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OPRESSÕES

A armadilha colonial do pardismo e a importância da retomada indígena no contexto urbano

Por Porakê Munduruku
“Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijamente sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.”
Pero Vaz de Caminha,
Carta de Achamento do Brasil, 01/05/1500

Nem todo pardo é negro. Aliás, nestes territórios que convencionou-se chamar de Brasil, o próprio termo “pardo” surge historicamente para designar pessoas indígenas. Afinal, foi assim que Pero Vaz de Caminha se referiu a nós, em sua “Carta de Achamento do Brasil”.

Desde o início da invasão colonial a doutrina da guerra justa foi empregada para nos assimilar e apagar nosso pertencimento. Não havia como um milhão de portugueses dominarem, apenas pela força, algo entre cinco e dez milhões de indígenas que encontraram aqui. Até porque, foi um percentual mínimo deles que cruzou o Atlântico e as coroas europeias precisavam de mãos e pernas para lutar suas guerras, executar o trabalho pesado e fazer cumprir suas ordens. Então, a catequese colonial e o apagamento das identidades indígenas sempre foram partes essenciais de seu projeto de dominação. Se muitos de nós foram trucidados pelas espadas, pelas balas e pelas doenças trazidas pelo colonizador, muito mais foram convencidos a negarem suas ancestralidades originárias e se autodeclararem caboclos, ribeirinhos, mestiços ou pardos, servindo como escravizados, soldados, trabalhadores precarização de todo tipo.

Historicamente, indígenas têm sido invisibilizados sob o rótulo de “pardos” e isso não é culpa do movimento negro. Desde a invasão colonial europeia até os censos do IBGE na década de 80 do século XX, pardo foi um termo para designar pessoas indígenas. E segue sendo assim, ainda hoje, em especial para indígenas em contextos urbanos. O movimento negro apenas foi sagaz o suficiente para perceber que acolher os pardos fortalecia sua luta.

O projeto colonial de extermínio do nosso pertencimento étnico foi tão bem-sucedido que convenceu muitos de nós que indígenas não representam nem sequer 1% da população do país. Segundo o Censo do IBGE de 2022, apenas 1.693.535 pessoas se reconhecem indígenas no Brasil, o que corresponde a 0,83% da população total. E, ainda assim, quase dois terços desse ínfimo percentual vive fora das Terras Indígenas, demarcadas ou em processo de demarcação, quase sempre em situação de vulnerabilidade social, nas periferias dos centros urbanos, sem qualquer acesso às politicas públicas voltadas às pessoas indígenas.  

Nada disso nega ou diminui a necessidade de políticas afirmativas para essas pessoas lidas como pardas ou mestiças. Assim como, também não nega nem diminui o mérito e o exemplo de acolhimento do movimento negro ao ter abraçado indistintamente todas as pessoas pardas como parte de sua luta contra o racismo e o colonialismo eurocentrado. Mas este cenário nos coloca o desafio de encarar esta dura realidade e refletirmos coletivamente sobre como os conceitos de indígena, de negro e de pardo foram construídos e impostos a nós.

O pardismo, essa ideia de que é desejável ou possível construir uma identidade racial parda ou mestiça desvinculada das lutas dos povos negros ou indígenas, não passa de uma ideologia nefasta, uma nova versão das velhas hierarquias raciais criadas pelo eugenismo e o supremacismo branco, que visa dividir e enfraquecer a resistência dos povos racializados contra a opressão e a exploração que nos são impostas pela sociedade colonial-capitalista, apagando nossas ancestralidade e nossa história de resistência. 

Contra o pardismo e o apagamento de nossa identidade étnico-racial, precisamos retomar a aliança ancestral entre negros e indígenas. A tradicional aliança entre povos oprimidos e racializados que deu origem a diversas tecnologias de resistência como os quilombos, a capoeira, as favelas, o hip-hop e todas as demais formas de luta anticolonial que têm nos permitido sobreviver ao longo dos últimos cinco séculos.

As armadilhas do identitarismo e a importância da identidade

Não existe ser humano sem identidade, nem identidade sem coletividade. Ninguém é nada sozinho, nos definimos por nossas relações com as outras pessoas e com tudo mais a nossa volta. Você não aprendeu a falar, nem a pensar sozinho. Você não fez a roupa que veste, nem o teto sobre sua cabeça, nem plantou ou criou tudo o que come. E mesmo quem faz alguma dessas coisas, não o faz sozinho. A coletividade não nega o indivíduo, mas possibilita sua existência. Assim como o universal não nega a identidade, mas a explica. A identidade é a expressão da coletividade no indivíduo. É o reflexo da realidade material na qual estamos inseridos e de nosso contexto histórico, cultural, social e político.

