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Colunas

O Ministério do Desenvolvimento Social amplia sua sanha manicomial para mães e bebês

Edital do MDS habilita 587 Comunidades Terapêuticas

Marcio Camargo/Agência Brasil

Lula e o ministro Wellington Dias

Saúde Pública resiste

Uma coluna coletiva, produzida por profissionais da saúde, pesquisadores e estudantes de várias partes do País, voltada ao acompanhamento e debate sobre os ataques contra o SUS e a saúde pública, bem como às lutas de resistência pelo direito à saúde. Inaugurada em 07 de abril de 2022, Dia Mundial de Luta pela Saúde:

Ana Beatriz Valença – Enfermeira pela UFPE, doutoranda em Saúde Pública pela USP e militante do Afronte!;

Jorge Henrique – Enfermeiro pela UFPI atuante no DF, especialista em saúde coletiva e mestre em Políticas Públicas pela Fiocruz, integrante da Coletiva SUS DF e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal;

Karine Afonseca – Enfermeira no DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB, integrante da Coletiva SUS DF e da Associação Brasileira de Enfermagem, seção DF;

Lígia Maria – Enfermeira pela ESCS DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB. Também compõe a equipe do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei do DF;

Marcos Filipe – Estudante de Medicina, membro da coordenação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), militante do Afronte! e integrante da Coletiva SUS DF;

Rachel Euflauzino – Estudante de Terapia Ocupacional pela UFRJ e militante do Afronte!;

Paulo Ribeiro – Técnico em Saúde Pública – EPSJV/Fiocruz, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana – PPFH/UERJ e doutorando em Serviço Social na UFRJ;

Pedro Costa – Psicólogo e professor de Psicologia na Universidade de Brasília;

Pedro Costa

No dia 25 de janeiro de 2024, quinta-feira, foi publicado o resultado da fase 1 do Edital de Credenciamento 08/2023 do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, também conhecido como Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Nele, foram habilitadas e qualificadas 587 Comunidades Terapêuticas (CTs) de todo o país para serem financiadas pelo MDS.

A título de comparação, segundo dados do Ministério da Saúde, ao final de 2022 e início de 2023, tínhamos apenas 443 Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPSad), sendo que, destes, somente 121 eram CAPSad III, funcionando 24h, durante fins de semana e feriados e com leitos para acolhimento noturno. No mesmo nível de atenção da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) das CTs, o nível de atenção residencial de caráter transitório, temos apenas 70 Unidades de Acolhimento (UAs), sendo 45 para adultos (UAAs) e 25 para crianças e adolescentes (UAIs).

Resumindo, o número de CTs financiadas pelo MDS (587) é maior que o número de CAPSad (443) e de UAs (70) somados (513). E novamente, é preciso dizer o óbvio: as CTs não só são instituição privadas, como têm se mostrado uma mistura de manicômios, prisões, igrejas e senzalas. Por mais que o MDS reproduza retóricas que afirmam que as CTs fazem acolhimento, o que elas fazem é internação de caráter asilar-manicomial, aliadas à religiosidade compulsória (e violência religiosa) e a chamada laborterapia que, concretamente, é trabalho não pago, regime de servidão e/ou escravidão – sobretudo de pessoas negras e pobres que são a maioria dos internos das CTs.

Tal número (587) também supera o de Hospitais Gerais (HGs) financiados pelo Ministério da Saúde com leitos de saúde mental em enfermarias para álcool e outras drogas. Ao final de 2022, eram 322 HGs habilitados, com um total de 1.952 leitos. Ou seja, uma média de 6 leitos por hospital geral. Por mais que estejam em outro nível de atenção da RAPS, o nível hospitalar, estes serviços acabam assistindo pessoas em situações de crise associadas ao consumo de drogas, com internações de curto ou curtíssimo prazo, sendo tão fundamentais quanto insuficientes.

Segundo o Edital, “a contratação deverá estar limitada a, no mínimo, 10 (dez) e, no máximo, a 60 (sessenta) vagas por público específico”. Cada CT pode ter, portanto, 120 vagas financiadas pelo MDS. Ainda de acordo com o Edital, os valores são de R$1.172,23 para a internação de adultos do gênero masculino e feminino e de R$1.527,37 para internação de mãe nutriz, acompanhada do lactente. Ou seja, uma única CT poderá receber mensalmente até R$161.976,00, no caso de obter financiamento para internação de 60 adultos (R$70.333,80) e de 60 mães nutrizes (R$91.642,20). Fazendo um exercício hipotético, caso todas as 587 CTs 120 vagas, o presente edital pode significar um dispêndio de até R$95.079.912,00 (mais de noventa e cinco bilhões) por mês. Mesmo que isso não seja plausível, sendo irreal que todas as CTs requisitem a totalidade de vagas, pelo menos mostra quais são as prioridades do MDS e a sua disponibilidade para custear os novos-velhos manicômios que são as CTs.

