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OPRESSÕES

Uma agenda marxista para a interseccionalidade

Por Sharon Smith, Dirigente da Internacional Socialist Organization (ISO/EUA)

Publicado no Brasil no Blog Junho. Tradução: Fernando Pureza. Agradecemos ao Blog Junho pela autorização de divulgação da tradução.

Publicado originalmente no Socialist Worker, diário digital impulsionado pela ISO

Muitos militantes que ouviram o termo “interseccionalidade” sendo debatido dentro da esquerda tem considerado ele difícil de definir – e por uma razão bastante compreensível: diferentes pessoas explicam ele de forma diferente e, em linhas gerais, em posições opostas.

Por esse motivo – além do fato de que se trata de uma palavra de oito sílabas – interseccionalidade pode parecer ser uma abstração com apenas uma vaga relação para com a realidade material. Seria um erro, contudo, descartar completamente esse conceito.

Há duas formas bastante distintas de interpretar a interseccionalidade: uma, desenvolvida pelas feministas negras, e a outra a partir da ala “pós-estruturalista” do pós-modernismo. Eu quero tentar deixar as diferenças claras e explica por que a tradição do feminismo negro avança em direção ao projeto de construir um movimento unificado para lutar contra todas as formas de opressão, algo que é central a um projeto socialista – enquanto, por sua vez, não é o foco do pós-estruturalismo.

Um conceito e não uma teoria

Quero começar deixando algumas coisas esclarecidas.

Primeiramente, interseccionalidade é um conceito e não uma teoria. É uma descrição de como diferentes formas de opressão – racismo, sexismo, homofobia e todas outras formas – interagem umas com as outras e se fundem numa experiência única.

Dessa forma, mulheres negras, por exemplo, não são “duplamente oprimidas” – ou seja, oprimidas por experiências separadas de racismo, que também afeta homens negros, combinada com o sexismo, que afeta também as mulheres brancas. Na realidade, o racismo afeta a forma pela qual as mulheres negras são oprimidas enquanto mulheres e enquanto pessoas negras.

A interseccionalidade é outra forma de descrever a “simultaneidade da opressão”, ou “sobreposição das opressões”, ou “encadeamento das opressões”, ou quaisquer outros termos que as feministas negras utilizem para descrever a intersecção de raça, classe e gênero.

Como a feminista negra e estudiosa Barbara Smith argumentou em seu livro de 1983, Home Girls: A Black Feminist Anthology: “O conceito de simultaneidade da opressão é ainda o eixo central de uma compreensão do feminismo negro sobre a realidade política e, segundo o que acredito, é uma das maiores e mais significativas contribuições ideológicas do pensamento feminista negro”.

Porque a interseccionalidade é um conceito (uma descrição da experiência de múltiplas opressões, sem contudo explicar suas causas) ao invés de uma teoria (que, por sua vez, busca explicar as origens que causam tais opressões), ela pode ser aplicada a uma série de diferentes teorias acerca da opressão – teorias informadas pelo marxismo, ou pelo pós-modernismo, mas também pelo separatismo, entre outras.

Levando em consideração que o marxismo e o pós-modernismo apresentam-se geralmente de forma antitética, os usos específicos do conceito de interseccionalidade podem ser muito diferentes e de lados opostos.

O marxismo explica todas as formas de opressão como enraizadas numa sociedade de classes, enquanto as teorias oriundas do pós-modernismo rejeitam essa noção como “essencialista” e “reducionista”. Por conta disso, um grande número de marxistas tem sido desdenhoso e até mesmo hostil ao conceito de “interseccionalidade”, sem sequer distinguir entre as diferentes bases teóricas que fundamentam o conceito: o feminismo negro ou o pós-modernismo/pós-estruturalismo.

A tradição do feminismo negro

É importante compreender que o conceito de interseccionalidade foi inicialmente desenvolvido pelo feminismo negro e não pelos teóricos pós-modernistas.

O feminismo negro possui uma longa e complexa história, baseada no reconhecimento de que o sistema jurídico de escravidão e, depois dele, o racismo moderno e a segregação racial, causaram inúmeras formas de sofrimento às mulheres negras que nunca foram experienciadas pelas mulheres brancas.

Em 1851, Sojourner Truth proferiu seu famoso discurso “Não sou eu uma mulher?” (Ain’t I a Woman?), na Convenção das Mulheres em Akron, Ohio. Esse discurso foi direcionado às feministas brancas de classe média para mostrar que a opressão que Truth sofrera como ex-escrava negra não tinha nada em comum com a opressão experienciada pelas mulheres brancas de classe média.