A identidade pseudo-universal que nos é imposta pela violência colonial-capitalista é aquela que serve aos interesses do colonizador. É o identitarismo machista, branco, heteronormativo e europeu que nos impõe a civilização piramidal, com o colonizador no topo. A armadilha deste identitarismo, oculto sob uma farsa de universalidade, é que mesmo quando no opomos a ele, tendemos a permanecer presos a sua lógica. Aprisionados, queremos substituir quem está no topo, não implodir a pirâmide. Então buscamos nossas referências em impérios africanos ou indígenas, ao invés de lembrarmos que nem sempre existiram impérios e ele não precisam existir para sempre. Restringimos nossa possibilidade de pensar coletividades humanas para além dos limites impostos pela catequese colonial, com suas monarquias, monoteísmos e monocultivo de ideias e formas de estar no mundo.

Reconhecer a importância da diversidade e da possibilidade de outras identidades é reconhecer a própria realidade e a riqueza que nos permitiu sobreviver até aqui e que pode nos ajudar a superar os desafios do presente, sem negar a universidade dos fatos que na realidade nos unem: 1. Somos Natureza; 2. Ser humano é ser coletivo; 3. A cultura é a natureza do humano.

Mestiçagem, pureza racial e a questão afro-indígena

Qualquer discussão sobre racismo precisa partir do fato de que raças não existem, a não ser como construções históricas e sociais. E nem por isso são menos reais ou impiedosas em moldar nossa realidade. Do ponto de vista estritamente biológico, graças a um evento ambiental catastrófico ocorrido há 70.000 anos que nos levou à beira da extinção, há mais variabilidade genética entre dois cães do que entre duas pessoas vivas em qualquer lugar do planeta. Como é fácil constatar pela variedade de cores, tamanhos, formatos e aptidões existente entre os cães, ainda que todos representem uma única espécie. 

Raça não é sinônimo de etnia. Etnia é um conceito oriundo das ciências humanas, fundamentado em parâmetros históricos, geográficos e culturais, não biológicos. No contexto biológico, o termo “raça”, na melhor das hipóteses, poderia ser usado como sinônimo de subespécie, um conceito por si só bastante controverso na biologia. E, ainda assim, na atualidade, e em grande medida graças aos avanços da própria genética, sabemos que não se pode falar em subespécies de Homo sapiens por qualquer critério razoável.

O conceito de raça é uma imposição do colonizador. Na longa e conturbada jornada da espécie humana, a raça é uma invenção incrivelmente recente, que surge no contexto das “grandes navegações”, criado para desumanizar e dominar os povos colonizados. Nossos ancestrais indígenas não separavam as pessoas em raças, nem as segregavam com base em sua mera aparência ou na cor de suas peles. E, por isso, acolheram os europeus maltrapilhos e famintos que desembarcaram em nossas praias. E, mais tarde, se aliaram com os africanos raptados para construir os quilombos e tantas outras formas de resistência.

Ao nos apropriarmos dos conceitos de raça e etnia precisamos resignificá-los com base em seus processos de construção histórica e de seus reflexos em nossa realidade social, cultural, econômica e política. Raça e etnia são conceitos diferentes, que se combinam de forma deliberadamente confusa na identidade indígena que nos é imposta. 

Raça se refere a uma categoria supostamente biológica, embora, como já vimos, não encontre qualquer respaldo na biologia. A raça segrega as pessoas com base em sua aparência, segundo padrões estéticos, social e historicamente construídos. Já etnia é uma categoria assumidamente histórico-cultural, que segrega as pessoas em função de especificidades como língua, cosmovisão e modo de vida. Não temos qualquer compromisso com a manutenção do conceito de raça, embora o conceito de etnia nos ajude a compreender e valorizar a diversidade de formas de estar no mundo que a humanidade é capaz de engendrar. O objetivo estratégico da luta antirracista é tornar o conceito de raça obsoleto e irrelevante para as interações sociais, embora, desgraçadamente, estejamos ainda muito longe disso.

No movimento negro, o conceito fundamental é raça e a luta central é contra o racismo e a segregação e a superexploração que ele promove. No movimento indígena, o conceito central é etnia e a luta fundamental é contra o etnocídio que promove o apagamento de nossas formas originárias de estar no mundo. Mas nós, indígenas, também sofremos com o racismo. Assim como, os negros também são vítimas do etnocídio e do apagamento de suas formas originárias de estar no mundo. Temos muito a aprender uns com os outros. O que nos une, em última instância, é a luta anticolonial e a necessidade de construir, no presente, um futuro que rompa com os limites que nos são impostos pelo colonizador, um futuro livre dos grilhões da opressão (racista, machista, xenofóbica, lgbtfóbica e capacitista) e da exploração das sociedades de classes.

