Ao contrário da maioria da população, não costumo ficar nervoso em partidas de Copa, assisto eles pelo espetáculo. O que me tira do sério é um jogo em Moça Bonita pelo Cariocão. Meu coração não aguentaria mais uma batalha de Itu.
Costumo sempre lembrar que certa vez ouvi um ditado: das coisas que menos importam, futebol é a mais importante delas. Tendo a concordar. Imagina se uma partida de futebol tivesse a seriedade de um debate sobre a dívida externa ou sobre o tripé macroeconômico. Seria impossível acompanhar.
Felizmente o futebol tem sua graça na leveza. Na simplicidade. No irracional. E é isso que o torna tão apaixonante e lhe dá o status da mais importante coisa dentre as coisas banais da vida.
E se tem um momento que o futebol é futebol, é quando chega a Copa do Mundo. Imagino que daqui a milhares de anos (milhões talvez), quando o mundo como conhecemos hoje não existir mais. Quando nossa civilização tiver sido extinta. Imagino que algum outro tipo de criatura, vinda de alguma civilização localizada a anos luz da Terra, virá nos visitar. Em uma dessas expedições sobre nossa cultura, talvez, esses estranhos seres intergalácticos possam encontrar vestígios desse torneio espetacular que chamamos de Copa.
Imagino que esses seres irão estranhar o fato de que em algum lugar da Terra, a cada quatro voltas ao Sol, equipes dos mais diversos países, das mais diversas línguas, se reúnem para correr durante 90 minutos atrás de um objeto esférico, em templos gigantescos onde o público que assiste gritava, torcia e chorava.
É na Copa do Mundo que pessoas que não acompanham esse esporte simplesmente mudam completamente. Se colam na TV e esperneiam a cada chance perdida, roem as unhas durante o nervosismo, xingam o árbitro e a terceira geração da família do bandeirinha, e gritam em apoteose após o gol marcado. Tudo tá liberado.
Viralizou na internet um desses “torcedores de Copa” falando que o gol do Brasil seria marcado por Arrascaeta. Uma pena que a aposta deste torcedor não pudesse ser realizada, já que o talentoso meio campista não joga pela nossa Seleção justamente por nascer no país vizinho, o Uruguai.
Porém, esse relato é um exemplo nítido do porque a Copa é maravilhosa. Ela causa esse efeito de fazer milhões acompanharem como se fossem fanáticos torcedores. Racionalizar o ato de torcer é um perigo. Todos tem o direito a magia que é o grito de gol e do feitiço que é a corneta.
Outra das magia da Copa é a rivalidade. Os que não gostam que me perdoem. Pouco importa se nossa rixa com a Argentina foi inventada por Galvão Bueno ou não. Mas a rivalidade é maravilhosa. Poder xingar a equipe adversária sem mais nem menos. Gritar ser o único pentacampeão. Escrever Seleção com letra maiúscula da mesma forma que se escreve Deus ou um nome próprio, e ao mesmo tempo colocar o país rival em minúsculo, assim como é minúsculo o talento do suposto craque do time deles.
Os historiadores e burocratas, viciados nos números frios das datas, dizem que o futebol foi inventado pelos ingleses. Para esses eu só tenho a dizer: vocês estão errados.
O futebol, o futebol mesmo foi inventado no Brasil. Quando as regras e a rigidez tática foram substituídas pelo drible, pela ousadia, pela irreverência. Aí sim, foi criado o futebol.
O futebol surgiu quando a diretoria do Vasco da Gama, guiada pela flecha civilizatória de Oxóssi, escreveu a Resposta Histórica, um documento fundante do jogo e do país possível, contrariando e enfrentando o racismo que não permitia negros jogarem futebol profissional.
O futebol nasceu quando Seu Zé baixou em seu Cavalo, o Mané Garrincha, em pleno Maracanã e o fez dançar com a bola. Nasceu quando o então menino Pelé, recebeu um Erê, fez furdunço, chapelou um sueco e trouxe pra casa nossa primeira taça.
Digo mais, o gol de Pelé além de inventar o futebol como amamos, também foi fundamental para essa invenção que chamamos de Brasil, mas aí é outro papo e outra história.
O foda, e o fato, é que hoje, se joga muito mais a bagunça redigida pelos ingleses, do que a bagunça criada em nosso solo.
A ginga com a bola deu lugar as linhas de marcação, o drible deu lugar ao posicionamento, o camisa dez deu lugar aquele atleta que acompanha o lateral, o gol deu lugar ao resultado. Os times viraram empresa, o que não dá lucro não é útil. O jogo ficou menos colorido, ficou mais triste.
Os estádios, palcos de lágrimas, espetáculos, e de um jogo a parte no duelo entre as torcidas, se tornaram teatros e luxuosas arenas. O grito, as bandeiras, o show, foi tudo substituído por silenciosos aplausos. O futebol para torcer se tornou o espetáculo para olhar. A fantasia de criar jogadas virou a prisão dos esquemas táticos. A ousadia está proibida naquilo que se tornou um dos negócios mais lucrativos do mundo. No soccer da força e velocidade, 1×0 é goleada, 0X0 é insistência.
Imagina explicar para meu eu do passado que estava errado pois não fazia a recomposição pelo lado direito. Tenha dó.
