O recente Índice de Opinião Árabe 2022 é mais uma prova de que as sociedades árabes são diversas de todas as maneiras possíveis, desde a avaliação de sua situação econômica e condições de vida até sua visão sobre imigração, instituições estatais e democracia. Com uma única exceção: sobre a Palestina.
Setenta e seis porcento de todos os entrevistados na pesquisa, que é realizada anualmente pelo Centro Árabe de Pesquisa e Estudos Políticos em Doha, disseram que a Palestina é uma causa para todos os árabes, não apenas para os palestinos.
Três pontos importantes devem ser considerados ao tentar entender esses números:
Primeiro, os árabes não estão apenas expressando simpatia ou solidariedade com os palestinos. Eles estão irrevogavelmente afirmando que a luta palestina contra a ocupação israelense é uma luta árabe coletiva.
Em segundo lugar, esses pontos de vista são os mesmos para todos os setores da sociedade no conjunto de toda a extensão geográfica do mundo árabe, do Golfo às regiões do Magreb.
Em terceiro lugar, igualmente importante é o fato que as opiniões públicas que foram examinadas na sondagem provenham de países cujos governos têm laços diplomáticos plenos com Israel ou dos que rejeitam veementemente a normalização [dessas relações].
O estudo é bastante extenso, pois incluiu 33 mil respondentes individuais e foi realizado no período de junho a dezembro de 2022.
Mais uma vez, o povo árabe rejeita coletivamente a normalização com Israel, estando a Argélia e a Mauritânia no topo da lista, com 99% em ambas as populações.
Embora alguns possam descartar o estudo detalhado alegando que os árabes inerentemente odeiam Israel devido à sua profunda aversão aos judeus, o estudo detalha a razão pela qual as massas árabes têm uma opinião tão negativa sobre Israel.
Quando perguntados sobre a razão pela qual rejeitam os laços diplomáticos entre seus países e Israel, os entrevistados “citaram principalmente as políticas coloniais e expansionistas de Israel, bem como seu racismo em relação aos palestinos e sua persistência em expropriar terras palestinas”.
Apenas cinco por cento citaram razões religiosas como base para sua posição e isso também não pode ser descartado como mero fanatismo religioso, já que, de fato, muitos árabes formulam seus pontos de vista com base nos valores morais consagrados em suas religiões; por exemplo, a necessidade de se opor e falar contra a injustiça.
Deve-se afirmar que isso não é novidade. Os árabes têm exibido essas visões com uma consistência inconfundível, desde o começo do Índice de Opinião Árabe em 2011 e, pode-se inclusive argumentar, desde o estabelecimento de Israel sobre as ruínas da Palestina em 1948.
Mas sendo esse o caso, por que os últimos resultados da pesquisa merecem ser discutidos?
Ao examinar a opinião pública americana sobre a Rússia, sobre o estado da democracia nos EUA ou a maior ameaça à segurança nacional, as pesquisas de opinião muitas vezes flutuam de um ano para o outro. Por exemplo, 70% dos americanos consideravam a Rússia como um “inimigo” para os EUA em março de 2022, em comparação com apenas 41% em janeiro.
O salto abrupto em dois meses não está diretamente relacionado à guerra russa na Ucrânia, uma vez que a Ucrânia não é um território dos EUA, mas devido ao frenesi da mídia anti-Rússia que não cessou por um momento desde o início da guerra.
No entanto, para os árabes, nem a mudança das prioridades da mídia, das políticas internas, das orientações de classe ou de qualquer outro fator parece alterar o status da Palestina como a principal prioridade árabe.
Em 2017 e 2022, respectivamente, dois presidentes americanos visitaram a região árabe. Tanto Donald Trump quanto Joe Biden atuaram para fazer uma grande mudança nas prioridades políticas da região.
Biden resumiu sua agenda em uma reunião com seis líderes árabes em Jeddah, Arábia Saudita, em julho, afirmando: “Esta viagem é, mais uma vez, sobre localizar a América nesta região para o futuro. Não vamos deixar um vácuo no Oriente Médio para a Rússia ou a China preencher.”
Nenhuma dessas prioridades egoístas parece estar dando resultados.
