“A intelligentsia russa cedo me inculcara que o próprio sentido da vida consiste em participar conscientemente da realização da história. Quanto mais penso nisso, mais parece-me fundamentalmente verdadeiro. Isso significa pronunciar-se ativamente contra tudo o que diminui os homens e participar de todas as lutas que tendem a libertá-los e engrandecê-los. Que essa participação seja inevitavelmente manchada de erros não minimiza o imperativo categórico; pior erro é viver só para si, segundo tradições totalmente manchadas de desumanidade.”
Victor Serge – Memórias de um revolucionário
Acabo de terminar a leitura das memórias de Victor Serge, revolucionário belga, russo…
Tenho para mim que os livros são um receptáculo de algo vivo. Guardam parte de seus criadores, que se revelam para aqueles que leem nas palavras deixadas no papel. Ler Marx é ter contato direto com ele, ainda que com uma pequena parte. Mas o contato que temos entre nós não é também com apenas uma pequena parte do que cada um tem a oferecer?
Encontrei as memórias de Serge entocadas em uma estante da biblioteca municipal de Bauru, à qual fui levado pela minha amiga Lenú. Que espanto tive ao ver esse livro de Serge, que eu desconhecia, escondido num canto dessa cidade reacionária! Qual terá sido a última vez que foi lido? Não há registro. Questionei o bibliotecário, mas como houve uma mudança no sistema as informações se perderam. O livro nem mesmo havia sido registrado no novo sistema, pois há tempos não era emprestado.
Ao lê-lo, foi como se a pequena parte de Serge (uma parte gigante!) houvesse sido libertada, como um gênio que foge de sua lâmpada para me encantar.
Poucas pessoas viveram a história como Serge, ainda que não a ponto de se confundir com ela – o que pode se dizer de Trotsky ou Stalin. Lutou na França e Barcelona com os anarquistas, foi preso, escapando da morte, sorte que os seus companheiros não tiveram. Livre, foi à Rússia revolucionária, em 1918, onde se uniu aos bolcheviques nas mais duras condições. Militou disciplinadamente e sofreu as agruras da guerra civil.
Fez parte do primeiro executivo da Comintern. Frequentou Gorki, mas não o velho Kropotkin, seu inspirador, pois este assumiu uma posição belicista na primeira guerra. Só o viu em seu velório, participando do cortejo fúnebre.
Questionou, desde os primeiros anos, tudo que havia de problemático, errado ou duvidoso, sem abandonar sua convicção e dedicação ao projeto socialista em curso. Desdobrou-se, inúmeras vezes, para impedir execuções sumárias (e absurdas) que seriam realizadas pela Tcheka. Salvou, assim, diversos inocentes das mais distintas matizes políticas.
Acatou a repressão ao levante de Kronstadt sem concordar. Até o fim de sua vida considerou este um enorme erro do partido, polemizando com Trotsky.
Esteve na oposição de esquerda nos anos 20 e por isso terminou exilado por anos em alguma remota fronteira com o Cazaquistão. Escritor reconhecido na Europa, teve ao seu lado vozes no exterior capazes de gerar pressão suficiente para livrá-lo do destino fatal de inúmeros (quase a totalidade) de seus camaradas. Migrou para a França de onde assistiu, sem perplexidade, mas com tristeza, aos expurgos de Moscou e ao pacto Hitler-Stalin, assim como à ascensão nazista na guerra, que o forçou a migrar, pela última vez, para o México de Cárdenas.
Terminou sua vida convicto da importância do espírito crítico, mas convicto de que desenvolvê-lo é uma tarefa árdua. Quase foi massacrado por militantes franceses quando defendeu a revolução russa em 1917. Ao voltar do exílio quase foi massacrado pelos mesmos homens ao criticar a União Soviética.
Serge esteve ao lado da revolução todo o tempo, porque esteve antes ao lado da humanidade. Defensor máximo “da liberdade, da crítica, da razão, da justiça e do respeito à pessoa humana”. Libertário que se submeteu ao partido, bolchevique sem jamais ser dogmático. Penso que deveria ser conhecido por todos aqueles que defendem a transformação do mundo e se dedicam a ela, principalmente em tempos nos quais jovens, órfãos de maiores referências, se voltam à sombria figura de Stalin.
Devolvi o livro à biblioteca. O gênio, como costuma fazer após realizar suas diabruras, volta à lâmpada… espero que não mais por muito tempo.
*Caio é militante do movimento de juventude Afronte – Juventude sem medo
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