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Relato 14: “Centenário de Franco Basaglia: 1924… 2024… Basaglia presente, eternamente!”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, latinoamericana, feminista, escrivinhadora, mãe, usuária da RAPS, militante da Resistência-Campinas, da Luta Antimanicomial pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial (CLNMSMA) e Conselheira Municipal de Saúde;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Andréa Santos Miron – Mulher, feminista, apaixonada pelo Sistema Único de Saúde, por fazer trilhas e astronôma amadora; Assistente Social de formação pela Universidade Federal de São Paulo, pós-graduada em Saúde Pública, Saúde Mental e Psiquiatria; Militante pela Resistência / Psol – Mauá/SP, pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial, pelo Fórum Paulista da Luta da Luta Antimanicomial e Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Carla Luiza Oliveira

Contar a história da luta antimanicomial italiana e suas conexões com a experiência brasileira, me emociona profundamente, ainda mais nesse momento que estamos rememorando e celebrando 100 anos de existência de Franco Basaglia entre nós. Quando me deparei pela primeira vez com essa história, ainda na graduação de psicologia, fui capturada de forma tão arrebatadora que direcionei toda a minha trajetória profissional e de pesquisadora pelos caminhos da saúde mental.

Relato aqui brevemente a história de vida, luta e trabalho desse psiquiatra italiano que na busca por novas alternativas de relacionarmos com a loucura (contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática!), tanto inspirou nossa forma de pensar e trabalhar em saúde mental aqui no Brasil.

Então vamos lá!

Basaglia nasceu em 11 de março de 1924, em Veneza, Itália.

Desde sua juventude, era muito questionador e preocupado com sua formação humana. Quando foi preso por seis meses ao lutar contra a repressão fascista na Itália, aprendeu ainda mais a valorizar a vida e lutar pela liberdade. Sua luta contra todas as formas de opressão e miséria foi uma marca importante em toda a sua trajetória de vida.

No final da Segunda Guerra Mundial, saiu da prisão e retornou à universidade para concluir sua graduação em medicina, formando-se em 1949. Se tornou psiquiatra, permanecendo na universidade como professor, totalizando 12 anos de vida acadêmica.

Ao se retirar da universidade, incompatibilizado com a visão burguesa-dominante da medicina italiana, Basaglia foi nomeado diretor do hospital psiquiátrico de Gorizia em 1961, vencendo o concurso para o cargo e se transferindo com toda a família para Gorizia. Ao entrar pela primeira vez nesse manicômio, sentiu como se estivesse retornado ao tempo em que esteve na prisão. Sofreu intenso impacto com a situação em que se encontravam os internos do manicômio, fechados a chave dentro dos pavilhões e nas celas de isolamento. Ao recordar do período em que esteve na prisão, Basaglia se identificou profundamente com a realidade daqueles internos do hospital. Sua primeira atitude foi melhorar as condições de hospedaria e o cuidado técnico dos internos, fazendo com que o manicômio passasse por um processo de humanização.

Em 1968, Basaglia liderou a iniciativa de fechamento do manicômio. Essa tentativa de superar o manicômio infelizmente faliu, por conta do clima político desfavorável, chegando assim, ao fim da experiência em Gorizia.

Em 1969, aceita o convite para ser professor visitante de um dos Centros de Saúde Mental Comunitária do Maimonides Hospital do Brooklyn, Nova York (EUA). Basaglia permanece por seis meses nos Estados Unidos.

Em 1970, retorna à Itália e inicia uma nova e curta experiência em Parma. Basaglia, esbarrando nas mesmas resistências sócio-políticas para o fechamento do hospital psiquiátrico, encerrou sua breve passagem por Parma e tomou caminho até Trieste, a convite do prefeito, foi nomeado diretor do hospital psiquiátrico de Trieste (Hospital de San Giovanni).

Enfim, em Trieste, Basaglia e seus companheiros de luta e trabalho conseguiram realizar o que tanto desejaram: derrubar os muros do manicômio através do processo de desinstitucionalização.

Basaglia participou da formulação da Lei 180, lei da reforma psiquiátrica italiana, aprovada em 13 de maio de 1978. A Lei 180, também conhecida como “Lei Basaglia”, estabeleceu a abolição dos hospitais psiquiátricos na Itália.

Em 1979, Basaglia deixou a direção do hospital em Trieste, sendo substituído por Franco Rotelli. Seguiu para Roma, onde assumiu o cargo de coordenador dos serviços psiquiátricos da Região de Lazio.

Basaglia faleceu em 29 de agosto de 1980, em Veneza, de um câncer cerebral, aos 56 anos.

Para finalizar, gostaria de retomar as visitas de Basaglia ao Brasil que ocorreram em 1978 e 1979. Em suas conferências e visitas aos manicômios, sempre trazia uma forte denúncia e reflexões acerca da realidade degradante de nossa assistência psiquiátrica da época. Suas conferências encorajavam e mobilizavam os brasileiros sedentos por mudanças na área psiquiátrica. Deixo aqui, a mensagem forte e atual que Basaglia disse em uma de suas conferências brasileiras ao responder sobre o significado de todo o trabalho desenvolvido na Itália:

O importante foi que demonstramos que o impossível podia tornar-se possível. Há 20, 15, 10 anos atrás era impensável que o manicômio pudesse ser destruído. Pode acontecer que os manicômios voltem a ser fechados e mais fechados ainda que antes, eu não sei! Mas, de qualquer forma, foi demonstrado que se pode assistir a pessoa louca de outra maneira, e isso é importante pelo testemunho. Não creio que o fato de uma ação conseguir ser aplicada em sua totalidade implique uma vitória. O importante é outra coisa, é saber o que se pode fazer”.

Que toda essa história continue reverberando e inspirando em nossa luta e resistência contra todos os tipos de manicômios e prisões, bem como, em nossa prática na saúde mental de cada dia! Viva Basaglia!