Contudo, hoje vivemos em um mundo dominado pelo colonizador. Estamos todos imersos na sociedade colonial, ela nos envolve e atravessa. Sofremos as consequências de tudo que nos é imposto pelo colonizador, inclusive o fato de estarmos submetidos à discriminação racista, com base em nossa aparência e em como nos enquadramos, ou não, em um padrão estereotipado estabelecido pelo sistema colonial-capitalista. Para nós, pessoas indígena: a pele parda, os cabelos negros e lisos e os olhos puxados. Negar a existência do racismo e da racialização de corpos indígenas é negar uma realidade que nos afeta e violenta, ainda que compreendamos que raça é uma construção histórica e social colonial, não um fato biológico.

Infelizmente, este aspecto racial da luta indígena costuma ser negado ou ignorado por muitos de nós. Em geral, a questão do pertencimento indígena se resume ao pertencimento étnico, ou seja, ao vínculo que mantemos com um povo originário específico, independente de nossas aparências. Mas isso não é suficiente para atender os anseios de milhões de órfãos vítimas do etnocídio de seus ancestrais, que sofrem na pele o racismo do colonizador, por serem lidos como pessoas indígenas, embora não sejam acolhidos por um povo indígena específico. Suas dores e destinos também nos dizem respeito.

Por suas trajetórias, indígena e negro, já  demostraram ser conceitos suscetíveis à resignificação anticolonial , pelo potencial de possuem de unificar as lutas dos diferentes povos originários de Abya Yala e dos povos raptados de África contra a violência colonial. Porém, o mesmo não se pode dizer sobre a categoria pardo, esta não se enquadra neste critério e segue sendo apenas uma invencionice do colonizador, que divide e enfraquece a resistência indígena e negra, negando o vínculo das lutas do presente com a resistência do passado e as diferentes formas de estar no mundo pré-coloniais. 

O pardismo é uma consequência da penetração de ideologias supremacistas no seio do próprio movimento anticolonial, que leva amplos setores desses movimentos a idealizarem um “indígena puro” ou um “negro puro”, hostilizando tudo que não se enquadre nestes ideais platônicos de pureza racial. Para fazer avançar a luta antirracista precisamos reconhecer que as pessoas que hoje são socialmente lidas como pardas são, na realidade, pessoas negras ou indígenas, que precisam ser acolhidas por nós.

Há muitas confluências entre as lutas negras e indígenas, mas também há algumas divergências. E só faz algum sentido nos afirmarmos como indígenas ou negros se for para combater o racismo e o colonialismo. Para nós, essas categorias são bandeiras sob as quais unificamos as lutas de diferentes povos que resistem ao sistema colonial-capitalista. Você não pertence a uma raça, você escolhe, ou não, se vincular a uma determinada ancestralidade pré-colonial que segue resistindo através de você. 

O senso comum tende a comparar a situação dos indígenas a dos negros de maneira acrítica, sem problematizar estes conceitos. Dessa maneira, a comparação torna-se injusta e serve apenas aos interesses do colonizador, que nos apresenta o negro como uma categoria racial que, embora expresse uma condição histórica e política de opressão, se fundamenta em critérios fenotípicos que podem ser estendidos a quase qualquer pessoa não branca; enquanto a categoria indígena se fundamenta no pertencimento étnico a uma comunidade ou povo determinado, nos sendo imposta quase sempre da forma mais restritiva possível, pois não basta ter aparência indígena ou mesmo ancestralidade indígena, é exigido o vínculo formal de pertencimento a um território específico demarcado pelo estado colonial brasileiro. Ou seja, a identidade negra nos é imposta como uma questão racial (fenotípica) e inclusiva, enquanto a identidade indígena nos é imposta como uma questão étnica (cultural) e restrita. Uma comparação mais justa pode ser feita entre quilombolas e indígenas, segundo os dados do Censo do IBGE de 2022, a população brasileira conta com 1,3 milhões de quilombolas (0,65% do total) e 1,7 milhões de indígenas (0,8% do total). E enquanto o percentual de indígenas que vivem fora de territórios demarcados é de 63%, o percentual de quilombolas vivendo fora de seus territórios é de 87,4%.

