

“A função de uma estrutura social é edificar instituições atravessadas pela preocupação pelo homem. Uma sociedade que encurrala os seus membros em soluções desesperadas é uma sociedade inviável, uma sociedade a substituir”

Basaglia, presente!

Por uma sociedade sem manicômios!

 

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