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A guerra escancara a hipocrisia ocidental

Reprodução/USAtoday

Ato em Fevereiro de 2022 em Berlim pelo fim da guerra

Gabriel Santos

Garbriel Santos é alagoano, estudante da UFRGS, militante da Resistência-PSOL (RS), vascaíno e filho de Oxóssi.

A ação militar russa na Ucrânia, entre muitos debates que despontou entre os marxistas revolucionários sobre o imperialismo e sua definição no século XXI, e o caráter do atual conflito no leste europeu, terminou por escancarar para todos que querem ver a hipocrisia ocidental.

Nas redes sociais viralizaram falas de repórteres e âncoras de grandes veículos de mídia de diversos países, seja da BBC, da CNN, da CBS. Sejam jornalistas franceses, ingleses ou norte-americanos, todos eles repetiam o mesmo argumento e questionamentos para falar sobre o conflito na Ucrânia.

“Europa era um lugar com gente relativamente civilizada, não era um país do norte da África, o Iraque ou a Síria”.

Como era possível aceitar que “mísseis sobrevoassem os céus de uma cidade europeia?” Afinal a “Europa era um lugar com gente relativamente civilizada, não era um país do norte da África, o Iraque ou a Síria”. Dessa vez os refugiados da vez que pediam asilos através das fronteiras “pareciam uma típica família europeia de classe média, de olhos azuis e cabelos loiros, poderiam viver na mesma vizinhança daqueles que assistem o programa”.

Existiu um reconhecimento por parte dos jornalistas e políticos europeus da população ucraniana não como o Outro distante que sofre com a guerra e que desperta no máximo o sentimento de pena, mas sim, como parte de um mesmo grupo social. Eles eram semelhantes entre si.

De um momento para o outro, a Ucrânia, país da periferia da Europa, e suas múltiplas etnias, até então um primo pobre e distante, passou a se tornar imagem e semelhança de seus irmãos. A Europa se reconhecia na Ucrânia através de sua cultura cristã e branquitude, e, passa a reconhecer a Ucrânia como parte da civilização ocidental. 

A civilização ocidental, esse grande bloco que carrega o imenso fardo civilizatório de ter expandido seu domínio sob o globo terrestre com a colonização e expansão do modo de produção capitalista, tendo o dever de como um farol iluminar com sua cultura eurocêntrica, sua filosofia judaico-cristã, seu sistema democrático liberal, outros povos e nações atrasados.

A civilização ocidental, que é vítima de ataques destes povos atrasados, de seus ditadores bárbaros e suas cruzadas anti civilizatórias, e por isso precisa se proteger e se fortalecer contra os inimigos em comum.

A mídia europeia, como mostrado parágrafos acima, comprou e reproduz esta narrativa sobre a guerra, fortalecendo assim a criação de uma identidade comum entre o francês médio que assistia o telejornal e aquele ucraniano que agora ganhava o passaporte para o mundo Ocidental.

Essa identidade e reconhecimento como semelhante explica tamanha comoção diante do imigrante ucraniano vítima da guerra, enquanto se propaga uma imensa indiferença pelo sofrimento das vítimas das guerras no sul do mundo. Afinal, como disse o jornalista britânico, bombas no Iêmen, aquele lugar não tão civilizado, com gente de pele escura, é algo normal.

É essa indignação seletiva com base no racismo eurocêntrico que faz com que os países europeus abram as fronteiras para os imigrantes ucranianos ao mesmo tempo que assistem o exército ucraniano proibindo negros de deixarem o país. Esses mesmos países europeus que agora magicamente podem receber em suas fronteiras dois milhões de refugiados vindos da Ucrânia, mas que decretaram emergência por conta de um milhão de refugiados sírios e ainda proíbem imigrantes do norte de África de entrar em seus solos.

