Inquirido por vários órgãos de comunicação, Exército israelense diz não poder confirmar a informação. Mesmo assim, a notícia falsa corre o mundo, transformada em verdade por uma imprensa que se esqueceu de confirmar factos. Por Luis Leiria.
A notícia horrenda de que no kibbutz de Kfar Aza foram mortos e decapitados 40 bebés tinha uma única fonte: a jornalista Nicole Zedeck, do canal de notícias israelita i24 News. A jornalista está a cobrir a guerra num pelotão israelense, o que já diz muito sobre o jornalismo que pratica. O jornalismo teve o seu lançamento na invasão do Iraque, mas entrou em decadência quando se percebeu que o jornalismo, nessas circunstâncias não passava de propaganda.
De qualquer forma, quando a jornalista falou dos 40 bebés assassinados e decapitados, ela não tinha qualquer exclusividade, estava rodeada por outros jornalistas que tinham sido convidados pelo Exército israelense para verem o resultado da passagem do Hamas por aquele local.
Quanto mais dramático, melhor
Nicole Zedeck fez vários lives do kibbutz, que fica a menos de um quilómetro da fronteira com Gaza. As imagens evidenciavam que ali se travaram combates ferozes, o que significa que os habitantes de Kfar Aza tinham armas e resistiram à entrada do Hamas. O Exército israelita terá demorado 17 horas para lá chegar.
A repórter descrevia o que via – casas e carros chamuscados, buracos no chão, soldados a retirar corpos envolvidos em sacos de plástico (os que apareceram, pelo tamanho, eram de adultos), procurando, com a sua voz embargada, ganhar mais dramaticidade.
Foi então que soltou a bomba: “Pelo menos 40 bebés foram retirados daqui em macas!”, disse. Ia prosseguir, mas, no estúdio, o apresentador do programa interpelou-a: “Tenho de interromper-te: disseste 40 bebés mortos?” “Foi o que me disse um dos comandantes”. A menção às decapitações viria mais tarde, quando Zedeck se referiu a corpos de mulheres e crianças decapitados.
A tal “notícia de 40 bebês israelenses dec*pitados pelo Hamas parece ser, de fato, somente #fakenews. Um cana, chamado i24 News, reportou o incidente, supostamente citando in off um comandante das forças de defesa israelenses.
— Esquerda Online (@esquerdaonline) October 12, 2023
Notícia falsa ganhou manchetes
Estava pronta a “notícia” que iria ganhar as manchetes por todo o mundo.
“Kfar Aza, o local onde o Hamas assassinou 40 bebés”, titulou a Sic Notícias. A CNN Portugal não lhe ficou atrás: Bebés decapitados e corpos em cada casa. Israel continua a testemunhar a passagem do Hamas.
No Brasil, o Globo abraçou a falsa notícia de imediato, tal como a CNN Brasil. Nos Estados Unidos, a Fox News não esperou para pôr no ar essa “prova definitiva” do barbarismo do Hamas. No Reino Unido, os tablóides também não esperaram, ou não fossem imprensa que vive do sensacionalismo; foram, porém, acompanhados por jornais de prestígio como o The Times, The Daily Express, The Scotsman, e o Financial Times.
Com tanta pressa de dar a notícia-bomba, esqueceram-se de um pormenor: confirmá-la oficialmente com o Exército israelense.
A Sky News também estava no kibbutz, ao mesmo tempo que a repórter da i24 News. O correspondente-chefe Stuart Ramsay falou com dois majores do IDF (Israel Defence Forces, o Exército israelense), um dos quais era porta-voz. Mas em nenhum momento estes oficiais se referiram ao Hamas ter decapitado ou morto 40 bebés. “Acredito que se fosse esse o caso eles me teriam dito, e a outros aqui”, afirmou Ramsay.
Outro jornalista que participou na mesma visita foi o repórter fotográfico Oren Ziv, que afirmou no X: “Estou a receber muitas perguntas sobre os relatos de ‘bebés decapitados pelo Hamas’ que foram divulgados após a visita a Kfar Aza. Durante a visita não vimos nenhuma evidência disso, e o porta-voz ou comandantes do Exército também não mencionaram nenhum desses incidentes.”
