“Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano,
tivemos que empenhá-la muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do atual.”
Walter Benjamin. “Experiência e pobreza”, 1933
Aviso de saída: o tom será todo pessoal dessa breve (e talvez inútil) reflexão. Acabo de ler um breve texto em forma de depoimento pessoal da professora Jeanne Marie Gagnebin e que tem um titulo impagável: “O preço de uma reconciliação extorquida”. Pode ser encontrado no sintomático livro: “O que resta da ditadura”. Coletânea publicada em 2010 e que tem por objetivo investigar o restou da ditadura depois do fim formal do regime ditatorial de 1964. Acabo de ler ao mesmo tempo, uma matéria do jornal “Correio brasiliense” que começa assim: “Por conta da reconstrução de sua relação com os militares, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva determinou e orientou aos seus ministros e a todo o governo que não realizem quaisquer atos, solenidades, discursos ou produzam material em memória dos 60 anos do golpe militar. O petista não quer criar novas arestas com as Forças Armadas num assunto que ainda é caro à caserna, mesmo sendo a atual geração do Exército, da Marinha e da Aeronáutica outra bem diferente.” Se ocorreu exatamente assim, saberemos em breve.
Para grupos dentro e fora das universidades que estudam esse período pós-64, a orientação do presidente é desestimulante. Para famílias de assassinados e desaparecidos pela ditadura, é cruel. Para um governo que tem um ministério de direitos humanos, é contraditório. Para um país que precisa reencontrar seu caminho entre a memória e a verdade, é lamentável. Todos nós já sabemos (inclusive o presidente Lula) que neste país em 1964 tivemos um golpe. Seguido de uma ditadura que durou 21 anos. Essa ditadura prendeu arbitrariamente, torturou, exilou, matou em seus porões, fez desaparecer corpos e tirou o direito de luto de várias famílias e, ainda, recebeu como “prêmio” uma anistia injusta e que mais beneficiou os torturadores de plantão que torturados e banidos. Foi o triunfo da “paz de cemitério”. Sejamos honestos conosco mesmos.
Da parede da Memória. Esta palavra foi motivada em minha história por algumas leituras, alguns depoimentos escutados e o contato com pessoas que foram torturadas na época da ditadura pós-64 e que ainda estão vivas numa tentativa difícil de ter sobrevivido a todo um terror quase inimaginável e inenarrável. Percebo como o envelhecimento das pessoas que foram torturadas também significa um maior esquecimento das barbaridades que viveram no passado. É como se a cada geração mais nova no campo das esquerdas, o esquecimento se tornasse maior e a distância com a época do terror vai se tornando cada vez mais real. No máximo têm informações pelos livros ou alguns filmes. Mas nada disto parece ser fundamental em suas vidas. O tema das prisões, exílios, torturas e assassinatos no pós-64 e a relação com as pessoas que sofreram toda essas brutalidades, está se tornando cada vez mais formal e protocolar nas esquerdas atuais. Não vejo este comportamento como desonesto da parte das “novas gerações das esquerdas”. Mas como uma espécie de “espírito de época”.
Nossa época vive imensa na velocidade das redes digitais e esta velocidade passa a ser um tipo de comportamento de se envolver na politica, ficar celerada com as eleições parlamentares, em buscar cargos e posições. Essa esquerda sabe da memória, mas não se envolve com ela. Quando se envolve é como naqueles eventos protocolares de mesas arrumadas e pessoas bem vestidas para falarem obviedades treinadas. A cada década, lembrar/falar dos/das torturados/as e que sobreviveram entre as atuais esquerdas, se torna um “peso” ou uma “obrigação”. Como uma aula que se ministra, mas que não envolve, que não engaja. A velha questão: que adianta o crime de tortura ser considerado pelas esquerdas imprescritível, mas cair cotidianamente no esquecimento? o crime de tortura não é apenas um conceito, mas um conceito que envolve corpos (alguns ainda vivos).
Estas breves notas me vieram após ver dois documentários. Sobre pessoas concretas, homens e mulheres. Que combateram a ditadura na com seus copos jovens nos anos 60 e 70, que forma presos, que forma torturados, que foram exilados, que souberam de corpos desaparecidos de seus camaradas…
Primeiro. Um documentário que sempre me comove. Trata-se de: “Alma clandestina”. Um filme sobre vida de Maria Auxiliadora Lara Barcelos que foi uma militante política que lutou contra a ditadura militar instaurada no Brasil em 1964. Presa, torturada e banida do país, ela acabou por se suicidar durante o exílio em Berlim em 1976. Uma biografia imagética em tom melancólico, sensorial e emocional de uma alma que foi, por tempo demais, clandestina. E continua sendo clandestina e cada vez mais invisibilizada.
Segundo. O marcante, “Eu me Lembro”. Um documentário sobre os cinco anos das Caravanas da Anistia e que procura reconstruir a luta dos perseguidos por reparação, memória, verdade e justiça, com imagens de arquivo e de entrevistas. Foi um honrado trabalho do Ministério da Justiça e Segurança Pública em 2014. Lembrava àquela época os 50 anos do golpe de 1964. Governava o país, a presidenta Dilma Rousseff.
Logo após ver os filmes e pensar um pouco, me veio a seguinte constatação: deve um horror para quem foi torturado/torturada e sobreviver num país que nenhum torturador (ainda vivos) não foi julgado e preso. Alguns têm cargos ou privilégios através do próprio estado. Deve ser terrível demais. Dolorido demais.
Por fim, tenho tomado como comportamento pessoal uma atitude: sempre que converso com alguns jovens nas escolas, universidades, Igrejas ou mesmo nas ruas, procuro perguntar o que sabem sobre o golpe de 1964 e a ditadura que veio no pacote… Geralmente, sabem pouco. Imediatamente recomendo que leiam esse ano ainda (por conta dos 60 anos do golpe de 1964!!!) o livro “Brasil, nunca mais”. Somente isto. E somente este livro. Tem em PDF, inclusive. Como um trato de pensarmos juntos.
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