Porém, as lutas quilombolas estão circunscritas dentro de uma luta muito maior, a luta das Populações Negras, que, até então, tem abarcado pessoas que se autodeclaram pretas (10,8% do total da população) e pardas (45,3% do total). Assim, ainda que o termo pardo esteja historicamente muito mais relacionados às pessoas indígenas, o movimento negro tem conquistado importantes avanço, ao se colocar como a maioria da população brasileira acolhendo os pardos, enquanto nós, indígenas, temos visto retroceder nossas pautas, enquanto nos contentamos em sermos resumidos à menos de 1% da população e hostilizamos os “indígenas autodeclarados”. A quem interessa que sejamos tão poucos? Como pode o Brasil ser “territórios indígena” se não somos nem sequer 1% de sua população?

Problematizar e resignificar o conceito de indígena que nos é imposto para fazê-lo incluir também aquelas pessoas tidas hoje como “descendentes indígenas” e que vivem fora dos territórios demarcados, tem o potencial de ampliar em muito a força, o alcance e a relevância das lutas indígenas no Brasil, expondo o fato de que grande parte das pessoas lidas como pardas, se não a maioria delas, são indígenas vitimas do apagamento de seu pertencimento étnico-racial pela violência colonial.

Afinal, mestiço é cruza de jumento com égua. Somos a resistência de nossos ancestrais contra a violência colonial. Somos povos originários! Uma “identidade mestiça” só pode existir para quem admite a existência de “raças puras”. Por isso, a afirmação de uma identidade mestiça ou parda, independente das lutas negras e indígenas, por mais bem intencionada que pretenda ser, acaba afirmando ideais coloniais e eugenistas de pureza racial. E embora seja um fato incontornável que a segregação racial se baseie em critérios fenotípicos, também é  fato que mestiços não existem, uma vez que ninguém é puro racialmente. Tudo que existe  são as lutas dos povos originários de Abya Yala (Indígenas) e dos povos vítimas da diáspora africana (Negros) contra o colonizador. Qual delas é a sua?

Quem decide quem é ou não indígena?

Em tese, os próprios povos indígenas são os únicos com legitimidade para definir quem é, ou não, indígena. Mas antes mesmo de perguntarmos a eles, precisamos saber quem são. Afirmar que só indígenas podem definir quem pode clamar essa identidade já pressupõe uma definição de quem somos nós. Assim, as questões realmente relevantes para essa discussão são: quem inventou a noção de indígena? E para que ela serve?

Quem colocou em um mesmo balaio centenas de povos originários de Abya Yala, com línguas, aparências e culturas completamente diferentes, foi o colonizador. Antes da invasão europeia não existia uma identidade indígena única. Éramos Munduruku, Mura, Kaa’por, Juruna, Pataxó, Guarani, Xukuru, Kaingang e centenas, talvez milhares, de outras etnias, mas não éramos uma coisa só. A noção de uma identidade indígena única é um produto da invasão colonial. A identidade indígena nos foi imposta como parte do processo colonial de racialização, ou seja, de segregação e desumanização de povos colonizados. O objetivo do colonizador ao unificar incontáveis etnias sob uma única categoria racial foi a de apagar nossas memórias, nossa diversidade e nosso vínculo ancestral com o território e, assim, facilitar seu controle e dominação. 

Por um lado, há o estereótipo colonial sobre “o indígena”, que de muitas maneiras foi assimilado, até mesmo, por nossos parentes que vivem nos territórios, e incluí uma concepção de pureza étnica ou cultural. Por outro lado, há uma questão racial, que surge do fato de que a segregação racial no Brasil se dá em base a aparência. O que gera situações absurdas, como o fato de que indígenas que possuem corpos racializados são tratados da mesma forma que indígenas racialmente lidos como pessoas brancas na hora de acessar políticas afirmativas. Ao passo que, pessoas com fenótipos tidos como indígena são alvo de racismo, mesmo sem autodeclaração ou vínculo com comunidades indígenas, e estão completamente desamparadas, por não serem negras e muitas vezes não se enquadrarem nos critérios exigidos pelas bancas de heteroidentificacão, onde o que se busca são características fenotípicas de pessoas negras, não de pessoas indígenas. 

Precisamos enfrentar essas complexidades e discutir a questão do pertencimento indígena em suas duas dimensões: étnica (cultural) e racial (fenotípica), observando nossos próprios interesses e rompendo com as noções que nos são impostas pelo colonizador.

Nem todo indígena é aldeado, na mesma medida em que nem todo o negro é quilombola. E nem todo pardo é negro, há também o pardo indígena, que vive nas cidades e teve sua identidade étnica arrancada pela violência colonial. Nada disso significa negar as diferenças que existem entre indígenas nos mais diferentes contextos. Significa apenas que as políticas públicas voltadas para as populações indígenas devem considerar nossas peculiaridades concretas, da mesma forma como o movimento negro já conquistou o direito de ter suas peculiaridades consideradas na elaboração e aplicação de políticas públicas voltadas para as populações quilombolas e negras urbanas, acolhendo e não negando esta diversidade.

