Nenhuma explicação sobre a expansão humana e domínio do planeta pode ignorar a exploração dos animais. Além de servirem como alimento, os animais foram progressivamente afastados dos seres humanos até serem vistos como ferramentas. Isso nos mostra o quanto a exploração animal está intrinsecamente ligada à nossa existência atual. Um exemplo claro é que, mesmo após superar a tração animal, ainda usamos gorduras animais em nossos combustíveis para lubrificar motores e continuar movendo nossa sociedade.
De todas as lutas contra a opressão que ganharam destaque a partir do século XIX, o animalismo é uma das mais singulares. Enquanto muitos movimentos focam em humanizar aqueles que sofrem, no animalismo buscamos subverter a ideia de que apenas humanos merecem consideração moral, uma vez que animais sencientes também sentem dor, alegria, medo e tantos outros sentimentos comuns à experiência humana. Assim, é importante reconhecer que nada pode justificar a tortura e subjugação sistêmica que certas espécies são sujeitas.
Por que um entendimento eco-centrado não é suficiente?
Se considerarmos a noção de valor moral intrínseco, que atribui importância à proteção de algo independentemente de sua relação conosco, a ética ambiental pode ser dividida em três desdobramentos: antropocentrismo, ecocentrismo e biocentrismo.
No antropocentrismo, o valor moral está centrado no ser humano. Muitas ações ambientalistas podem ser realizadas sob essa perspectiva, e isso é o mínimo esperado dos tomadores de decisão. Exemplos incluem a criação de parques de preservação destinados à caça, a redução do aquecimento global por motivos econômicos e a construção de barragens que destroem alguns ecossistemas, mas têm impactos limitados sobre os humanos.
Em perspectivas ecocentradas pensa-se de maneira sistêmica, o valor da existência e manutenção de um ecossistema é central na tomada de decisão, mesmo que isso acarrete em instrumentalização de indivíduos (animais) para tanto. Deixar de lado os animais leva a uma perspectiva muito antropocêntrica, uma vez que os ecossistemas são instrumentos teóricos de entendimento do mundo e não carregam nenhuma vontade como sistema, ao contrário de indivíduos que buscam claramente sua sobrevivência.
Já em perspectivas biocentradas-animalistas é colocado o valor moral nos seres sencientes, ou seja, naqueles indivíduos que têm a capacidade de sentir, capacidade cada vez mais percebida cientificamente no reino animal. Sem contar as capacidades cognitivas que muitos animais que estão rotineiramente nos pratos de comida têm. Um exemplo são certas espécies de polvo que possuem capacidade de resolver problemas complexos de matemática com mais facilidade que muitos humanos. Nessa perspectiva entra o movimento vegano-vegetariano, que muitas vezes é uma releitura individual de uma questão sistêmica e uma forma de comercializar o lifestyle abandonando a crítica sistêmica da exploração animal.
Essa análise sempre leva a extensas discussões de casos limites, mas lhes asseguro que nenhuma corrente defende que o ser humano tenha que considerar, em escala individual ou coletiva, ter sua vida ameaçada para continuar seguindo com os parâmetros éticos colocados no ecocentrismo, biocentrismo e muito menos antropocentrismo. Para um aprofundamento, recomendo a leitura do livro “Qual o Valor da Natureza” publicado pela editora Elefante.
Marxismo Animalista
Por algum motivo, além da minha compreensão, Hollywood só permite filmes de organização proletária de grande escala exitosa quando protagonizados por animais, vide Bee movie e Fuga das Galinhas. Mas a comunhão de marxismo e animalismo pode trazer muito mais frutos do que entretenimento se analisada com mais seriedade.
Primeiramente, não há mais clara demonstração da brutalidade do capitalismo do que o sofrimento animal em processos industriais de crescimento, manejo e abate. E de maneira sádica algumas espécies foram desproporcionalmente condenadas a carregar esse fardo, o que chamamos de especismo. Se, em paralelo a Engels, analisarmos “A Situação da Classe Aviária no Galinheiro” encontraremos um retrato ainda mais distópico do que a Inglaterra dos anos 1880.