Agora, o Ocidente, em um ato que limpa sua alma e expia sua culpa, pode apontar o dedo e chamar o outro de invasor, de bárbaro, de agressor. E essas acusações podem ser feitas ainda com mais força e gosto se esse agressor for um Outro, for também um alvo histórico desse mesmo Ocidente, ainda melhor.O Ocidente rapidamente se esqueceu de sua desumanidade cometida em nome daquilo que ele chamou de civilização. Perdeu a lembrança dos campos de concentração franceses na Argélia; dos dois milhões de toneladas de bombas despejadas sobre o Laos; do apartheid e controle da Palestina; das dezenas de golpes de estado realizados em África e América Latina; O Ocidente que condena com toda sua voz a ação militar russa, perde a memória para falar das recentes invasões da Somália, Afeganistão, Líbia, Iêmen; que se cala diante dos incontáveis de milhões de assassinatos e crimes realizados na colonização.

A Rússia, excluída do pacto da civilização ocidental, foi durante anos fruto de uma chuva de estereótipos dos meios de produção de cultura do Ocidente, em especial de Hollywood. Os russos descritos como frios e fanáticos bebedores de vodca apareciam sempre com imagens bem definidas. As mulheres eram retratadas de forma hipersexualizadas, normalmente trabalhando com prostituição ou espiãs. Os homens, violentos, brutos, alcoólatras e mafiosos. É interessante observar como estas imagens também são usadas para tratar do confronto por parte da imprensa.

Vladimir Putin, constantemente é retratado como um homem frio, sedento pelo poder, e capaz de fazer qualquer mal para alcançá-lo. Uma espécie de poderoso chefão que governa um Estado e teria um ódio mortal ao Ocidente e aos seus valores morais.

É interessante observar como ao se tratar de governantes não europeus sempre são utilizados figuras de narrativas que remetem a um passado destes países que além de distante se contrapõe ao regime democrático burguês, atiçando assim naquele que recebe esta narrativa um imaginário de oposição entre estes governantes e o mundo moderno. Putin, por exemplo, busca, de acordo com esta narrativa, se tornar um novo Czar. O turco Erdogan tem o objetivo de ser um Sultão moderno. O mesmo tipo de narrativa não é usado para países ocidentais. Quando o Reino Unido bombardeou o Iraque, ninguém fez paralelos entre o primeiro-ministro Tony Blair e uma suposta vontade de reerguer o Império Britânico. Quando dez anos depois a França enviou tropas para o Mali, François Hollande não foi chamado de novo Napoleão.

O conflito na Ucrânia logo perdeu qualquer seriedade nas análises. Os interesses geopolíticos russos e de demais atores como União Europeia, Estados Unidos, e da OTAN foram abandonados. A guerra civil que atinge a Ucrânia fruto de distúrbios gerados pelo imperialismo norte-americano e seus aliados é algo que nem se menciona. Tudo se resume em um conflito entre vilões (a Rússia), mocinhos (a Ucrânia), e heróis (o Ocidente). Toda a complexidade foi jogada fora e o conflito se tornou uma luta entre bem e mal, Putin contra o Ocidente, em uma espécie de filme da Marvel do mundo real.

No Brasil, sites de fofocas de famosos, ex-bbbs, e a imprensa, de um dia para o outro se especializaram em geopolítica do leste europeu e todos em um grande coro reproduzem a leitura da guerra como filme da Marvel, e os sonhos de nossa burguesia de serem parte do mundo Ocidental. 

Não resta dúvida de que se nossa burguesia pudesse abandonar o Brasil e ir para um país de primeiro mundo mantendo seu domínio econômico, assim ela o faria.  Ou até mesmo, na pior das hipóteses, se ela pudesse viver nesse país de Terceiro Mundo, mas sem os condenados da terra que habitam neste solo. Porém, ambas as coisas são impossíveis. Então, em seu sonho irrealizável, para nossa burguesia só cabe o papel de agir como se fosse aquilo que busca ser, e reproduzir tudo aquilo que vem do salão oval da Casa Branca.

Nossa Casa Grande e sua imprensa abandonaram qualquer coisa semelhante ao jornalismo, e tratam do conflito de uma forma apaixonada, reproduzindo o que é ditado pelo imperialismo norte americano. Assumiu para si o discurso de valores como sacrifício, honra, civilização, democracia, e coloca eles ao lado da Ucrânia contra a nefasta Rússia de Putin que ataca o Ocidente, sua moral cristã e sua branquitude.

