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MOVIMENTO

Lembrando Catatau

Prefácio ao livro “Coragem, confiança e esperança: Catatau, presente!”, uma coletânea de textos de autoria e sobre Paulo Aguena, o “Catatau”, dirigente da Resistência falecido há um ano. O livro foi organizado por Mariana Caetano e Maurício Aguena e se encontra em pré-venda no site da Usina Editorial.

Henrique Canary, do Esquerda Online

Custa acreditar que faz um ano da morte de Paulo Aguena. Catatau morreu no dia 05 de dezembro de 2022. No dia 06, velório e enterro. A morte é, também, uma questão prática: avisar as pessoas, ameaça de chuva, decorar o local, carregar cadeiras, pendurar bandeiras, som, quem vai falar? Estou ocupado. No centro do espaço, o caixão aberto. Não me aproximo. Sigo firme em minhas tarefas. De repente, uma agitação. Do alto da quadra do Sindicato dos Metroviários, alguns companheiros erguem um enorme banner com a foto de Catatau. Ele está bem, sorrindo. Era assim que eu lembrava dele. Por um segundo, pareceu que foi um sonho. Junto da foto, seu mais poderoso slogan: coragem, confiança, esperança. Foi o golpe que faltava, desmorono.

Ainda é cedo para bater o martelo sobre o legado de Catatau. Ele mesmo passou os últimos anos de sua vida elaborando e revisando teses, pensando alto, mudando de ideia. É coerente que façamos o mesmo. Temos tempo. Este livro é uma primeira tentativa de começar a refletir. O que se pode afirmar com certeza é que Cata ocupa um lugar na vida e na formação de um punhado de militantes que passaram pelo movimento revolucionário brasileiro entre as décadas de 1980 e 2010 e que tiveram o privilégio de conhecê-lo. Não dezenas, mas centenas de quadros foram tocados pela sua determinação, seriedade e sensibilidade.

Catatau era apaixonado pela política, pelas táticas e pela teoria, mas era, sobretudo, um especialista em montar equipes e distribuir tarefas. Identificava os talentos individuais e os colocava em movimento a serviço da organização. Onde está fulano? E quando percebíamos, fulano estava cumprindo alguma tarefa – às vezes em uma cidade distante – sob a orientação de Catatau. Há histórias engraçadíssimas sobre esse tema e que já são parte de nossa tradição oral. Foi essencialmente na qualidade de organizador que ele atuou desde que a antiga Tendência Internacional rompeu com o PSTU, em 2016, e conformou o Movimento por uma Alternativa Independente e Socialista (MAIS); e depois, já junto com a Nova Organização Socialista (NOS) e o Movimento de Luta pelo Socialismo (MLPS), a Resistência, em 2018. Criou uma comissão internacional, articulou relações e viagens, selecionou elaboradores, revisores e tradutores.

Depois da ruptura com o PSTU, Catatau se dedicou a repensar uma série de questões relativas à história do trotskismo. Isso resultou em vários documentos internos, uma extensa seleção bibliográfica e um seminário de estudos realizado em 2018 e que chegou a várias conclusões importantes sobre os méritos e as debilidades de nosso campo histórico. Já em 2022, pouco antes de falecer, avançou em uma elaboração específica que gostaríamos de detalhar um pouco mais aqui, pois acreditamos que é central na compreensão da natureza do movimento trotskista e da organização que Catatau animou e que agora tratamos de seguir construindo.

Pensando sobre o destino geral do trotskismo internacional e seu lamentável histórico de rupturas deletérias e dispersivas, Catatau concluiu que essas cisões não eram provocadas por diferenças políticas, como as aparências sugeriam, mas por distorções no regime interno das organizações. Admitia a centralidade da política na construção de qualquer corrente revolucionária, mas apontava o fato de que a história concreta dessas rupturas demonstrava que elas só ocorriam quando as posições históricas dos principais dirigentes se tornavam minoritárias. Nesse momento, a direção partidária lançava mão de recursos burocráticos e regimentais para manter o controle sobre a organização e evitar a mudança de curso. Era o que o demonstrava a história das rupturas da IV Internacional, RCP inglês, CWI inglês, SWP norte-americano, PCI francês e outros.