Truth contratou sua própria opressão enquanto uma mulher negra, sofrendo a brutalidade física e a degradação, as intermitentes horas de trabalho forçado e sem remuneração, ao ato de dar a luz a filhos para depois ter que vê-los subjugados pela escravidão.

Por mais de um século, antes jurista e feminista negra Kimberlé Williams Crenshaw ter cunhado o termo interseccionalidade, em 1989, o mesmo conceito foi usualmente descrito como “encadeamento de opressões”, “opressões simultâneas” e outros termos semelhantes.

O feminismo negro também contém uma forte ênfase nas diferenças de classe que existem entre as mulheres, pois a vasta maioria da população negra nos Estados Unidos sempre foi parte da classe trabalhadora e desproporcionalmente teve que viver na miséria devido as consequências econômicas do racismo.

O ensaio escrito por Crenshaw em 1989, “Demarginalizing the Intersection of Race and Sex: A Black Feminist Critique of Antidiscrimination Doctrine, Feminist Theory and Antiracist Politics”, que introduziu o termo interseccionalidade, homenageia o discurso de Sojourner Truth.

“Quando Sojourner Truth subiu ao palanque para falar”, escreve Crenshaw, “muitas mulheres brancas exigiam que ela fosse silenciada, temendo que ela iria distrair a atenção da luta pelo sufrágio feminino voltando-se para a [a abolição da escravidão]”. Crenshaw então pergunta, olhando para o context modern: “Quando a teoria e a política feminista afirmam refletir acerca das experiências e aspirações das mulheres e não incluem ou sequer falam às mulheres negras, essas mulheres negras devem se perguntar ‘não sou eu uma mulher?’”

O feminismo negro de esquerda

É também importante reconhecer que o feminismo negro sempre conteve uma análise de esquerda, incluindo os diálogos travados entre as feministas negras e o partido comunista em meados do século XX. Líderes do partido comunista como Claudia Jones e Angela Davis, por exemplo, desenvolveram o conceito de opressão da mulher negra como algo que encadeava as experiências de raça, gênero e classe.

Em 1949, Claudia Jones escreveu um inovador ensaio chamado “Um fim à negligência aos problemas da mulher negra” (An End to the Neglect of the Problems of the Negro Woman) no qual ela argumentara que “as mulheres negras – enquanto trabalhadoras, enquanto negras e enquanto mulheres – são o estrato mais oprimido da população”.

Nesse ensaio, Jones enfatizara a violência sexual como um tema racial para as mulheres negras:

“Nada dramatiza tão adequadamente o status de oprimida das mulheres negras como o caso de Rosa Lee Ingram, viúva e mãe de quatorze filhos – dois deles já falecidos – que enfrenta a prisão na penitenciária da Georgia pelo “crime” de defender-se dos avanços indecentes de um “supremacista branco”… Esse caso expõe o hipócrita álibi dos linchadores de homens negros que historicamente se escondem sobre as saias das mulheres brancas, tentando justificar seus crimes com noções de ‘cavalheirismo’ e de ‘proteção das donzelas brancas’”.

Esse tema – que mostra que o estupro não é simplesmente um problema feminino, mas também um problema racial na sociedade americana – foi posteriormente analisado e expandido por Angela Davis, cujo duradouro comprometimento com a luta contra todas as formas de exploração e opressão, incluindo o sistema de injustiça racial, é bastante conhecida.

Em 1981, Davis escreveu em Mulheres, raça e classe que o estupro “tinha um componente racial tóxico nos Estados Unidos desde os tempos de escravidão, sendo uma arma fundamental para a manutenção do sistema de supremacia branca”. Ela descreve o estupro como “uma arma de dominação, uma arma de repressão, cujo principal objetivo era extinguir a vontade de resistir da mulher escrava e, no processo, desmoralizar os seus homens”.

O estupro institucionalizado das mulheres negras sobreviveu à abolição da escravidão e ganhou sua forma moderna, de acordo com Davis, no “estupro coletivo, perpetrado pela Ku Klux Klan e outras organizações terroristas do período pós-Guerra Civil, tornando-se uma evidente arma política para sabotar o movimento pela igualdade negra”.

A caricatura do predador sexual homem e negro e seu intermitente desejo por estuprar jovens e virtuosas beldades sulistas tinha um “companheiro inseparável”, no que Davis escreve: “a imagem da mulher negra como cronicamente promíscua. Visa como ‘mulher fácil’ e vadia, a mulher negra e seus apelos contra o estupro acabavam necessariamente sendo deslegitimados”.

Ainda assim, durante a década de 1970, muitas feministas brancas – sendo que talvez a mais famosa tenha sido Susan Brownmiller, em seu livro Against Our Will: Men, Women and Rape – descreveram o estupro como uma luta exclusivamente entre homens e mulheres.