Dito isso, a pressão para descartar a centralidade da Palestina como uma causa árabe não vem apenas do exterior. Ela também é guiada pela dinâmica interna da própria região. Por exemplo, algumas redes de notícias panárabes, que colocaram muito foco na Palestina em anos anteriores, têm ignorado continuamente e, às vezes, propositadamente, a Palestina como uma realidade diária urgente em favor de outros tópicos que são consistentes com as políticas regionais dos países anfitriões.
No entanto, apesar de tudo isso, a Palestina continua a ser o núcleo dos valores, lutas e aspirações árabes. Como isso é possível?
Ao contrário da maioria dos americanos, os árabes não formulam necessariamente suas visões de mundo com base na agenda da imprensa diária, nem alteram seu comportamento com base em discursos presidenciais ou em debates políticos. Pelo contrário, suas experiências coletivas os tornaram particularmente céticos em relação à propaganda e aos discursos inflamados. Eles formulam seus pontos de vista com base em inúmeros canais de comunicação populares, seja utilizando ferramentas de redes sociais ou escutando o sermão de toda sexta-feira em suas mesquitas locais.
A luta pela Palestina foi internalizada nos atos cotidianos da mulher ou do homem árabe médios; desde os nomes que eles escolhem para seu recém-nascido, até o murmúrio silencioso de orações antes de adormecer. Nenhuma quantidade de propaganda pode reverter isso.
A opinião pública árabe obviamente importa, embora a maioria dos países árabes não tenham sistemas democráticos funcionais. Na verdade, ela é mais importante por causa da falta de democracia.
Toda sociedade deve ter um sistema de legitimidade política, ainda que nominal, para manter uma relativa estabilidade. Isso significa que a visão árabe coletiva em apoio aos palestinos e a rejeição da normalização [de relações diplomáticas] sem o fim da ocupação israelense teria que ser levada a sério.
Embora alguns governos árabes estejam escutando seu povo e, portanto, condicionem a normalização à liberdade e soberania palestinas, os EUA e Israel insistem em ignorar as massas árabes, como têm feito por muitos anos. No entanto, se Washington acredita que pode simplesmente obrigar os árabes a odiar a Rússia e a China e amar Israel, enquanto este último continua a matar palestinos e ocupar sua terra, os EUA serão dolorosamente decepcionados, não só atualmente, mas por muitos anos vindouros.
Nota da edição brasileira:
Reproduzimos, pela sua relevância sobre um fato de domínio público, um pequeno trecho de outro artigo recente de Ramzy Baroud
(https://jordantimes.com/opinion/ramzy-baroud/palestine-more-arab-cause)
“O fato de que os torcedores de futebol árabes no Qatar tenham escolhido espontaneamente, sem quaisquer instruções oficiais ou intervenções governamentais, utilizar a bandeira palestina como seu símbolo de unidade, é muito eloquente sobre a posição da Palestina na consciência coletiva árabe. Também nos informa que o amor pela Palestina não é um resultado direto do ódio a Israel, nem que os árabes vejam a Palestina como um símbolo de derrota ou de humilhação.
Quando o jogador marroquino Jawad El Yamiq comemorou a vitória da seleção de seu país sobre o Canadá em 1º de dezembro [de 2022], garantindo assim o avanço do Marrocos para as oitavas de final da Copa do Mundo, ele levantou uma bandeira palestina. Ao fundo, torcedores marroquinos cantavam pela Palestina e pelo Marrocos. Para eles, a Palestina não é uma causa externa, e seus aplausos não são simplesmente um ato de solidariedade. Para eles, a Palestina e o Marrocos são sinônimos, descrevendo a mesma experiência coletiva de derrota, luta e, em última análise, de vitória”.
* Ramzy Baroud é jornalista, autor e editor da The Palestine Chronicle. É autor de seis livros. Seu último livro, coeditado com Ilan Pappé, é “Our vision fo liberation: engaged Palestinian leaders and intelectuals speak out (“Nossa visão para a libertação: líderes e intelectuais palestinos comprometidos se posicionam”. Outros de seus livros incluem “My Father was a Freedom Fighter” (“Meu pai foi um combatente pela liberdade”), The Last Earth: A Palestinian Story (“A Última Terra: Uma História Palestina”). Baroud é pesquisador sênior não residente do Centro para o Islã e Assuntos Globais (CIGA). Seu site é www.ramzybaroud.net
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