Para os que não acompanharam minha imaginária e curta carreira, eu, descalço, fiz centenas de gols com a bola de meia pelas ruas de Maceió, outras centenas nas areias da orla, e mais algumas centenas chutando a pelota nos intervalos da escola. Faltou pouco para alcançar o milésimo gol ainda em minha juventudes. Costumo culpar as dores no joelho e problemas respiratórios por não ter sido jogador profissional.
Assim como eu, milhares de pessoas utilizam essas mesmas desculpas esfarrapadas para esconder a verdadeira falta de talento.
Voltando as reclamações… a magia do futebol está na sua capacidade de cagar para as regras estabelecidas. Isso é o que o mantém vivo. Tudo, com imaginação e paixão por esse jogo, vira uma bola. De uma tampa de garrafa pet, a um jornal enrolado com durex. E a bola de futebol é sim uma entidade, que baixa nas ruas do mundo todo junto dos pés de crianças.
Em campos de concentração para refugiados sírios no Líbano, ou nos campos de terra das favelas e periferias do Brasil, ela tem o mesmo efeito que tem enquanto durante horas, meninos e meninas correm em torno dela e em busca dela, em algum lugar de Camarões, ou da Libéria, ou repetem este mesmo ritual na Bolívia. A “definição de alegria”, escreveu Galeano, é a bola mais o pé infantil.
Eles, e aqui você sabe de quem eu falo, querem acabar com essa macumba que é jogo e transformá-lo num negócio para lucrar e encher os bolsos.
Assim como as cidades deixaram de ser das pessoas para ser dos carros, o futebol, ao pouco deixa de ser do drible e se torna do esquema tático. Ainda existem aqueles que resistem e acreditam que as ruas podem ser lugar de encontro e não só de passagem, assim como o futebol pode ser do povo, do sobrenatural, e não da bolsa de valores.
É época de Copa do Mundo. O povo toma pra si o futebol. Nossa Seleção (maiúscula como o talento de Neymar) representa o povo, por mais que nossos craques antipáticos, cercados por seguranças, baba ovos, e publis do Instagram se esforcem para se distanciar da população.
Ainda somos nós, os herdeiros de Zico, de Adriano, de Ademir da Guia, a Seleção dos Condenados da Terra. Não à toa, indianos, paquistaneses, haitianos, líbios, e pessoas de muitas outras nacionalidades colocam o histórico manto verde amarelo. Pretos, amarelos, marrons, da periferia do planeta, os cidadãos excluídos do Terceiro Mundo que na Copa, são assim como nós, membros do país que ainda sonhamos ser.
Esses povos, se sentem representados na armadura verde e amarela pelo que ela ainda carrega. Nossa camisa é a expressão daquilo que é sagrado, daquilo que é místico, em um objeto material. Assim como o estandarte da escola de samba, o terno do malandro, a capa de Exu. Nossa camisa encanta quem a coloca, transformando aqueles homens comuns que a vestem sobre seus ombros em herdeiros do mistério, aterrorizando os meros mortais que enfrentam a nossa Seleção dentro das quatro linhas.
Ela representa a subversão. O drible inusitado que derruba o marcador. O gol inesperado que arrebata a alma. Ela é um alento aos povos desse Sul Global, e um recado aos poderosos: existimos e somos bons, temos talento e vamos vencer vocês.
Por mais que esse objeto sagrado esteja sendo profanado. Mal vestido. E utilizado por aqueles que negam nossa existência. Eu, como faço parte da parcela cabeça dura e dos homens de Fé, continuo acreditando que ainda existe magia em nossa amarelinha.
Os que preferem o materialismo ateu que me perdoem, mas duvido de suas crenças. O mundo, em especial o mundo do futebol, é espiritual, esotérico, divino.
Toda lógica é confrontada. Pela lógica e materialidade das coisas o 7×1 não teria acontecido. Mas alguma entidade resolveu que nossos pecados eram grandes demais. Pela lógica teríamos ganho a Copa 82. Mas quis alguma força sobrenatural que isso fosse aos ares. Pela lógica humana Ronaldo Fenômeno nunca teria se recuperado da lesão em 2002, mas no Campo o divino fala. Afinal, como achar que o chute de Ronaldinho contra os ingleses não foi orientado pelos ventos de Iansã?
O futebol respira. Por aparelhos. Mas respira. Os rachas de domingo, os bolões da firma, o choro do craque Endrick e o gol do caneludo Richarlyson são prova disso.
Imagino que daqui a milhares de anos, ou milhões, quem sabe. O nosso querido viajante vindo das estrelas ficará sem entender muita coisa sobre Copa do Mundo, regras do impedimento, VAR, e a polêmica sobre o esquema posicional. O jogo e seus efeitos com certeza o deixará confuso. Normal, afinal, não tem como entender, o jogo apenas se sente.
Contrariando tudo aquilo que eu disse até aqui, a verdade, verdade mesmo é que sendo sincero, eu nem gosto tanto assim de futebol.
Eu gosto mesmo é do clube com a história mais bonita do mundo, o gigante da colina, Vasco da Gama.
Viva o Futebol e a Seleção brasileira
Foda-se a FIFA.
Por Gabriel Santos, de Porto Alegre (RS)
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