Catatau afirmava que nessa questão se expressava uma dialética especial, na qual o trotskismo sofria pressão e acabava se curvando à força do stalinismo, seu principal adversário dentro do movimento operário. Essa elaboração, embora parecesse inédita, era na verdade um resgate das posições do dirigente trotskista norte-americano James Cannon, que, ainda nos anos 1940, havia elaborado sobre os “tipos de direção partidária”, afirmando que no interior do movimento trotskista se formara uma espécie de “direção-fração”, ou seja, um regime hermético, avesso às diferenças e ao debate político.

Catatau não era idealista e por isso não negava, em princípio, a necessidade de, sob certas condições, romper com uma organização para construir outra. Mas havia rupturas justificáveis e injustificáveis. Ele defendia que era preciso abandonar a tradição das rupturas injustificáveis, motivadas pela disputa de aparato, e construir organizações saudáveis, flexíveis, capazes de absorver as diferenças políticas e manter a unidade ainda que na presença de fortes debates e mudanças na correlação de forças entre suas distintas alas. Dirigir uma organização não podia ser sinônimo de controle absoluto sobre seus rumos. Era saudável que, com o tempo e a evolução da luta de classes, se formassem novas maiorias, que tinham o direito legítimo de ditar os rumos da corrente.

Ele lembrava que existe uma relativa independência entre a política e o regime de uma organização. É possível ter uma política correta e um regime deformado, e o contrário – uma política errada e um regime saudável. Junto com isso, afirmava algo em certa medida contraintuitivo: que, em última instância, o regime era primordial em relação à política. Se uma organização tem uma política errada, mas um regime saudável, pode testar a orientação na prática e corrigir os rumos mediante um balanço sério e honesto. Se, ao contrário, a organização tem um regime deformado, será destruída na primeira polêmica importante ou no primeiro erro decisivo, ainda que eventualmente acerte na linha tática.

As reflexões feitas por Catatau podem contribuir para a formulação de uma nova cultura política que embale a construção de organizações revolucionárias neste novo período histórico. Em uma época de retrocesso, confusão e dispersão, precisamos de organizações revolucionárias sólidas, mas também radicalmente democráticas, capazes de lidar com as inevitáveis polêmicas políticas, táticas, organizativas e mesmo programáticas que surgem da própria prática militante neste século 21.

Em uma época de retrocesso, confusão e dispersão, precisamos de organizações revolucionárias sólidas, mas também radicalmente democráticas, capazes de lidar com as inevitáveis polêmicas políticas, táticas, organizativas e mesmo programáticas que surgem da própria prática militante neste século 21

O slogan “coragem, confiança, esperança” merece uma menção à parte. É uma espécie de anedota interna em nossa organização, mas o tipo de anedota levada muito a sério e tratada com muito carinho. Estávamos às vésperas da ruptura com o PSTU. Alguns companheiros, principalmente os mais jovens, se encontravam assustados e quase paralisados pela violência da luta fracional. Dezenas de militantes já haviam abandonado a organização devido ao massacre das posições minoritárias. O que fazer diante dessa realidade? Pensávamos que a ruptura seria uma aventura irresponsável porque não era possível construir uma nova organização baseada em algumas poucas centenas de militantes. Seria necessário admitir a derrota e seguir o trabalho militante leal dentro do PSTU até que uma nova oportunidade de mudança de rumo surgisse. Catatau percebeu a gravidade da onda de desmoralização que se abatia sobre nossa militância e foi o primeiro a dizer que a ruptura era necessária e possível. Segundo ele, a conquista mais preciosa daquela disputa fracional não era a elaboração política e programática, mas a camada de quadros que havia sido forjada. Se permanecêssemos dentro do PSTU, essa coluna de militantes seria destruída e abandonaria, um a um, a organização e a luta. A unidade sem acordo de princípios, programa e política, portanto, tinha um caráter destrutivo. Disse que nosso acúmulo não era grande, mas que outras organizações surgiram com muito menos do que tínhamos. Possuíamos uma disciplina forjada pelo intenso combate interno, um rascunho de programa elaborado no calor do debate. Mas fundamentalmente, tínhamos a vontade subjetiva. Catatau concordava com os companheiros que argumentavam que a situação objetiva era difícil para o surgimento de uma nova organização revolucionária, mas afirmava que, quando se trata de fundar uma nova corrente, o determinante é a vontade subjetiva. A realidade era um limitador, mas não absoluto. E lançou seu slogan. Deveríamos propor um compromisso à militância, mas um compromisso fundamentalmente subjetivo: coragem para enfrentar o caminho da ruptura e as dificuldades da construção de uma nova corrente, confiança na camada de quadros e no esboço de programa que havíamos acumulado e esperança no futuro. A distinção entre otimismo e esperança era particularmente importante para Catatau. Enquanto o presente não fornecia muitos elementos para o otimismo político imediato (a extrema-direita avançava a galope), a esperança no futuro era o terreno sobre o qual deveríamos operar.