Somos irredutíveis: Viva a retomada ancestral! 

Para o colonizador, o pertencimento indígena é uma ameaça, pois quando se diz “indígena” o colonizador ouve “luta por terra”, então, num país de elites agrárias, interessa ao colonizador que sejamos exterminados ou, pelo menos, reduzidos ao mínimo possível. Por isso, a retomada ancestral de nosso pertencimento étnico-racial, questionando os roubos e apagamentos coloniais, é uma das formas mais poderosas e efetivas de luta-anticolonial. Povos inteiros, que foram declarados extintos ou nem sequer chegaram a ser reconhecidos pelo estado-colonial brasileiro têm feito parte de um intenso movimento de retomada ancestral de suas identidades étnico-raciais que envolve a luta por território no Brasil, nas últimas cinco décadas. E isso tem sido fundamental para fortalecer as lutas indígenas.

A luta pela demarcação de todos os territórios indígenas é essencial para todos nós, pessoas indígenas, mas seu objetivo sempre foi o de restringir a destruição promovida pelo colonizador, não nossas possibilidades de existência enquanto povos indígenas. Com malícia, o colonizador tenta colocar nossa luta justa e necessária contra nós, quando restringe nosso direito de ser indígena aos limites estritos dos territórios demarcados.

Antes da invasão, nossos ancestrais já possuíam várias formas de estar no mundo. Nós já tínhamos grandes cidades, como Tenochtitlan, não apenas na “mesoamérica” e nos Andes, mas, também, no Marajó, no Alto Xingu, no Baixo Tapajós, no Acre, em Rondônia e na Bolívia. Civilizações tão avançadas que domesticaram culturas vitais para a humanidade até a atualidade, como: o milho, a batata, a mandioca, o amendoim e o cacau, de onde se extrai o chocolate. Ainda que, a maioria de nossos ancestrais pertencesse a povos nômades, que desconheciam fronteiras, divisas ou limites arbitrariamente demarcados. 

Ao tentar apagar toda essa riqueza, diversidade e complexidade, o colonizador também tenta nos aprisionar em um estereótipo do ser indígena que nos proíbe de ser quem somos em nossos próprios termos. Desafiar os estereótipos que nos são impostos para afirmar nossas identidades, onde quer que estejamos, é uma das formas mais efetivas de manter viva a resistência anticolonial e honrar nossos ancestrais. Diferentes de nossos irmãos negros, não estamos em diáspora. O Brasil é nosso território ancestral. Abya Yala é nosso território ancestral! Nosso território é onde nossos pés pisam! Por isso, estamos em retomada. E é nosso dever cultivar nossos vínculos com a Natureza e a Ancestralidade onde quer que estivermos. Indígena é indígena em qualquer lugar! 

A retomada ancestral no contexto urbano,  envolve necessariamente o apoio à luta pela demarcação dos territórios indígenas, mas precisa também envolver a consciência histórico-etnico-racial, que emerge de nosso vínculo com a Natureza e a Ancestralidade, para promover as lutas por moradia, saúde, saneamento, meio-ambiente, educação e condições de vida digna nas periferias dos centros urbanos. Assim como, a luta por outras possibilidades de urbanidade. E esta luta não é menos importante que a primeira.

Mesmo antes do regime de aviamento, do trabalho compulsório e da escravidão indígena – ainda muito invisibilizada – houveram as chamadas “reduções”, onde, pela força ou pelo convencimento éramos reunidos em aldeamentos administrados pelo colonizador para sermos amansados, cristianizados e “civilizados”. O aldeamento tem sua origem na violenta imposição da catequese colonial. Aquelas e aqueles que o colonizador não conseguiu subjugar e reduzir aos seus aldeamentos eram chamados de irredutíveis. Para esses, sim, o colonizador priorizou o extermínio físico em detrimento da estratégia da assimilação.

Quando um ou uma sobrevivente das reduções entende tudo que lhe foi tomado e decide retomar o pertencimento étnico negado aos seus ancestrais, honra a memória dos irredutíveis e fortalece nossa resistência anticolonial. Quem vê na retomada ancestral uma “banalização” ou “diluição” da identidade indígena está sendo conivente com o apagamento e o extermínio de nossos ancestrais, mesmo que não se dê conta. Na defesa do direito dos sobreviventes da invasão colonial de retomarem as lutas e a consciência de nossa ancestralidade, somos irredutíveis: Viva a retomada ancestral!