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BRASIL

Catatau, o samurai que tocava as pessoas

Henrique Canary, de São Paulo (SP)
Mika Tanaka

O filósofo alemão Ludwig Feuerbach disse certa vez que a essência de um ser deve ser buscada não no ser em si, mas nos objetos sobre os quais ele se expressa. Assim, a essência do Sol, que é a vida, deve ser buscada não no Sol em si, mas na flor, cuja vida depende do Sol. A flor é um fruto do Sol, sua mais sublime expressão. É nela que reside a essência do Sol. Da mesma forma, a essência de uma pessoa deve ser buscada não na pessoa em si, mas em suas relações, nas pessoas que ela toca e influencia. Mais tarde, o jovem Marx tomou essa ideia e a desenvolveu, afirmando: “[…] se queres exercer influência sobre outros seres humanos, tu tens de ser um ser humano que atue efetivamente sobre os outros de modo estimulante e encorajador. Cada uma de tuas relações com o homem e com a natureza – tem de ser uma externação determinada de tua vida individual efetiva correspondente ao objeto da tua vontade”.

Não posso deixar de me impressionar com o quão a fundo Catatau levava esse conceito. Certa vez eu disse a ele que achava interessante a cultura samurai. Pronto, foi o suficiente. Ele passou a me visitar toda semana (tínhamos muitas reuniões em conjunto na época), e em suas visitas trazia sempre pelo menos quatro filmes de samurais. Semana seguinte, novamente filmes de samurais… Me falava da filosofia, da cultura e das histórias dos samurais e do povo japonês. Confesso que não assisti a todos os filmes que ele me trouxe. Era impossível. Mas ficava feliz em conversar com ele e aprender um pouco. E assim Catatau ia, criando vínculos, estabelecendo relações e conexões políticas, mas também afetivas, tornando sua presença algo natural e imprescindível, apesar da relativa diferença de idade entre nós. Quando eu estava na direção da Juventude do PSTU, funcionávamos em uma saleta improvisada, escura e fria, primeiro na Rua Humaitá, na Bela Vista, depois na Rua dos Caciques, no bairro da Saúde em São Paulo. Catatau era um dos poucos “velhos” que vinha nos “visitar” naquele espaço um tanto quanto insalubre. Às vezes vinha com demandas e orientações específicas. Era seu trabalho como dirigente. Mas na maioria das vezes vinha apenas saber “como andava a juventude”. Se interessava, perguntava, nos incentivava e claro, contava suas histórias. Se emocionava com facilidade, principalmente quando lembrava de velhos companheiros de luta. Catatau amava pessoas, não podia viver sem elas.

Como dirigente e marxista, Catatau era uma força da natureza. Nos últimos anos, mudou um pouco de estilo. Tornou-se ainda mais agregador do que já era, sem abrir mão da profundidade e seriedade. Na polêmica, era paciente, desmontava um a um os argumentos do adversário, mas não procurava impor seus pontos de vista. Sabia que o futuro pertencia já a outros e deixava o barco navegar. Confiava em nós. Entendia o mecanismo da vida.

Também nos últimos anos tornou-se mais autocrítico, de si mesmo, de sua geração e do trotskismo em geral. Via não somente o perigo da degeneração política (oportunista ou sectária), mas também o da degeneração do regime partidário. Estava estudando esse tema. Chegou a algumas conclusões, estava amadurecendo outras. Aliás, cada tema que ele estudava era uma espécie de nova graduação que fazia. Se tornava um especialista. Para organizar um seminário teórico, descobriu nos 55 tomos das Obras Completas de Lênin centenas e centenas de páginas sobre tática eleitoral que ninguém sequer suspeitava que existissem. Todos pensávamos que Lenin falara muito pouco sobre o tema, mas Catatau mostrou o contrário. Se irritava com a superficialidade. Estava dirigindo a regional de São José dos Campos do PSTU em 2012, quando da desocupação do Pinheirinho ordenada por Alckmin. Chegou à conclusão de que a desocupação do terreno era inevitável lendo o Tomo III de O Capital, mais especificamente o capítulo sobre renda agrária. Largou o livro, e foi organizar a resistência.

Junto com outros, nos conduziu na difícil etapa da ruptura com o PSTU. Quando os mais jovens duvidaram e pensaram em recuar, assustados com a virulência da luta fracional, Catatau disse que era possível e lançou seu mais famoso slogan: coragem, confiança, esperança. E nós fomos. E era possível.

A morte é horrível porque é a derrota do indivíduo. Mas é também uma vitória do gênero porque o gênero segue vivo mesmo após o fim do indivíduo. Essa ideia também está em Marx. A teia das relações é abalada com o desaparecimento do indivíduo, mas se recompõe. O tecido humano preenche as lacunas, aproveita outros materiais, mas principalmente: mantém vivo tudo que foi produzido pelo indivíduo agora morto. E é por isso que o gênero humano não pára de existir. Porque somos indivíduos, mas também somos parte do gênero.

Catatau morreu, mas sua vida vive em nós. Porque o ser humano é suas relações. E ele ajudou a costurar os laços que hoje nos unem. Quem quiser entender quem foi Catatau deve olhar para as organizações que ele construiu, para as pessoas que ele tocou, influenciou, inspirou e formou. Cada um de nós carrega um pouco de sua herança. Há muito tempo já é assim e seguirá sendo. “Levaremos adiante seu legado” não é para nós uma frase vazia, mas uma realidade concreta de corpo e sangue.

Às vezes encontramos um professor que é a razão para odiarmos uma disciplina; encontramos um médico que é razão para desistirmos de um tratamento. Catatau era o oposto disso. Ele levava a fundo a ideia de que devemos tentar ser sempre a razão para alguém continuar, nunca sermos o motivo da desistência. Isso é particularmente importante para os dirigentes políticos da esquerda. Somos poucos e somos feitos de pessoas. A arrogância, o ar de superioridade, o deboche, a indiferença – para Catatau, não havia nada mais alheio do que isso.

Da última vez que conversamos, estava obcecado como tema Catar. Me mandou artigos, depois não resistiu e ligou. Opinou sobre o subtítulo e até sobre a ilustração do artigo que escrevi. Já com a voz fraca e a fala lenta, era outro, mas era o mesmo Catatau de sempre, o que sempre conheci e o que sempre vou lembrar. Fui vê-lo no dia em que morreu. Claro, estava fisicamente transformado. Mas, coisa curiosa, meu cérebro não conseguiu guardar essa imagem. Aconteceu há três dias, mas eu não lembro. Ela se apagou em mim no instante em que saí do hospital. Só consigo lembrar dele bem e saudável, com seu riso fácil, seus olhinhos claros puxados e seu nariz meio torto, quebrado numa briga em uma eleição sindical, uma greve ou algo assim.

Morreu nosso samurai, nosso amigo, nosso companheiro, nossa âncora presa no leito do mar em Praia Grande. Mas nós seguiremos, porque ele nos ensinou como. E no final, isso é o mais importante.