De um modo geral, durante o processo de ruptura com o PSTU, foi quando sua retidão moral e honestidade intelectual se agigantaram. Fomos testemunhas. Tinha desprezo pelas manobras internas aplicadas contra camaradas. Seus documentos e intervenções eram cristalinos, não escondiam nenhuma posição. Odiava a dissimulação. Se recusava a fazer autocrítica quando não estava convencido do erro. Informava a fração majoritária sobre cada passo da minoria. Foi assim quando decidimos romper: a direção do PSTU foi a primeira a saber. No momento em que a ruptura se concretizou, defendeu que saíssemos de mãos vazias, sem nenhuma luta pelo aparato. Nada além dos direitos trabalhistas dos profissionais partidários e de alguns livros da editora, cujos autores eram membros da Tendência Internacional. Houve dúvidas entre alguns quadros, que queriam levar a disputa até as últimas consequências. Mas ele contou histórias sobre a honra samurai e convenceu a todos.

Na nova organização, Catatau ocupou um lugar discreto, porém decisivo. Já não era o eixo da direção como costumava ser, mas uma válvula de segurança, uma âncora. Apesar de participar das reuniões da Executiva Nacional, ficava calado em muitos pontos e mantinha uma respeitosa distância da maioria dos quadros que assumiram a tarefa da condução cotidiana da corrente. Estava mais preocupado em estabelecer os alicerces estratégicos para o futuro e repensar a herança do passado. Nacionalismo burguês progressivo na América Latina, nova situação mundial, o marxismo e a questão militar, governos de colaboração de classe, Frente Única Operária, Governo Operário e Camponês, história da IV Internacional – esses eram os temas que o interessavam. A não ser, é claro, quando algum bicho o mordia, ou seja, quando alguma questão tática lhe parecia decisiva. Nesses casos, o velho instinto dirigente despertava. Ligava, mandava mensagens, e-mails, visitava. Se nos convencia, voltava ao seu retiro e deixava que aplicássemos a linha. Se resistíamos, respeitava, e também se recolhia. Podia ter opiniões fortes, mas sua confiança na nova direção era ilimitada. Em uma das últimas conferências da Resistência, lutou contra a maioria da direção, montou um grupo de opinião, polemizou, escreveu documentos, fez contrainformes. Era um militante interno, não uma figura pública, os mais jovens só o conheciam pelas histórias transmitidas oralmente, mas sua simples assinatura em um Boletim de Discussão Interna desequilibrava todo o debate. Conquistou quase a metade dos delegados. Ao final, aplicou à risca o que defendia em teoria: a linha da maioria deveria ser implementada, o balanço fazemos depois. E as relações se recompuseram. Uma única lição que valeu por anos de aprendizado! Era com um dirigente desse porte que podíamos contar.

