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A teoria do “partido-embrião”

Membros da Liga de Luta pela Emancipação da Classe Operaria de São Petersburgo, 1897

Henrique Canary

Henrique Canary é graduado e mestre em História pela Universidade Russa da Amizade dos Povos (Moscou) e doutor em Letras pela USP (Programa de Literatura e Cultura Russa). Escreve sobre história, organização e estratégia do movimento socialista.

Algumas organizações da esquerda radical têm uma teoria: a teoria do “partido-embrião”. Ela não está formulada em nenhum lugar específico, mas existe e prospera. Aparece em panfletos, orientações organizativas e debates. O que diz essa teoria? Basicamente, que uma pequena corrente de ativistas, que em geral conta com algumas centenas de militantes (às vezes até dezenas), é – nada mais, nada menos – do que o próprio “embrião” do futuro partido revolucionário que dirigirá as massas, tomará o poder, exercerá a ditadura do proletariado, construirá o socialismo e chegará ao comunismo.

Sob certos aspectos, parece uma teoria até modesta. Afinal de contas, eles não dizem “somos o partido”. Dizem apenas “somos o embrião desse futuro partido”. Ou seja, precisamos ainda crescer, nos fortalecer, consumir nutrientes, para somente então cumprir o papel histórico que nos cabe. Mas apenas parece modesta. No fundo, é uma teoria bastante arrogante. Por que? Por vários motivos.

Em primeiro lugar, porque ela pressupõe que a futura revolução brasileira (ou em qualquer outro país onde essa teoria exista) será feita por uma única organização socialista em oposição a todas as outras. “Nos construiremos contra tudo e contra todos, na defesa do verdadeiro programa e da verdadeira estratégia socialista e revolucionária”. Ou seja, é uma concepção messiânica, que afirma que uma organização socialista cresce linearmente desde um pequeno grupo de propaganda até chegar à “maturidade” (a possibilidade da disputa pelo poder), exatamente como um embrião simplesmente cresce e se torna um indivíduo adulto.

De onde vem essa concepção? Provavelmente, de uma compreensão unilateral do que foi a história do partido bolchevique. A fração bolchevique do Partido Operário Social-Democrata Russo surgiu em 1903 e se manteve ao longo dos anos como um núcleo relativamente estável de dirigentes mais ou menos homogêneos política e ideologicamente. E de fato foi essa fração que tomou o poder em outubro de 1917 “contra tudo e contra todos”, exerceu o poder e dirigiu a transformação socialista da sociedade de maneira monopolística. Foi assim que aconteceu. A grande questão é: era esse o plano? Sustentamos que não. Os bolcheviques exerceram o monopólio político na URSS, mas esse nunca foi seu projeto. Lênin chegou a Petrogrado em abril de 1917 e defendeu, em primeiro lugar, a passagem do poder de Estado aos sovietes, cuja maioria era socialista-revolucionária e menchevique, e essa linha de chamar a direção majoritária do movimento a tomar o poder permaneceu ao longo de todo o ano de 1917. Alguém poderia argumentar que se tratava apenas de uma tática ou manobra de Lênin para disputar a direção do movimento e conquistar a totalidade do poder para o partido bolchevique. Mas isso não é assim. Várias vezes ao longo de 1917, Lênin repetiu que sua estratégia era o poder soviético, não o poder deste ou daquele partido, desta ou daquela fração. Em seu chamado aos socialistas-revolucionários e mencheviques para que rompessem com a burguesia e tomassem o poder (ou seja, a passagem pacífica do poder do Governo Provisório para Comitê Executivo dos Sovietes), Lênin se comprometia em – caso essa passagem pacífica de poder ocorresse – respeitar a legalidade do movimento, ou seja, atuar no seio dos sovietes como uma minoria leal ao regime. O que sim Lênin fez foi deixar uma porta aberta para a possibilidade de tomar o poder como partido, como organização separada. Mas isso foi uma saída para não desperdiçar a chance da insurreição. Não era seu plano inicial.

Mais tarde, depois da conquista do poder pelos sovietes em base à maioria bolchevique e socialista-revolucionária de esquerda, os bolcheviques começaram negociações com os mencheviques e socialistas-revolucionários de direita para compor um governo socialista amplo e unitário. Essas negociações estão muito bem documentadas na história. O problema é que os mencheviques e socialistas-revolucionários de direita exigiam a demissão de Lênin e Trótski do governo, coisa que, obviamente, os bolcheviques não podiam aceitar. Somente por isso não se formou, em pleno novembro de 1917, um governo socialista amplo, de todas as correntes soviéticas. Mas é importante lembrar que essa hipótese esteve colocada e os bolcheviques a testaram com sinceridade por algum tempo.

Ou seja, o monopólio do poder nunca foi uma estratégia ou um ponto programático bolchevique. Foi uma imposição da realidade, um desfecho até certo ponto inesperado e mesmo indesejado.

Quando os mencheviques e socialistas-revolucionários de direita se negaram a compor o governo e romperam definitivamente com os bolcheviques, essa ruptura adquiriu um caráter mundial e dramático. No mundo inteiro, o movimento operário se dividiu entre aqueles que apoiavam o novo governo bolchevique e aqueles moderados que pensavam que tudo não passava de uma aventura condenável. Esse fato teve graves consequências na história do movimento comunista mundial: o monopólio do poder passou a ser encarado como uma estratégia desejável, legítima dos socialistas, o que estava em desacordo com toda a história anterior.

