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MOVIMENTO

Lei Geral do Esporte: um novo instrumento para a criminalização das torcidas organizadas.

A mudança no Estatuto do Torcedor e as disputas pela arquibancada

Renato Saldanha, Verônica Carvalho, Arthur Antas e Diogo Xavier

Nos últimos anos, vários episódios chamaram atenção da sociedade para as torcidas organizadas. Em 2019, faixas com críticas à reforma da previdência, ou referentes ao assassinato da vereadora Marielle Franco, foram vistas em inúmeros estádios pelo Brasil. Em 2020, durante a pandemia de Covid-19, torcedores e torcedoras organizadas protagonizaram atos em defesa da democracia nas ruas das principais capitais, como resposta às manifestações antidemocráticas e como boicote às medidas sanitárias conduzidas pelo governo federal, além de promoverem diversas ações solidárias, com distribuição de alimentos e itens de higiene à população mais vulnerável. Em 2022, o destaque foi para os “fura bloqueios”, quando caravanas de torcedores enfrentaram os bloqueios nas estradas, promovidos pela extrema-direita, que não aceitava o resultado das eleições presidenciais. Já em 2023, após a tentativa de golpe de Estado da extrema-direita no dia 8 de janeiro, a Anatorg (Associação Nacional das Torcidas Organizadas) se juntou aos atos em defesa da democracia e pela punição dos envolvidos, mentores e financiadores.

Além de surpreender a muitos, acostumados a olhar para esses agrupamentos sempre pelo olhar da criminalização, esses episódios também provocaram a ira de setores reacionários, que resolveram contra-atacar. Nesse início de 2023, estamos assistindo a diversas arbitrariedades, que buscam aprofundar o processo de criminalização das torcidas e bani-las dos estádios. No Rio de Janeiro, um confronto entre torcedores do Flamengo e do Vasco, facilitado por erros primários do policiamento, serviu de justificativa para o governo Cláudio Castro (PL) interromper todo o processo de diálogo que vinha se estabelecendo entre a Alerj e as torcidas, e proibir as principais torcidas de frequentar o estádio durante o resto do ano. Além disso, a Justiça do Rio determinou, de forma absolutamente arbitrária, a prisão dos chefes das principais organizadas do Estado, mesmo com fartas e irrefutáveis provas do não envolvimento deles na briga (decisão que só foi revogada quase dois meses depois). Em outro episódio no Estado, torcedores do Flamengo Antifascista foram detidos e condenados a pagar multa, usar tornozeleira eletrônica, e não poderem mais frequentar os estádios pelo resto do ano, por exibirem nas arquibancadas do Maracanã uma faixa escrita “Morte aos torturadores de 64”.

Em São Paulo, torcedores do Botafogo de Ribeirão Preto também foram detidos pela PM, e a torcida Resistência Caipira foi banida dos estádios até novembro, sob a acusação de incitação à violência, por exibirem no estádio uma faixa com o pedido “sem anistia”, em repúdio aos golpistas do 08 de janeiro.

Em Minas Gerais, torcedores organizados que atenderam ao cadastramento imposto pela Polícia Militar relatam que passaram a ser alvo de perseguições e intimidações constantes por parte das forças policiais.

Em Pernambuco, a perseguição às torcidas se aprofunda no governo de Raquel Lyra (PSDB). Primeiro com a tentativa de impor torcida única nos clássicos. Depois com uma política explícita de criminalização do torcer, que tem dificultado o acesso tranquilo dos torcedores ao estádio em dias de grande público, e chegou ao cúmulo de proibir camisas amarelas (cor da principal torcida do Sport) em um jogo apenas com mulheres e crianças na Ilha do Retiro, obrigando algumas torcedoras a passar pelo constrangimento de entrar no estádio apenas de sutiã. A falta de diálogo com as torcidas levou ainda a decisões desencontradas e estapafúrdias, como a liberação de baterias em setores do estádio onde não há costume em usá-las, como nas sociais.

Conquistas pontuais, como a volta das duas torcidas ao Atletiba, no Paraná, não alteram o quadro geral de retrocessos. Todos os ataques buscam o mesmo objetivo: limitar as ações das torcidas organizadas, ou mesmo extingui-las dos estádios.

A Lei Geral do Esporte e o aprofundamento da criminalização das torcidas organizadas

Mas, o que já vinha mal, ainda pode piorar. Os inimigos das torcidas organizadas estão prestes a receber mais um reforço, a nível federal: a nova Lei Geral do Esporte. Construída por uma comissão de juristas a pedido do Senado, essa lei, que estabelece novos marcos para diversas esferas do esporte brasileiro, já foi aprovada no congresso e no momento aguarda apenas a sanção do Presidente Lula. No que diz respeito às torcidas, a lei não apenas insiste em equívocos de leis anteriores, como aprofunda o processo de criminalização das torcidas organizadas. Além de ampliar o prazo de punições e aumentar multas, dois parágrafos do artigo 177, que trata sobre o torcedor, merecem destaque:

§ 5º A torcida organizada responde civilmente, de forma objetiva e solidária, pelos danos causados por qualquer dos seus associados ou membros no local do evento esportivo, em suas imediações ou no trajeto de ida e volta para o evento.
§ 6º O dever de reparar o dano, nos termos do § 5º deste artigo, é responsabilidade da própria torcida organizada e de seus dirigentes e membros, que respondem solidariamente, inclusive com o próprio patrimônio.

Caso seja sancionada dessa forma, a lei permitirá que a justiça continue punindo o CNPJ da torcida, no caso de qualquer incidente, como já vem acontecendo desde a mudança do Estatuto do Torcedor, em 2012, ao invés de buscar individualizar a pena, punindo o torcedor infrator. Mais do que isso, a nova legislação aprofunda essa arbitrariedade, determinando que os dirigentes da torcida passem a responder, inclusive com o patrimônio próprio, sobre qualquer dano causado por um membro da torcida. Trata-se de um absurdo ímpar, até mesmo para o direito brasileiro, já que tal tratamento não é dispensado a nenhum outro tipo de associação civil em nosso país. Nenhuma outra associação responde coletivamente por eventuais ilegalidades cometidas por um de seus membros isolados, que dirá com o patrimônio pessoal de seus dirigentes.

O objetivo da nova legislação não é outro, senão inviabilizar o funcionamento das torcidas organizadas, bani-las definitivamente do futebol brasileiro. Porém, as torcidas organizadas existem há mais de oitenta anos, fazem parte da cultura futebolística brasileira, e não há razão para acreditar que elas possam ser extintas por uma simples canetada. O mais provável é que as torcidas sigam existindo e ocupando as arquibancadas brasileiras, à margem de qualquer legislação. Esse status “clandestino”, porém, favorece ao aumento da violência, já que tende a afastar torcedores bem intencionados, mais interessados em participar da festa das arquibancadas e outras ações da torcida, e atrair justamente quem busca nessas coletividades o anonimato para práticas ilegais.

O necessário combate à violência entre as torcidas não pode ser justificativa para arbitrariedades e supressão de direitos fundamentais, como o direito à livre associação. O único caminho é o diálogo, que reconheça a importância das torcidas organizadas para o nosso futebol, e busca atraí-las para o caminho da legalidade.

É fundamental que o Presidente Lula ouça a ANATORG e os torcedores organizados do país, algo que não foi feito por aqueles que formularam a Lei Geral dos Esportes ou as legislações anteriores, e vete os artigos aqui citados, bem como todos os outros que criminalizam as torcidas organizadas.

Por um futebol popular e democrático! Pelo direito de torcer!