Catatau nunca absorveu por completo as novas discussões sobre opressão que tanto marcam a luta da esquerda no Brasil e no mundo. Entendia a questão teórica e programaticamente, mas tinha dificuldades com a nova linguagem, novas demandas e dúvidas sobre certos comportamentos e mecanismos. Mas admitia sua ignorância e inadequação. Com o instinto aguçado que tinha, percebia que estávamos diante de uma nova realidade e que era preciso mudar. Nunca se opôs à luta interna dos oprimidos por espaço e reconhecimento, e se entristecia visivelmente quando vinha à tona algum caso de machismo dentro da organização. Seu trato era singelo, humilde e até delicado.

Não era um dogmático. Gostava de falar sobre temas não relacionados à militância. Era seu jeito de estabelecer vínculos pessoais e afetivos. Pescaria, literatura brasileira, filmes de samurai. Verdade seja dita, nunca o vi falando de futebol. Não sei se torcia. Investia uma pequena herança familiar na bolsa de valores e, com o aplicativo de celular aberto em mãos, andava pela sede tentando convencer as pessoas de que era fácil ganhar um dinheirinho. Concordávamos diplomaticamente e, quando ele passava, ríamos e comentávamos: “Que figura!”. Apreciava uma boa cachaça, mas nos últimos anos teve que moderar em muito o consumo por causa da hepatite.

Catatau passou por nossas vidas como um tsunami: revirou tudo, destruiu certezas, mostrou que o mais importante é termos uns aos outros. Depois que ele se foi, nos sentimos desolados e perdidos, mas já começamos a reconstruir. Era uma força da natureza, um terremoto originado em Okinawa. Em um curso da Juventude do PSTU, dado em São Paulo durante um rigoroso inverno, instalou-se uma crise por causa do frio. Amontoados no chão da sede, não conseguíamos dormir. Catatau saiu porta afora no meio da noite. Voltou algumas horas depois com dezenas de caixas de papelão para improvisar camas. Parecia que não havia nada que ele não resolvesse. Nunca soubemos de onde ele tirou tanto papelão.

Quando foi diagnosticado com câncer, disse que morreria lutando – “como um samurai”, fez questão de acrescentar. E assim o fez. A sedação por morfina só ocorreu algumas horas antes da morte, para amenizar os efeitos de uma insuficiência respiratória aguda. Já não falava, não sabemos se entendia. Dissemos a ele que ficasse tranquilo porque seguiríamos a luta, e ele se apagou. Antes disso, com a piora do prognóstico, ainda no período pós-pandêmico, aceitou ser homenageado em uma atividade especial porque pensou que isso poderia ser educativo para a militância. Disse que era preciso celebrar a vida. Nos reunimos na Casa Carolina Maria de Jesus. Estava feliz em rever velhos companheiros, em particular os da UNE e do movimento operário. Lembramos algumas histórias engraçadas, mas também choramos porque sabíamos que era uma despedida. Esse momento ficou registrado em vídeo, bem como uma longa entrevista biográfica dada em 2022 e que aguarda um destino apropriado.

O cuidado com a memória de Catatau expresso neste livro não tem nada a ver com o culto à personalidade ou com o “dirigentismo” existente em algumas organizações da esquerda radical. Lembramos dele sobretudo com carinho pessoal exatamente porque ele era um igual. Sempre fez questão de se colocar assim. Mas nós sabíamos que havia uma certa distância. De um lado, um dirigente que se formou ainda na luta contra a ditadura, passou pelas Diretas Já!, construção do PT e da CUT, anos 1980, ascenso operário, greves gerais poderosíssimas, enfrentamentos de rua e de porta de fábrica, experiências internacionais. De outro, uma geração talvez mais intelectualizada, mas que só conheceu as derrotas dos anos 1990, a colaboração de classes dos anos 2000, o triunfo da extrema-direita dos anos 2010, com raros casos de experiência internacional e relativamente pouca vivência no movimento operário. A fusão dessas duas componentes resultou na organização que construímos hoje e que agora presta sua homenagem ao nosso mestre querido, engenheiro e arquiteto, nosso amigo, nosso companheiro, Catatau.