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Tragédia da Chapecoense: o Caso LAMIA, visto desde a Bolívia

Por Joana Benario, São Paulo(SP)

Setenta e um mortos no acidente de avião da tragédia Chapecoense, que poderia ter sido evitada se as normas fossem cumpridas, se as instituições bolivianas funcionassem melhor, se o valor da vida humana fosse colocado dentro das prioridades dos governantes.  A tragédia é fruto da negligência existente no estado boliviano e da aplicação das normas segundo os interesses particulares privados, ou seja, a cruel regra do capitalismo.

Quem é a LAMIA ?

LAMIA era, originalmente, uma empresa venezuelana, a Línea Aerea Merideña Internacional de Aviación, criada em 16 de agosto de 2010.  O gestor da empresa é um venezuelano de origem espanhola, Ricardo Albacete.    Iniciou com um capital de 5 milhões de dólares e anunciava inversões de 170 milhões, 717 empregos e mega-convênios com a China para chegar a uma frota de 12 aviões. Anunciou ter o respaldo do governo venezuelano e de fundos chineses.  Mas, na verdade, só adquiriu 3 naves.  O empresário chinês (Sam Pa), um multimilionário que trabalhou na África  (Angola) com petroleiras, terminou sendo detido em 2015, por vários delitos.

A empresa não conseguiu funcionar na Venezuela porque a aeronáutica civil negou a certificação de funcionamento por não cumprir os requisitos de segurança necessários tanto para transporte de pessoas como de correios e carga. Os aviões Avro-RJ85 são considerados pequenos e não aptos para voos charter  internacionais porque só têm autonomia para voar uns 4000 km. Suas oficinas foram fechadas em 2011.

Alguns anos depois, reapareceu o dono, Ricardo Albacete e alugou seus aviões a uma nova empresa boliviana, a LAMIA Corporation SRL , que manteve o mesmo nome para não ter que pintar as aeronaves.  A empresa boliviana foi criada por dois ex-militares da Força Aérea Boliviana (FAB): Miguel Quiroga e o General Marco Rocha.  Como diretor geral da LAMIA, puseram o militar aposentado General Gustavo Vargas.

Em 2014, os 3 aviões chegaram na Bolívia, mas dois deles permaneceram nos galpões da FAB  por não receberem a certificação para voar; só serviam como peças de reposição. A terceira nave – a que caiu – recebeu todas as autorizações para funcionamento e serviço de transporte comercial de pessoas em nível nacional e internacional (ATT em janeiro/2016 até 30/07/2020, Vigência Air até  26/01/2018, Apólice até 04/2017).

Recapitulando, uma pequena empresa que não conseguiu voar na Venezuela mas que se reciclou na Bolívia, montando outra empresa, conseguindo as permissões necessárias e cujo dono era também seu piloto.

Vínculos com as autoridades

Laços corporativos, relações de parentesco, amizade com altas autoridades, tráfico de influências… Alguns elementos já vieram à luz. Vejamos:

Todos os envolvidos foram militares da FAB e sabe-se que a Administração Geral de Aviação Civil  (DGAC) em Santa Cruz é composta principalmente por militares reformados.

A autorização de operações foi negada uma primeira vez pela DGAC. Mas no dia  31 de julho de 2015, foi aprovada pelo General Virgílio Pereira (FAB).

O gerente da empresa, General Gustavo Vargas, foi piloto pessoal de Evo, antes e depois de ele ser presidente. Fotos de arquivo comprovam os fatos, ambos inaugurando uma pista de aviação no departamento de Beni- Bolívia.

O filho do General Vargas, Gustavo Stevens Vargas, trabalhava na DGAC como diretor do Registro Aeronáutico Nacional desde julho de 2015; na mesma época, a empresa conseguiu a sua autorização para operações.

O piloto, Miguel Quiroga, era afilhado político de Roger Pinto, um ex-senador do departamento de Beni (Amazônia boliviana) que em 2012 conseguiu refúgio no Brasil, alegando perseguição política pelo governo de Evo. Na Bolívia, ele é acusado por responsabilidade no massacre de camponeses em El Porvenir e de corrupção. Teve que fugir ilegalmente da Bolívia, com a ajuda da embaixada brasileira.

Na sua autobiografia, o presidente Evo Morales relatou que conheceu pessoalmente o General Pereira, quando era dirigente sindical dos cocaleros na Bolívia e foi detido e confinado na região do Beni, e se tornou seu amigo de longa data.

Olhos fechados sobre os repetidos erros

A funcionária da agência aeroportuária boliviana (AASANA), Celia Castedo, cumpriu com sua tarefa, apontou pelo menos 5 irregularidades no plano do voo da LAMIA, naquele dia. A principal observação era que o tempo de voo exigia maior quantidade de combustível.  Interrogado sobre esse tema pela funcionária, o despachante do voo (que morreu no acidente) falou que o piloto tinha informado que conseguiria “não se preocupe, vamos fazê-lo em menos tempo”. Ela não tinha poder para impedir a saída do voo.  As autoridades colombianas confirmaram que, no momento do acidente, o avião se encontrava em pane seca.

A empresa boliviana passava por sérios problemas financeiros; os salários dos funcionários tinham vários meses de atraso. O Ministério do Trabalho revelou que a LAMIA não estava inscrita no Registro Obrigatório de Empresas (ROE), o que implicava infrações a normas legais.

Não era a primeira vez que o piloto voava ao limite das capacidades de seu avião. Foram mencionados pelo menos uns 5 voos nos últimos dois meses, em que o piloto Micky Quiroga colocou sua nave no limite da sua capacidade. O conjunto desses fatos demostram a negligência por parte das instituições.

 A atitude das autoridades

A primeira reação das autoridades bolivianas foi a de deter todos os possíveis envolvidos, colocá-los na cadeia e negar qualquer vínculo. Em uma coletiva de imprensa, o Presidente Evo Morales reconheceu que o General Gustavo Vargas foi seu piloto; falou que “Não sabia que tinha autorização para funcionar na Bolívia”.  Deu instruções para iniciar uma investigação e prometeu tomar medidas drásticas.

Uma investigação internacional em curso

Foi conformada uma comissão internacional composta pelos Ministérios Públicos da Bolívia, da Colômbia e do Brasil para averiguar o conjunto dos elementos e definir responsabilidades.

Esse voo não deveria ter partido, porém ele decolou de Santa Cruz de la Sierra. Quem deu a ordem de decolagem?  É um tema que precisa ser investigado.

Outros fatores ainda têm que vir à luz:  a demora de reação da funcionária na Colômbia em dar prioridade para o avião pousar? Segundo os familiares do piloto, ele pediu durante treze minutos a permissão para pousar.  Uma pane elétrica? O fator do mau tempo naquela noite?  Mas também as relações obscuras dos dirigentes do futebol sul-americano com esses empresários. A investigação talvez o indicará.

O problema não é só a negligência e corrupção, esse conjunto de mecanismos utilizados pela burguesia para limpar o terreno da sua concorrência, e ganhar o maior lucro possível no menor tempo possível.  Além disso, a lógica do sistema capitalista despreza a vida das pessoas e as coloca diariamente em perigo.