Continuando com as comparações, de acordo com a Portaria GM/MS nº 660, de 3 de julho de 2023, que instituiu uma necessária recomposição financeira para os CAPS, após a letargia proposital do governo Bolsonaro e seu ataque aos próprios CAPS e à Reforma Psiquiátrica, os valores repassados pelo Ministério da Saúde para os CAPSad são de R$50.564,00 mensais e para os CAPSad III de R$133.466,00. Novamente de acordo com o Ministério da Saúde, o investimento total em 2022 para as 70 UAs foi de apenas R$22.500,00 e para os 322 HG de R$131.411.216,64.

Cabe ressaltar que o MDS parece desconhecer normativas do âmbito da saúde, ao contrariá-las, demonstrando também como tem adentrado numa seara que não é a sua. Por exemplo, no ponto 4.8 do referido edital consta que “Cada pessoa com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas poderá ser acolhida [sic], pelas entidades contratadas, por até 12 (doze) meses consecutivos ou intercalados, no interregno de 24 (vinte e quatro meses)”. Contudo, na Portaria 3.088, de 23 de dezembro de 2011, que institui a Rede de Atenção Psicossocial, consta: “Serviços de Atenção em Regime Residencial, entre os quais Comunidades Terapêuticas: serviço de saúde destinado a oferecer cuidados contínuos de saúde, de caráter residencial transitório por até nove meses para adultos com necessidades clínicas estáveis decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas”.

Para além desta incongruência – e de outras –, e dentre os inúmeros absurdos, apontamos que, em face da interposição de recursos por algumas CTs, o MDS, dispensou a apresentação de Alvará de Licença do Corpo de Bombeiros (ALCB) ou documento congênere. Aliado às ínfimas requisições de infraestrutura, de composição da equipe, formação etc. presentes na RDC 29 de 2011 da Vigilância Sanitária, agora cabe ao responsável legal pela CT apenas declarar que se enquadra nas condições de dispensa do Alvará.

Além disso, a medida vai na contramão das deliberações da 4ª Conferência Nacional de Saúde Mental, que acabou de ser realizada, em dezembro de 2023. Nela, o fim do financiamento público às CTs foi um dos principais pontos, estando presente em inúmeras propostas e moções aprovadas e que, formalmente, devem ser incorporadas pelas políticas de saúde mental, álcool e outras drogas, independentemente da pasta ministerial. Caso o MDS encontre dificuldades para financiar serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), como os CAPS, CAPSad, UAs, HGs etc., sugerimos, em vez de repassar verba pública para as CTs, que financie os serviços públicos do próprio Sistema Único de Assistência Social (SUAS), como os Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializados da Assistência Social (CREAS), Centros de Referência Especializados para a População em Situação de Rua (Centro POP), e outros, que também estão em número insuficiente em nossa realidade, com alta demanda e sobrecarga de seus profissionais e condições precárias de trabalho.

Por fim, e não menos importante, o referido edital teve como “prioridade a contratação de entidades que acolhem mães nutrizes e pessoas do gênero feminino, bem como, entidades localizadas em municípios prioritários para o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), com foco em políticas públicas de educação e trabalho para presos e egressos, apoio às vítimas da criminalidade, combate ao racismo estrutural e prevenção da violência contra as mulheres”. Os grifos são nossos, por se tratarem escárnios – adicionados ao próprio escárnio que é o financiamento (crescente) das CTs pelo MDS. Não contente com a violência predominantemente a homens, que são internados nas CTs, o MDS agora quer ampliar a violência das CTs às mulheres e, pior, às mulheres puérperas e seus bebês. Ora, se se quer prevenir a violência contra as mulheres, um bom começo é não as internar em instituições violentas, como as CTs.

Além desse escárnio, o MDS faz ainda mais chacota com nossas caras ao colocar o foco no combate ao racismo estrutural financiando instituições que se pautam na chamada laborterapia, que, como dissemos – e toda uma farta literatura acadêmica, científica tem apontado – é sinônimo de trabalho não pago, regime de servidão e/ou escravidão, sobretudo com pessoas negras e pobres (os principais alvos e vítimas das CTs). Combater o racismo, de fato, concretamente, não como mera retórica que oculta e fomenta o próprio racismo, é ser contra o financiamento público às CTs enquanto instituições estruturalmente racistas e lutar pelo fim delas.

Pelo fim do financiamento público às CTs!
Pelo fim das CTs!