Exército israelita não confirma
A rigor, quem primeiro anunciou que o Exército israelita não confirmava a história dos 40 bebés foi a agência de notícias turca Anadolu, que falou com um porta-voz do IDF. Questionado sobre a história dos bebés, o militar israelita disse e repetiu: “Vimos os noticiários, mas não temos outros detalhes ou a confirmação disso”.
A esta altura, a Sky News levava nas telas três jornalistas da casa para explicar porque não estavam a noticiar a história dos 40 bebés. E a explicação era simples: não tinham qualquer prova de que isso acontecera, e tinham pedido três vezes ao IDF a confirmação e os seus porta-vozes não a deram. Sem isso, não podiam levar a notícia ao ar. Como mandam os preceitos mais elementares do jornalismo.
Poucos, porém, seguiram a mesma ética. E o resultado foi que a comprovada falsidade da notícia não está a chegar às pessoas.
Nem às pessoas, nem ao presidente dos EUA, Joe Biden, que num encontro com líderes judeus americanos disse nunca ter pensado que veria “imagens de terroristas a decapitar crianças”. Mas, segundo o Washington Post, um porta-voz da própria Casa Branca (!!) diria mais tarde que o presidente não vira fotografias nem tivera confirmação independente das decapitações. Apenas se baseara em declarações do porta-voz de Netanyahu e em notícias dos média israelitas.”
A agência Anadolu ouviu um especialista, Marc Owen Jones, que calculou em 44 milhões o número de impressões da primeira notícia dos bebés decapitados, 300.000 “likes” e mais de 100.000 partilhas em 24 horas, no X.
No meio de tanto mau jornalismo, resta destacar o excelente trabalho feito pelo Diário do Centro do Mundo, no Brasil. Em Portugal, o Público, ao contrário da SIC, negou-se a validar a notícia dos 40 bebés, explicando que “esta informação não foi avançada por nenhum outro meio de comunicação internacional e um porta-voz das Forças Armadas israelitas disse à agência turca Anadolu que ‘não tinha quaisquer detalhes ou confirmação sobre isso’.
Já se sabe há muito que a informação é uma arma de guerra, e que a luta contra a desinformação é decisiva nos dias de hoje. Também se sabe que a verdade é a primeira vítima de uma guerra. O novo conflito no Médio Oriente começou apenas no sábado, mas as mentiras, as fake news que se espalham como uma pandemia viral já somam vitórias. Não permitamos que isso aconteça.
PS: SOBRE AS FOTOS DIVULGADAS PELO EXÉRCITO DE ISRAEL (atualizado em 13/10 – 16:15) | Mais uma vez se confirma: a informação e a sua manipulação são armas de guerra, e assim vistas, e assim entendidas pelos protagonistas da guerra. Depois de não ter confirmado a informação realmente falsa de que o Hamas assassinara e decapitara 40 bebés, o exército israelita veio agora dizer que sim, há provas dessas mortes e decapitações. Entregou aos jornalistas fotos de três bebés, dois carbonizados e o terceiro com marcas de bala. Não dizem onde foram tiradas as fotos, se são de Kfar Aza ou não, e se não, de onde. O secretário de Estado norte-americano Blinken mostrou-se muito comovido, mas a principal preocupação era a de não desmentir Biden, que dissera na véspera ter visto fotos de bebés.
É óbvio que as fotos divulgadas não terão qualquer valor de prova num eventual processo no Tribunal Penal Internacional (TPI), se alguma vez chegasse a existir. Sem uma perícia de especialistas independentes, essas fotos de nada valem.
Mas também, de que processo falo eu? Não vai haver processo algum. Os Estados Unidos e Israel não fazem parte, nem aceitam, o TPI.
A União Europeia sim, mas a sua máxima representante, a Presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen, vai hoje a Israel para se solidarizar com as vítimas dos ataques do Hamas.
Ora entre sábado passado e hoje já aconteceu muita coisa. A guerra das tropas israelitas contra Gaza já matou mais de 400 crianças palestinas, e muitas mais podem morrer a qualquer momento se as incubadoras em que se encontram, nos hospitais, se desligarem por falta de eletricidade. O mesmo as crianças e adultos ligadas a ventiladores, máquinas de diálise, etc. Sem falar das previsíveis milhares e milhares de vítimas se houver a invasão terrestre das tropas israelitas a Gaza.
Será que a comissária vai sequer mencionar este drama de hoje, sexta-feira? Façam as vossas apostas; eu não, que já sei o resultado.
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