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BRASIL

Março feminista: enfrentar o genocídio, a violência política, a fome e a pobreza menstrual

Juliana Bimbi*, de Porto Alegre, RS

“Ou a liberdade é indivisível ou não é nada além da repetição de slogans e avanços temporários, míopes e passageiros, para poucos. 

Ou a liberdade é indivisível e trabalhamos em conjunto por ela ou você estará em busca de seus próprios interesses e eu dos meus” (June Jordan, 1992).

O mês de março se aproxima e com isso, historicamente, as organizações políticas e movimentos sociais se organizam para marcar o dia 8, dia internacional de luta das mulheres. Além dos atos de rua, esse mês é um período excepcionalmente mais favorável ao debate de gênero na sociedade, principalmente os espaços do ativismo. 

38% das mulheres com 16 anos ou mais se considera feminista, enquanto 56% rejeitam o termo e apenas 6% se coloca neutra diante do assunto.

Feminismo e anti-feminismo têm sido dois polos no debate público no país desde, pelo menos, 2015. O suposto combate à “ideologia de gênero” foi um dos pilares ideológicos do processo político que culminou no fim dos governos petistas a inversão da correlação de forças no país, hoje mais desfavorável aos explorados e oprimidos. Do outro lado da trincheira, entretanto, o protagonismo das mulheres também foi uma força de contraposição importante ao avanço da extrema-direita.

Uma pesquisa do Datafolha encomendada em 2019, intitulada “Feminismo e violência contra a mulher”, nos traz dados importantes sobre o peso desse tema na sociedade brasileira. Segundo ela, 38% das mulheres com 16 anos ou mais se considera feminista, enquanto 56% rejeitam o termo e apenas 6% se coloca neutra diante do assunto. Entre as mulheres de cor preta, 47% são feministas, índice maior do que entre as brancas. Fato dado é que estamos falando de uma ideia amplamente conhecida pela população, seja entre os favoráveis ou contrários. Para aqueles que se postulam como lideranças políticas, esse tema hoje é incontornável.  

Apesar da influência que a cultura tem tradicionalmente sobre as relações de gênero, o nosso desafio não perpassa apenas a dimensão da ideologia. Gênero, assim como raça e classe, é uma relação social que produz um lugar específico para as mulheres no capitalismo em todo o mundo. Historicamente, recaiu sobre essas o trabalho de reprodução da vida – essa função que o gênero desempenha faz com que as mulheres sejam as mais afetadas pela crise social, climática, econômica e política. 8,5 milhões de mulheres ficaram desempregadas no terceiro trimestre de 2020. Com o fechamento das escolas, acumularam mais tarefas domésticas e responsabilidades sobre a educação das crianças. São as que mais desenvolveram transtornos psicológicos como ansiedade, depressão e estresse nesse período. Além dos reflexos no lar, tiveram também responsabilidades públicas com a sociedade, visto que as mulheres também são maioria nos serviços tidos como essenciais.

Marielle Franco e a interseccionalidade como ferramenta de análise da democracia brasileira

Outro dos termos que tem se popularizado, principalmente nas mídias digitais, é o conceito de “interseccionalidade”, que frequentemente é vista como título de uma “vertente” do feminismo. Apesar dessa visão, algumas feministas negras têm caracterizado a interseccionalidade como um conceito ou uma ferramenta de análise – forma que aqui iremos utilizá-la – contrapondo a leitura de que essa inauguraria uma nova corrente do pensamento feminista. 

A interseccionalidade como ferramenta de análise pode ser útil para entendermos a realidade brasileira de hoje. Em resumo, essa nos ajuda a compreender as conexões entre raça, classe e gênero, não como uma soma, e sim uma relação que produz novas formas de vivenciar a opressão e a exploração em um determinado contexto. A partir da intersecção foi que algumas feministas construíram a ideia de que a experiência coletiva de mulheres negras se tratava de uma opressão própria para com mulheres racializadas, e não apenas a assimilação do machismo com o racismo. No Brasil, um país de origem colonial e com 54% de população autodeclarada negra, com certeza essa ferramenta não é dispensável. 

