Uma parte viva deste Brasil foi pega de surpresa com a notícia da morte do filósofo quilombola nordestino e planetário Nêgo Bispo. Bispo havia publicado dois livros: “Quilombos, modos e significados” (2007) e “Colonização, Quilombos: modos e significados” (2015). O bastante para insurgir como um pensador de ponta num momento em que a própria ideia de filosofia no Brasil vive seu choque ao olhar-se no espelho da colonização. Podemos vê-lo numa série de vídeos no Youtube. As suas palestras, diálogos e provocações podem nos fazer ver a dimensão de seu pensamento. Aparece de forma nítida um pensandor sem medo de falar de seu torrão e fazer dele seu universo e o de tantos seres que precisam de um pensamento sem o cabresto da colonização.
Nasceu piauiense e de nome Antônio Bispo dos Santos. Ficou conhecido nos livros, falas, redes por Nêgo Bispo. Tinha um objetivo reto: a valorização do compartilhamento do saber e da memória ancestral nas comunidades quilombolas e sobre como esse costume se difere da mercantilização do saber, que é na sua opinião um dos grandes problemas da sociedade. Tinha como “método” as transfluências (que é como nos movemos) e das confluências cosmológicas (que é como nos comunicamos), do encontro do pensar e dos sentidos e da linguagem orgânica entre seres nas “comunidades politeístas”.
Sentia, vivia e traduzia em linguagem própria e partilhava uma crítica radical às formas de colonização. Das águas, dos ventos, da espiritualidade, da terra, da comida, dos sonhos… Foi tudo passado pelo crivo do colonialismo. A busca de totalidade sempre caracterizou sua forma de se expressar. Encontrou na linguagem uma trincheira de luta anticolonial. Errar no vernáculo erudito, era acertar contra o colonizador. O monoteísmo cristão tinha que se virar por aqui em “politeísmo cristão”. Água, ar e terra nos ensinam quase tudo que temos que aprender para viver. Nêgo Bispo não reduzia Quilombo à geografia (que tem sua importância), mas fazia do Quilombo um pensar. Um pensamento Quilombola para além do geográfico. Uma “Aquilombagem filosófica”. Típico de Filósofo pleno. Foi um pensador existencial erradicado numa terra. Sem tempo para idealismos delirantes.
Morreu num momento em que o pensamento latino-americano está vivendo sua ebulição linguística e política. O pensamento Decolonial que nasceu da percepção do que foi (e é) as colonizações de tantos saberes, ainda terá em Bispo um dos mais criativos tradutores. Nosso pensador pode ser colocado dentro de uma linhagem latina e que não deixa nada a dever a nenhum deles/delas. Nêgo Bispo arrasta para dentro da crítica colonial os animais não-humanos, as terras, as danças, as Áfricas, as plantas e a crítica às formas coloniais de apreender tudo isso. Pensou como Manoel de Barros e Guimarães Rosa. Está junto de José Carlos Mariátegui e Enrique Dussel. Estabelece diálogo mais fundo com Conceição Evaristo e Ivone Gebara. Tem a maternagem latina de uma Elsa Tamez e Maria Lugones… Tornou luz e fogo as memórias…
“Fogo!… Queimaram Palmares,
Nasceu Canudos.
Fogo!… Queimaram Canudos,
Nasceu Caldeirões.
Fogo!… Queimaram Caldeirões,
Nasceu Pau de Colher.
Fogo!… Queimaram Pau de Colher…
E nasceram, e nasceram tantas outras comunidades que os vão cansar se continuarem queimando.
Porque mesmo que queimam a escrita,
Não queimarão a oralidade.
Mesmo que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando o nosso povo
Não queimarão a ancestralidade.”
Nêgo Bispo deixou muitas esperanças a cumprir.
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