Por Pedro Henrique Antunes da Costa
Nesta quarta-feira, 28/02, foi aprovado na Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado, o PL 3.945/2023, de autoria do senador Flávio Arns (PSB-PR) que estabelece o dia 18 de agosto como Dia Nacional das Comunidades Terapêuticas. Para a aprovação, o referido PL contou com o voto favorável do relator, o senador Paulo Paim (PT-RS). Ou seja, a aprovação do PL não foi só apoiada por dois partidos do dito campo progressista. Um deles é responsável pelo PL e o outro pelo parecer favorável. A menos que haja pedido para votação no plenário do Senado, a matéria segue para análise da Câmara dos Deputados, onde, considerando a composição parlamentar, provavelmente será aprovada.
Não contente com o saqueio da verba pública, deslegitimando e enfraquecendo políticas e serviços antimanicomiais, as Comunidades Terapêuticas (CTs) continuam sua marcha expansiva, agora imitando a Luta Antimanicomial e reclamando para si um Dia Nacional. Por mais que a justificativa dada seja que o dia 18 de agosto é o de fundação da Confederação Nacional de Comunidades Terapêuticas (CONFENACT), não nos parece mera coincidência que a data escolhida seja o mesmo dia 18 que o da Luta Antimanicomial, acontecendo três meses depois desta. Teremos, muito provavelmente, dois dias 18, um se opondo ao outro: o Dia da Luta Antimanicomial, em 18 de Maio; e o dia do manicômio, em 18 de agosto.
Deixando a aparência de lado, assim como as nomenclaturas que ocultam a essência o conteúdo das coisas, o que acabou de ser aprovado, com a chancela de um parlamentar do PT, foi a criação de um dia para celebrar o manicômio, a segregação e o aprisionamento, a violência religiosa e a escravidão, mormente de pessoas negras e pobres, afinal as ditas Comunidades Terapêuticas têm sido hegemonicamente uma síntese de manicômios, igrejas, prisões e senzalas
É no mínimo irônico que o mesmo partido que abrigou nomes como Telma de Souza, David Capistrano Filho, Paulo Delgado, autor do projeto de lei que se transformou na Lei 10.216, a Lei da Reforma Psiquiatria, isto é, personagens de suma importância na luta contra o manicômio em nosso país, seja o mesmo partido a constar no parecer favorável à criação do Dia Nacional das Comunidades Terapêuticas. Deixando a aparência de lado, assim como as nomenclaturas que ocultam a essência o conteúdo das coisas, o que acabou de ser aprovado, com a chancela de um parlamentar do PT, foi a criação de um dia para celebrar o manicômio, a segregação e o aprisionamento, a violência religiosa e a escravidão, mormente de pessoas negras e pobres, afinal as ditas Comunidades Terapêuticas têm sido hegemonicamente uma síntese de manicômios, igrejas, prisões e senzalas.
Aqui não cometemos nenhuma leviandade contra o senador Paulo Paim, cuja história de militância e luta, como operário, sindicalista, homem negro, deputado (constituinte, aliás) e senador muito contribuiu e contribui com a classe trabalhadora brasileira. Contudo, ela não está isenta de contradições ou o isenta de cometer erros e, os cometendo, de ser criticado – como aqui fazemos.
Por mais que a crítica ao parlamentar deva ser feito – e estamos aqui fazendo-a – também entendemos que não se trata de uma iniciativa meramente individual, por mais que concretizada por um indivíduo (ou um mandato), mas da linha política hegemônica no PT e, sobretudo, no governo que, apesar de frente amplíssima, tem o PT como líder. Com isso, não negamos a presença de inúmeros companheiros antimanicomiais no PT e no governo. No entanto, não é de hoje que ações como esta não só vem acontecendo no PT ou por pessoas vinculadas ao PT, como têm sido e dado a tônica da abordagem – no mínimo contraditória – da saúde mental. Não por acaso, o parecer positivo vem na esteira da criação de um Departamento de Comunidades Terapêuticas no Ministério do Desenvolvimento, do repasse público a tais instituições (que vem aumentando), da garantia de certificação às CTs que permite imunidade tributária a elas, dentre inúmeros outros exemplos só no curto período do terceiro governo Lula.
Não contente com a aprovação, o próprio PT fez questão de publicá-la em seu site, fazendo loas à medida, e o senador Paulo Paim a divulgou em suas redes sociais. Ou seja, parece que a iniciativa não só não causa ojeriza no partido e seu parlamentar, como eles se orgulham dela. As falas tanto de Paulo Paim quanto de Flávio Arns, na matéria nos permitem concluir isto. Não por acaso, repetem chavões que não se sustentam na realidade, mas, na verdade, ocultam ou invertem a realidade. Por exemplo, o que o senador Paim diz de uma “solidariedade e [um] apoio encontrados nessas comunidades”, quando confrontado com a realidade de violência de tais instituições, se torna puro e simples negacionismo ou mistificação .