Mas voltemos ao centro deste artigo. O que faz, então, a teoria do “partido-embrião”? Ela encara a acidentada história do bolchevismo como um ideal a ser repetido nos mínimos detalhes. “Se os bolcheviques tomaram e exerceram o poder sozinhos, nós também o faremos”. Por que? Não se pensa muito bem sobre isso.

Assim, a teoria do “partido-embrião” está na base de uma concepção sectária, messiânica, esquemática e ultimatista de partido. Com o ímpeto de provar a correção de certas posições absolutamente transitórias, trabalha-se contra todo o movimento socialista, porque é preciso triunfar sobre os “oportunistas” e “falsos discípulos”. O objetivo histórico passa a ser não a vitória da causa, mas a vitória sobre as correntes “inimigas” no interior do próprio movimento socialista.

A teoria do “partido-embrião” tem um outro aspecto: o organizativo. Ora, em embriologia, o embrião já possui todas as características fundamentais do ser adulto, apenas em menor proporção e não tão bem desenvolvidas. Mas está tudo lá: fígado, baço, cérebro. Assim também é o “partido-embrião”. Seu regime interno está permanentemente tensionado como se estivesse sempre disputando poder; sua direção central goza de  uma autoridade interna arrancada não da experiência concreta, mas do futuro. É uma espécie de autoridade adiantada pelos serviços que ainda serão prestados à revolução mundial. Seu ritmo de atividade é aquele de setembro-outubro de 1917. Porque tudo é agora ou nunca. Tudo é decisivo. O “partido-embrião” vive em permanente estado de ansiedade pelo seu futuro grandioso.

Mas acontece que a história não depõe a favor da teoria do “partido-embrião”. Pensemos por um instante em nossas organizações atuais: parece realmente possível que o futuro partido da revolução seja o desenvolvimento linear de alguma das atuais organizações socialistas brasileiras? Não será muito mais provável que a futura organização revolucionária (ou frente de organizações revolucionárias) seja o desenvolvimento caótico, desastrado, cheio de rupturas e fusões de uma série de organizações, grupos, movimentos, correntes, muitas das quais sequer existem hoje? Em qual exemplo histórico uma organização revolucionária caminhou firme e retamente rumo ao seu destino final? Nem mesmo o partido bolchevique o fez. Em Esquerdismo, doença infantil do comunismo, Lênin chamava a atenção para a série de acidentes da história da fração bolchevique, seu desenvolvimento inesperado e não-linear, e convocava o movimento comunista internacional a não tentar repetir mecanicamente a história russa, a trilhar seu próprio caminho, a fazer sua própria história.

Não há problema nenhum em construir com toda a garra uma pequena organização socialista. Aliás, a militância apaixonada é o primeiro dever do militante. Isso em si não é messianismo porque somos todos pequenos e qualquer coisa que construamos hoje será frágil. Além disso, ainda nos encontramos em uma situação de definições estratégicas e programáticas. Isso quer dizer que é preciso construir em torno de um programa, de princípios firmes. Por isso, há uma luta legítima entre as organizações socialistas. Como escreveu Lênin na “Declaração da Redação do Iskra” (nº 1, 23 de agosto de 1900), “Antes de nos unirmos e para nos unirmos, devemos nos diferenciar decidida e definidamente. De outra forma, nossa união será uma ficção que esconde a atual dispersão e atrapalha a sua superação radical”. Isso tudo está certo. Mas é preciso lembrar que a “superação radical da atual dispersão” continua sendo nosso objetivo estratégico. Todo o sentido do Iskra foi transformar um aglomerado de grupos soltos, heterogêneos e confusos em um partido político nacional. É preciso trabalhar nesse sentido. Ou seja, não vale qualquer frente ou qualquer unificação. Mas as frentes e as unificações são decisivas para o sucesso do movimento. Eram para Lênin há 124 anos quando ele fundou o Iskra. São para nós hoje.

Ao invés de uma concepção de “partido-embrião”, que cresce reta e linearmente rumo à sua forma final, devemos pensar o desenvolvimento do movimento socialista brasileiro (e, portanto, de nossas próprias organizações) como um vale acidentado, pedregoso e irregular, no qual ora confluem, ora se separam distintas correntes, cada qual buscando seu próprio caminho. Nos trechos mais favoráveis, quando as coisas vão bem, essas correntes se unem em um movimento estável e poderoso, e arrastam muita coisa consigo; nos lugares mais inóspitos, onde as condições são duras, os cursos d’água se dissipam, formando quase um pântano, para depois seguirem adiante novamente.

A tarefa consiste, portanto, não em promover o crescimento infinito de uma única corrente, mas em propiciar que todas as correntes fluam, busquem seus leitos, e o mais importante: se encontrem. Na prática, isso significa promover aproximações, experiências conjuntas, fusões, agir de forma colaborativa, e também romper com velhos laços e seguir adiante por novos caminhos quando necessário.

O marxismo é marxismo porque soube romper com as concepções teleológicas do velho hegelianismo e afirmar com toda a coragem que a história é imprevisível porque é ação humana, relativamente limitada pelas condições do presente que foram herdadas do passado. É hora de abandonar essas ideias também no campo da construção partidária. Não há destino nem escolhidos, nenhuma de nossas organizações carrega consigo as tábuas da salvação. É tempo de paciência, humildade e confiança no processo histórico.