O neofascismo, dispensando o verniz civilizatório do neoliberalismo, acaba por revelar a verdade última deste, do qual, aliás, é um produto histórico, e, nesse sentido, o bolsonarismo, fruto indesejado da crise orgânica da classe dominante, se mostra, ao fim e ao cabo, como a nossa burguesia sem superego.
Algumas respostas do Bonaparte bufão ao teatral William Bonner hoje à noite podem ilustrar tal assertiva. Numa delas, quando questionado sobre a economia nacional, Bolsonaro coligiu um punhado de contrarreformas neoliberais, as quais o jornalista não pôde questionar, fosse para não desagradar seus superiores, fosse porque talvez seja ele próprio um quadro mais orgânico do grande capital do que qualquer um dos que por ele serão entrevistados nessa série de candidatos ao pleito.
Em outra resposta, quando perguntado sobre sua aliança com o centrão, Bolsonaro foi mais preciso e didático do que boa parte da nossa ciência política mainstream. “Você está me estimulando a ser um ditador. A enorme maioria do Parlamento é composta pelos partidos de centro, pejorativamente chamados de centrão, e os outros deputados são da oposição, do PT, PCdoB, PSOL, Rede etc., com os quais não dá nem pra conversar e, ainda que desse, não têm votos suficientes pra aprovar qualquer projeto de lei. Você quer que eu governe como? Você está me estimulando a ser um ditador” – foram mais ou menos essas as palavras do candidato a ditador. Abrindo mão de conceitos eufemísticos como “presidencialismo de coalizão” e consortes, o líder neofascista exibiu em poucas palavras e com didatismo exemplar – a César o que é de César, e a Bonaparte o que é de Bonaparte – a natureza política do regime democrático liberal blindado, cuja origem remete às elaborações dos teóricos e aos atos dos artífices da nossa transição pelo alto do bonapartismo militar para a democracia eleitoral.
Desde seu início, a blindagem à participação popular e à penetração de ideias reformistas no plano dos direitos esteve presente enquanto meta precípua dos construtores da nossa ordem democrática. Em um congresso com uma longa plêiade de partidos institucionais, pouco ou quase nada “ideológicos”, e cujo sustento depende sobretudo das boas relações com o Executivo, o extremismo da “esquerda ideológica” – o que, em tempos neoliberais, inclui qualquer variante de reformismo social-democrático – seria facilmente isolado e incapacitado de se colocar como pilar solitário de qualquer eventual governo mais progressista; destarte, até mesmo este não teria como governar senão compondo “maiorias conservadoras” por meio de práticas fisiológicas com os parlamentares. O fato de o PT, por limites ético-discursivos, não ter respondido aos antigos inquisidores do Mensalão da mesma forma que Bolsonaro respondeu a Bonner (“você queria que eu governasse como?”) apenas atesta o respeito maior do partido de Lula ao regime de 1988, mas em nada altera o conteúdo político deste: um arranjo institucional feito sob medida para o grande capital, de modo que até os inconvenientes aditamentos sociais (em especial, os direitos) puderam ser, por meio do próprio funcionamento democrático, eliminados sem muitos óbices internos assim que a blindagem se completou.
Dito de outro modo: Bonner e a burguesia agora republicana se incomodam como o trato clientelista de Bolsonaro com o centrão, mas não se incomodaram nem um pouco quando o mesmo centrão serviu de sustentáculo institucional ao Golpe de 2016, e quando o mesmo centrão, antes e durante o governo Bolsonaro, foi fundamental para a aprovação das contrarreformas que retiraram direitos dos trabalhadores. Bolsonaro jogou limpo o seu jogo sujo, e com isso expôs limpidamente a sujeira do liberalismo político burguês. “Faz, mas não fala…” – foi entreouvido hoje à noite na redação do Jornal Nacional, no Country Club e em alguns departamentos de Ciência Política.
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