A partir dessa visão, também queremos visualizar o março feminista para além do dia 8, dia histórico e importantíssimo para a luta das mulheres. Desde 2018, março também é um mês de luto e luta por justiça para Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro brutalmente assassinada com envolvimento das milícias. A morte de Marielle levanta dois debates importantes para o movimento feminista: o genocídio da juventude negra e a violência política. 

Nos últimos 10 anos, cresceu em 11,5% os assassinatos de pessoas pretas ou pardas. Quando esse dado se estende para mulheres negras, vemos que elas representam 68% das mulheres assassinadas no Brasil. A cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil, em especial homens negros. Apesar disso, foi a luta contra o genocídio que produziu parte importante do movimento de mulheres negras, como as Mães de Maio em São Paulo, que é só mais um exemplo de centenas de mulheres que hoje lutam por justiça por seus filhos no Brasil. Além disso, o impacto da guerra às drogas para essas mulheres tem crescido cada vez mais: a população feminina encarcerada cresceu quase 600% de 200 a 2014, e mesmo no caso do encarceramento masculino, majoritariamente negro, são as mulheres que se responsabilizam pelo trabalho de reprodução desses homens, visitando-os, levando roupas, alimentos e itens de higiene, por exemplo. 

 A violência política, por outro lado, tem um alvo bem definido: as mulheres negras, em especial as transexuais. O instituto Marielle Franco caracteriza o episódio do assassinato da vereadora, há quase 4 anos atrás, como um “feminicídio político”. Outras figuras públicas da esquerda brasileira também foram alvos de violência e ameaças durante o exercício de seus mandatos, como a deputada estadual Isa Penna e o vereador Matheus Gomes, mostrando como a violência de gênero e raça tem mecanismos que dialogam de forma desigual, mas também agem de maneira conjunta. O assassinato de Marielle foi um símbolo que impulsionou como resistência um movimento de mulheres negras empenhadas em ocupar a política. Apesar de progressivo, devemos ter em mente que o objetivo de eleger mais mulheres e negros e negras para os espaços de decisão nos coloca uma tarefa que é o enfrentamento à violência política, fundamental para a existência de uma democracia plena no Brasil. Se a violência política é interseccional, a luta pela democracia plena no Brasil hoje também é.   

Combate a fome e a pobreza menstrual em primeira ordem

Em meio a crise econômica e sanitária que vivemos, a fome foi um problema que evidenciou a desigualdade social e racial no Brasil. Hoje, quase 60% da população sofre com insegurança alimentar. O que devemos frisar, aqui é que a fome tem um rosto: o rosto das mulheres mães e chefes de família. Ao contrário do ideal familiar de Bolsonaro onde o homem seria o “provedor” e pilar de sustentação do lar, são as mulheres negras brasileiras que têm a responsabilidade sobre a alimentação da família, principalmente em um país com 11 milhões de mães solteiras. Mulheres negras com filhos que estão empregadas representam um número menor que 50%. Na região nordeste, 57,7% dos domicílios que sofrem com a fome são chefiados por mulheres. Mais uma vez, vemos aqui como a condição racializada coloca essa população em uma situação de vulnerabilidade social, assim como sua posição de gênero coloca sobre seus ombros a responsabilidade com a reprodução de outros seres humanos. O enfrentamento ao desemprego e a carestia da vida é uma luta de gênero e raça. 

estima-se que uma brasileira gaste entre 3 e 8 mil reais ao longo de sua vida menstrual com absorventes.

