As primeiras décadas do século XXI foram recheadas de ideias eugênicas. Apenas 23 anos depois da abolição da escravatura o Congresso Universal das Raças, realizado em 1911, serviu como um marco no desenvolvimento desse pensamento. Na época, cientistas, políticos e pesquisadores, defendiam perspectivas de embranquecimento total dos negros no Brasil em um intervalo de apenas três gerações. Ações para o sucesso dessa visão foram defendidas e aplicadas pelo Estado brasileiro.
Esse plano de apagamento do negro da vida nacional envolvia a construção de ideologias para a alienação do negro e também da parcela de não negros da população, além de uma outra série de mecanismos sociais de controle.
Assim, surge o “povo brasileiro”, sem cor, e o Brasil como “paraíso das raças”, lugar no qual o conflito racial não tem vez. As nossas classes dominantes brancas desenvolveram como instrumento de seu poder político a ideologia da democracia racial, afirmando que o problema de cor não é um problema brasileiro.
O mito da existência da democracia racial permite aquilo que o saudoso Abdias Nascimento, um dos maiores líderes negros de nosso país, chamou de “racismo silencioso”, sendo uma uma ideologia para a dissimulação do racismo.
Foi Abdias que usou a definição de genocídio para descrever a relação do Estado brasileiro com o continente negro nacional e pensar o lugar do negro em nossa sociedade. Ele mostrava que as práticas de apagamento do negro em diversas dimensões sociais, como a religiosa, a cultural, da vida econômica, do cenário político, e do próprio plano existencial fruto da violência, não era obra do acaso, mas sim algo planejado, ordenado e sistemático.
Hoje, vivemos a maior tragédia humanitária do período pós-abolição. O governo Bolsonaro, a expressão brasileira e colonial do neofascismo, atuou diante da pandemia da Covid 19 de forma a gerar um genocídio em nosso povo. Organizações políticas de todo o país incorporaram a denúncia da ação do governo federal, transformando “Bolsonaro Genocida” em um verdadeiro mote.
Se por um lado a denúncia de Bolsonaro é fundamental, por outro, não podemos esquecer quem são e quem foram as maiores vítimas de genocídio histórico cometido pelo Estado brasileiro. Dizer isso é importante para pensarmos o novo Brasil que queremos construir. Aprender com o povo negro e indígena, que há séculos resistem ao genocídio e criam formas de auto organização e redes de sociabilidade, é uma tarefa urgente para toda e qualquer organização popular.
A roda das relações raciais mudou
Uma década depois da partida de Abdias para o Orun, podemos ver negras e negros ocuparam um novo lugar na luta política brasileira.
Cada vez mais as pautas raciais têm assumido centralidade no debate público. A popularização de expressões e conceitos como “racismo estrutural”; o crescimento no interesse de editoras na publicação de autores e pensadores negros como Clóvis Moura, Lélia Gonzalez, Neusa Santos, entre outros, assim como o destaque dado pela própria mídia burguesa a casos de racismo, mostra que existe algo de diferente no ar. Nas palavras de Hélio Santos “a roda das relações raciais girou no Brasil”.
Negras e negros afirmam sua identidade como pessoas negras, racializadas, tomam pra si essa identidade, e a constroem positivamente. Em outras palavras, elas assumem sua negritude e se tornam racialmente e politicamente negras. Dessa forma, elas avançam sua consciência racial e social, conectando a afirmação de sua identidade com demandas e pautas políticas imediatas, gerando um novo momento no protesto negro brasileiro.
Mesmo em uma situação reacionária como essa que vivemos, os avanços conquistados pelo nosso movimento nas últimas décadas geraram um efeito de afirmação de negritude e auto-organização negra no cenário político. Um exemplo é o surgimento de centenas ou milhares de coletivos que debatem ou atuam sobre a pauta racial, sejam nas universidades, nos bairros, coletivos de comunicação, artísticos, entre tantos outros.
O avanço do protesto negro em diferentes aspectos das relações sociais e também institucionais, se encontra e reflete no avanço da consciência negra, gerando assim uma relação dialética entre eles.
Esse processo de autoafirmação da negritude é um baque no mito da democracia racial – a ideologia central do racismo brasileiro ao longo do século XX e do Poder branco em nosso país, o que pode abrir espaço para, com vontade e força política, se construir um projeto de poder para o negro a nível nacional.
O protesto negro e o voto em 2022
A eleição de 2020 ficou marcada pelo maior número de candidaturas negras eleitas em nossa história. Mais do que uma mera representação pela identidade, vimos assumirem postos no legislativo candidaturas antirracistas, fruto da luta negra e popular. Nós do Afronte nos orgulhamos de termos feito parte desse momento histórico, com a eleição de Matheus Gomes em Porto Alegre, Iza Lorença em BH, e da Bancada Feminista em São Paulo.
Em 2022, no processo eleitoral mais importante desde o fim do regime militar, ampliar esses postos não será fácil. O racismo está no centro do bolsonarismo e as classes dominantes se reorganizam em reação ao crescimento do protesto negro, construindo um movimento contrário a luta por igualdade racial.
Trabalhamos com a hipótese de que o protesto negro liberou em solo nacional não algo como uma onda ou um fenômeno eleitoral, que é balizado pela conjuntura. Mas sim, que estamos vendo algo mais profundo, de caráter estrutural que representa o reposicionamento das relações raciais em nosso país. Isto sem dúvidas, vai refletir nas eleições.
Se vemos um avanço na representatividade negra na política, e a consolidação de uma agenda pública pela igualdade racial, ainda precisamos avançar nos debates para a construção de um poder negro. A construção de um Brasil mais soberano, democrático e igualitário, passa pela demolição das estruturas racistas e do poder branco que as sustentam.
O fato é que o movimento negro tem força social, lideranças e vozes capazes de serem mais do que meros observadores na luta para a construção de um novo Brasil. Queremos ser e seremos sujeitos ativos desse processo de mudança.
Em 2022, lutaremos para eleger Lula presidente da República e derrotar Bolsonaro, assim como, pelo avanço da nossa representação parlamentar. Mas, antes de tudo, para a construção de um projeto político antirracista para o Brasil, que seja um projeto de vida em combate ao ‘Brazil da morte’. Um projeto que denuncie e busque medidas para frear o genocídio colonial que nos atinge. Que enfrente a fome, o encarceramento em massa, e combata as desigualdades raciais.
Neste 13 de maio, lembramos que o cativeiro nunca mais será lugar de morada. Lembramos que a abolição veio. Mas com ela não chegou o pão, a terra, o teto, o trabalho e a democracia.
Lembramos também de nossos heróis, os verdadeiros heróis do povo negro, em contraponto aos heróis oficiais que viraram estátuas e avenidas.
Lembramos que depois de séculos de escravização, foi o povo negro, por meio da luta e do bate tambor, que contribuiu para humanizar minimamente o nosso país.
Lembramos que a liberdade não cai do céu, é fruto de uma luta constante e que só cessará quando ela tiver sido conquistada por plenitude e totalidade. Na raiz daquilo que é ser livre.
Salve Luiz Gama
Salve Zumbi e Dandara dos Palmares
Salve Aqualtune
Salve Negro Cosme
Salve 13 de maio e todos os Pretos Velhos
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