Um pintinho afortunado evita ter seu pescoço cortado dias após o nascimento, enquanto seus irmãos menos afortunados são triturados e transformados em nuggets. Ele é então encaminhado para um campo de concentração de galinhas, onde é necessário arrancar seu bico para evitar automutilação ou ataques a outras galinhas devido ao espaço extremamente pequeno. Em uma vida inteiramente dedicada a comer, sem nunca ver outro espaço além do galinheiro, esses animais recebem doses contínuas de antibióticos preventivos para não adoecerem. Em alguns meses, um processo que naturalmente levaria anos, as galinhas atingem um peso que justifica o abate. Nesse ponto, o abate é a ação mais ética, pois, se continuassem nesse ambiente, as galinhas engordariam tanto que não conseguiriam se sustentar de pé. De cabeça para baixo e gritando, as galinhas são levadas para uma máquina onde seus pescoços são cortados, pondo fim a uma vida de sofrimento.
A alimentação coletiva centrada no assassinato de seres sencientes é um fantasma sobre nossa sociedade, refletindo nas violências que cometemos por mais que queiramos esconder. Ademais, a percepção de futuras gerações será de total asco para a forma como foi lidado a relação humano-animal. Por isso a libertação animal, feita de maneira sistêmica e respeitando as tradições das culturas tradicionais, deve ser entendida como benéfica também para o ser humano.
Não defendo que as formas tradicionais de pesca e caça sejam extintas, pois essas relações, muitas vezes, são de mutualismo ou garantem a expansão dos recursos naturais para que mais animais possam viver livres. Exemplo disso é a relação boto-pescador na cidade de Imbé, Brasil, onde os animais ensinam suas proles a pescar junto com pescadores de tarrafa, que têm um impacto baixíssimo comparado à pesca industrial, também presente na região. Outro exemplo é a caça tradicional dos indígenas Yanomami, que não só garante sua sobrevivência, mas também protege a floresta, pois as terras indígenas são áreas protegidas. Esse manejo permite que ciclos ecossistêmicos continuem.
O movimento vegano pode ter certeza do seu sucesso, pois o modo de alimentação atual da humanidade é simplesmente insustentável. Infelizmente, essa mudança não pode ser vista como positiva se resultar no empobrecimento da dieta da maioria da população sem um planejamento adequado. Se 10 bilhões de pessoas consumissem carne como fazemos hoje, toda a terra do planeta, incluindo florestas, precisaria ser cultivada. É importante ressaltar que, ao contrário do que muitos pensam, uma dieta vegana não exige mais cultivo de terras. Segundo a FAO, todos os anos 465 milhões de toneladas de grãos são usadas na alimentação de gado. Com 50% dessa produção, seria suficiente para acabar com a fome do mundo, enquanto o restante poderia ser regenerado. A questão é: esse fim será para todos? Ou aqueles que atrelam o consumo excessivo de carne ao American way of Life, que orquestram o genocídio animal através de seus meios de produção e fazem lobby para manter essa discussão fora do debate público e institucional, continuarão a comer carne?
A discussão da relação que os movimentos marxistas tiveram com o ambientalismo tem sido um ponto de explosão de novas ideias, dois livros desse campo se destacam Marx’s ecology e The return of nature, ambos contra-argumentam a famosa crítica de que o marxismo é intrinsecamente produtivista e desenvolvimentista, porém ambos os livros deixam de lado a análise da relação dos pensadores com o reino animal. Baseado nos achados de Ryan Gunderson no artigo Marx’s Comments on Animal Welfare, essa omissão talvez seja causada pela espinhesa desse assunto dentro dos círculos de esquerda, uma vez que a preocupação com o bem-estar animal era vista como hipocrisia burguesa, já que era comum a crítica de que os patrões se preocupavam mais em cuidar de seus animais do que de seus trabalhadores. Todavia, existe registro de uma citação que Marx fez do autor Thomas Müntzer que encapsula as ideias que aqui defendo: “é intolerável que toda criatura se transforme em propriedade, os peixes da água, os pássaros do céu, as plantas da terra: as criaturas também devem tornar-se livre”.
Referências:
What would Marx, Engels and Lenin think of bio socialism?
Qual Valor da Natureza?
Política Sexual da Carne
Marx’s Comments on Animal Welfare, Ryan Gunderson
Marx’s Comments on Animal Welfare, Ryan Gunderson
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