A pobreza menstrual, que não atinge só as mulheres, mas também os homens trans, necessita de abordagem por parte da esquerda e daqueles que têm protagonizado campanhas de solidariedade. Segundo o estudo “livre pra menstruar”, estima-se que uma brasileira gaste entre 3 e 8 mil reais ao longo de sua vida menstrual com absorventes. Levando em consideração a renda média da população, os mais pobres no Brasil precisariam trabalhar quatro anos para custear apenas essa necessidade de higiene. Além dos absorventes, esse tema também inclui o saneamento básico – no Brasil, 1,5 milhão de mulheres vivem sem banheiro em suas casas. Assim como a fome, a pobreza menstrual se agravou durante a pandemia, e é um tema que evidencia como a experiência de classe ganha novos contornos quando se é mulher, e também, negra, se formos considerar que a pobreza, no Brasil e no mundo, é racializada. Em 2021, o presidente Jair Bolsonaro vetou a distribuição de absorventes para estudantes de baixa renda e pessoas em situação de rua, o que gerou indignação por parte dos movimentos sociais, mas ainda é insuficiente. É preciso ampliar a rede de solidariedade ao redor do país para dar visibilidade a esse tema e buscar soluções coletivas.

Em memória de Kathlen Romeu, por justiça reprodutiva

mulheres negras grávidas morreram 78% mais do que as brancas

A descriminalização do aborto é pauta mundial, principalmente na america latina, tendo sido concretizada na Argentina, México, Cuba, Uruguai, Guiana e agora na Colômbia. No Brasil, é uma reivindicação histórica do movimento feminista organizado, porém, nunca vimos aqui despertar uma luta de massas. É papel do movimento feminista refletir sobre as condições necessárias para construir uma luta justa por justiça reprodutiva no Brasil. Deve ser direito das mulheres decidir sobre quando, onde e se desejam ter filhos, mas quais são as condições de uma livre escolha no Brasil de 2022? 

Ano passado presenciamos o assassinato de Kathlen Romeu pelas mãos da PM do Rio de Janeiro, mulher negra, designer de interiores, com 24 anos carregava seu primeiro filho. Essa é uma das diversas formas, a mais direta, com que o estado brasileiro cerceia o direito à maternidade quando se adiciona raça ao debate. A própria pandemia nos traz uma evidência: mulheres negras grávidas morreram 78% mais do que as brancas. A luta por justiça reprodutiva é uma luta por justiça de gênero, racial, econômica e social – devemos lutar pela legalização do aborto, porém tendo em vista que a possibilidade de criar filhos é o pressuposto para a liberdade de escolher. 

Derrubar bolsonaro sob a perspectiva do feminismo antirracista e anticapitalista 

Em todo o Brasil, as mobilizações do mês de março devem levantar a palavra de ordem do Fora Bolsonaro. Bolsonaro é o principal inimigo das mulheres, da população negra e das LGBTs, tanto pela corrente ideológica que representa, quanto pelas medidas sociais que seu governo defende. O protagonismo de um feminismo verdadeiramente antirracista e anticapitalista é essencial para que a alternativa a esse governo seja construída de forma que os problemas citados nesse texto sejam abordados de maneira coerente e radical. Seja na luta ou nas eleições, queremos que o movimento feminista seja sujeito social ativo no processo de reconstrução do país e derrota da extrema direita, protagonizando o debate do programa que queremos.

Divulgação/EBC

Referências 
https://www.brasildefato.com.br/2021/08/26/artigo-no-brasil-a-fome-tem-rosto-de-mulher-nordestinas-maes-pretas-e-pardas 
https://esquerdaonline.com.br/2019/03/08/tithi-bhattacharya-o-que-e-a-teoria-da-reproducao-social/
https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2021/Em-2021-o-grito-das-mulheres-%C3%A9-contra-a-fome
https://www.geledes.org.br/o-impacto-da-guerra-as-drogas-na-vida-das-mulheres-negras/
https://www.brasildefato.com.br/2016/05/13/surgido-da-dor-maes-de-maio-se-tornam-referencia-no-combate-a-violencia-do-estado/
https://www.geledes.org.br/racismo-estrutural-leva-a-maior-mortalidade-materna-entre-mulheres-negras-aponta-pesquisadora/ 

*Juliana Bimbi é militante da Resistência/PSOL