A irmandade ocidentalista forjada na branquitude e eurocentrismo em seu ato de desespero e egocentrismo, acaba por gerar um histerismo coletivo. Afinal, como nossa amada civilização ocidental pode estar sendo atacada? Como ousam atingir a Europa? Nós não merecemos as guerras, isso é coisa de árabes e negros.

Esse histerismo gera ações que misturam o cômico, pois elas não têm concretude nenhuma no conflito, com o trágico, pois estas ações são micro e simbólicas violências que geram um sentimento social de repúdio a tudo que remeta a este Outro, no caso o russo.

Vimos desde censura a filmes russos nos festivais de cinema, como em Cannes; passando pela demissão de músicos russos de orquestras; chegando ao cancelamento do curso sobre Dostoievski na Faculdade de Milão; até a retirada do strogonoff do cardápio de um restaurante em São Paulo. A hipocrisia ocidental é tamanha que a Fifa, a maior entidade que organiza o futebol globalmente e conhecida por seus gigantescos escândalos de corrupção, resolveu proibir a Rússia de jogar a copa do mundo. Copa do Mundo esta, realizada no Catar sob inúmeras denúncias de trabalho escravo e centenas de mortes na construção dos estádios.

Essa indignação seletiva tem haver com o eurocentrismo e o pacto civilizacional do Ocidente. Eles ergueram um mundo à sua imagem e semelhança, e este mundo capitalista em crise, com imperialismo até então hegemônico agora em decadência, não pode aceitar ser desafiado por algo diferente. O Ocidente que organizou o mundo tal como conhecemos desde a expansão marítima europeia está em uma crise que se aprofunda desde as guerras de libertação nacional no século passado. E diante dos conflitos na Ucrânia ele assume sua face hipócrita e também sua falência moral.

A Europa deixa nítido quando se cala diante de suas ações, mas esbraveja diante de Moscou pela voz de seus políticos e imprensa. A Europa escancara quando abre suas portas para os refugiados ucranianos, mas levanta muros para árabes e negros. A Europa é sincera sobre o mundo que criou quando diz que bombas não são para cair sobre as cabeças loiras dos europeus, mas sim ter como alvo as peles melaninadas.

A Europa afirma em sua hipocrisia, que o problema não é a guerra, mas sim, a guerra em seu solo

A Europa afirma em sua hipocrisia, que o problema não é a guerra, mas sim, a guerra em seu solo, contra seus cidadãos de pele clara e olhos azuis. Por isso e tantas outras coisas que a Europa não tem moral para dizer nada. 

A Europa e sua civilização que saqueou continentes, dizimou cidades, torturou, estuprou, e assassinou povo inteiros, e mudou inclusive a rota de tubarões no Oceano Atlântico, já que estes passaram a se alimentar durante séculos dos corpos negros que eram lançados fora dos navios negreiros, esta mesmo Europa que colonizou o mundo diante do fogo e ferro, em sua hipocrisia não cabe o papel de dizer nada. E tudo aquilo que disser e segue dizendo não passa de mentira.

Por isso o papel de atuar para que o conflito seja solucionado a partir das negociações diplomáticas cabe, acima de tudo, aos países de Terceiro Mundo. As forças de esquerda que negam o eurocentrismo também têm imensa responsabilidade. Devem ser os principais defensores pela busca da paz na região. Mas não uma paz abstrata. Mas sim uma paz concreta, que seja construída através de garantias de seguranças tanto para o Estado russo, com o fim da expansão militar da OTAN para o leste, quanto para o Estado ucraniano, com a retirada de tropas russas do país. Assim como, através da reversão das leis ultranacionalistas na Ucrânia e com o fim da guerra civil no país, retomando os acordos de Minsk.

Aqueles que dentro da esquerda reforçam as ilusões e leituras sobre o conflito através do pacto eurocêntrico e ocidentalista remetem a atualização da famosa frase de Aimé Césaire.

A Europa é indefensável, e parte considerável da esquerda ocidental também.

 

*Este texto não representa, necessariamente, a posição editorial do Esquerda Online. Somos um portal aberto às polêmicas da esquerda socialista.