Já a fala de Arns de que “rede pública de atendimento a dependentes químicos é diminuta, e não oferece a possibilidade de internação”, é primeiramente mentirosa, pois a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) oferece possibilidade de internação, nos hospitais gerais, com os Centros de Atenção Psicossociais Álcool e outras Drogas (CAPSad) do tipo III também possuindo leitos para acolhimento noturno. Além disso, ela demonstra a farsa das CTs que mentem ao dizer que o que fazem é acolhimento e não internação. As CTs não só fazem internação – o que a princípio não é problemático, havendo casos que ela é necessária –, como a faz de maneira manicomial, asilar, segregatória. Não por acaso, são noticiadas diariamente inúmeras situações de violência e violação de direitos por CTs, só que contados como se fossem casos isolados.
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Além disso, o deputado Arns também repete a mistificação de que “se, por um lado, as instituições públicas de atenção à drogadição são insuficientes, por outro, as privadas são inacessíveis à maioria dos que delas necessitam, devido aos seus altos custos”. Enquanto instituição manicomial, segregatória, praticando violência religiosa, trabalho escravo sob a forma de laborterapia e tomando a abstinência como único desfecho de tratamento aceitável, são as CTs que são inacessíveis. Mais, se o número de serviços da RAPS como os CAPSad, outros CAPS, leitos em enfermarias de hospitais gerais, Unidades de Acolhimento, dentre outros, são sim insuficientes frente às necessidades da população é porque boa parte da verba pública que deveria ir para eles, seja para fortalecê-los ou para criar outros serviços como eles, está indo para as CTs. Ou seja, as CTs e o financiamento público a elas são barreiras para um maior e melhor acesso ao cuidado humanizado e de qualidade às pessoas com necessidades decorrentes do consumo de drogas.
A argumentação negacionista e invertida da realidade do deputado Arns resulta numa conclusão igualmente mentirosa e invertida, de que “a sociedade tem encontrado boas respostas, na maioria dos casos, apenas no tratamento oferecido pelas comunidades terapêuticas”. A sociedade brasileira tem encontrado boas resposta, só que estas não são nas CTs. Pelo contrário, estão nos CAPSad, Unidades de Acolhimento, leitos em enfermarias de hospitais gerais e outros serviços substitutivos da RAPS.
Por mais que devemos responsabilizar os referidos parlamentares e seus partidos, devemos ir além: assim como já expusemos anteriormente, trata-se de um problema da esquerda, com o crescimento de uma esquerda manicomial, mesmo que a junção de tais termo resulte num oxímoro, no qual o adjetivo manicomial nega o substantivo esquerda. Não à toa, o PL é de autoria de um parlamentar, cujo partido, o PSB, tem em seu nome a qualificação de Socialista. Apesar desta contradição em termos, essa esquerda manicomial, na realidade, não só existe, como tem avançado – ampliando seus braços nos mais variados partidos, mas também em sindicatos e movimentos sociais e populares.
A título de exemplificação, dos 11 votos (todos favoráveis à criação do dia do manicômio), quatro foram do bloco parlamentar PT-PSB-PSD (Flávio Arns, Zenaide Maia, Jussara Lima, Paulo Paim e Fabiano Contarato) e outro da senadora Leila Barros, do PDT. Ou seja, quase a metade. Todos eles concordaram com a senadora Damares Alves, que também votou a favor. Além disso, se todos os parlamentares do bloco PT-PSB-PSD na comissão estivessem presentes e votassem (são 7, no total), o projeto não seria aprovado.
Em 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Marx, na bastante conhecida paráfrase de Hegel, aponta que os grandes acontecimentos da história acontecem duas vezes, na primeira vez como tragédia e na segunda como farsa. No caso dos mais recentes posicionamentos do PT e do governo Lula de apoio às Comunidades Terapêuticas, convergentes também com posicionamentos do segundo governo Lula (2007-2010) e governos Dilma (2011-2016), podemos questionar que, como repetição, para além de trágicos, eles iludem, enganam e negam a própria história e caráter antimanicomiais do partido e do governo. Por mais que ainda existam antimanicomiais dentro do partido e do governo – nesse último, sobretudo no Ministério da Saúde –, quando contrapostos à hegemonia manicomial(izante) que os tem constituído e negado, desvelam, de fato, a farsa, um enredo trágico e nada cômico.
Pelo fim das CTs!
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