Essa concepção política levou Brownmiller a chegar a conclusões abertamente racistas em seus relatos acerca do linchamento de Emmett Till, em 1955 – um jovem de 14 anos visitando sua família no Mississipi, durante a Jim Crow, que acabou sendo raptado, torturado e assassinado pelo “crime” de supostamente ter assobiado para uma mulher branca casada.

Apesar do linchamento de Till, Brownmiller descrever ele e o seu assassino como se ambos compartilhassem o poder sobre uma “mulher branca” – usando estereótipos que Davis posteriormente chamou de “ressurreição do velho mito racista do negro estuprador”.

Há muitas outras formas pelas quais a experiência de opressão feminina se diferente entre as mulheres de diferentes raças e classes.

A posição dominante dentro do movimento feminista nos anos 1960 e 1970 exigia a legalização do aborto com base no direito das mulheres em terminarem com gravidezes não desejadas. É evidente que esse é um desejo crucial para todas as mulheres – um direito que sem ele, as mulheres nunca poderão ter qualquer esperança em igualdade para com os homens.

Ao mesmo tempo, contudo, essa posição dominante no movimento concentrou-se quase que exclusivamente no tema do aborto, quando a história dos direitos reprodutivos tornava o problema ainda mais complicado para mulheres negras e outras mulheres de cor – que historicamente foram alvo de abusos racistas esterilizadores.

O Coletivo do Rio Combahee

A lição crucial contida nesses exemplos é que não existe algo tão simples quanto “problemas femininos” num sistema capitalista fundado a partir da escravidão de africanos e no qual o racismo permanece embutido em sua fundação e em todas suas instituições. Praticamente quase todo dito “problema feminino” possui um componente racial.

Ao longo dos anos 1960 e 1970, havia um forte movimento entre a esquerda feminista negra – melhor ilustrado pelo Coletivo do Rio Combahee, um grupo de feministas negras e lésbicas sediado em Boston. Elas identificavam-se como “marxistas”, como pode ser visto em sua declaração de princípios definitiva de 1977:

“Nós somos socialistas porque nós acreditamos que o trabalho deve ser organizado para o benefício coletivo daqueles que fazem o trabalho e criam os produtos, e não para o lucro dos patrões. Os recursos materiais devem ser igualmente distribuídos entre aqueles que criam esses recursos.

Todavia, nós não estamos convencidas de que uma revolução socialista que não seja uma revolução feminista e anti-racista irá garantir nossa libertação. Ainda que tenhamos um acordo essencial com a teoria de Marx conforme ela foi pensada para as relações econômicas específicas que ele analisara, nós sabemos que sua análise deve ser ampliada para que consigamos entender a nossa situação econômica específica enquanto mulheres negras”.

Esse é um ponto de vista bastante razoável que parece ser até um senso comum para a maior parte das pessoas na esquerda hoje em dia. O Coletivo do Rio Combahee não defendia o separatismo, como afirmavam erroneamente alguns marxistas.

Barbara Smith, uma das fundadoras do Coletivo, defendeu em uma entrevista sobre o livro de 1984, This Bridge Called My Back, a necessidade de uma estratégia para a “construção de coalizões” ao invés de pregar o “separatismo racial”. Segundo ela, “qualquer tipo de separatismo é uma rua sem saída… Não há nenhuma maneira de um grupo oprimido arrebentar contra o sistema por si só. Formar coalizões baseadas em princípios sobre assuntos específicos é muito importante”.

É importante desafiar a ideia que muitos críticos têm – entre eles, alguns marxistas – de que o feminismo negro e seu conceito de interseccionalidade trata apenas da experiência do racismo, do sexismo e de outras formas de opressão em um âmbito individual.

A tradição do feminismo negro sempre foi de relacionar as lutas coletivas contra a opressão – contra a escravidão, a segregação, o racismo, a brutalidade policial, a pobreza, a esterilização forçada, o estupro sistemático contra as mulheres negras e o linchamento sistemático contra os homens negros.

Talvez a lição mais importante que possamos aprender com o Coletivo do Rio Combahee é que quando nós construirmos o próximo movimento de massas pela libertação das mulheres – o que esperamos que seja breve – ele deve ser baseado não nas necessidades dos menos oprimidos, mas sim nas necessidades daqueles que são mais oprimidos – pois é isso que está no âmago da questão da solidariedade.

Mas a interseccionalidade é um conceito para entender a opressão e não a exploração. Muitas feministas negras reconhecem as raízes sistêmicas do racismo e do sexismo, mas colocam menos ênfase do que os marxistas nas conexões entre o sistema de exploração e opressões.

O marxismo é necessário porque ele garante uma visão de mundo capaz de compreender as relações entre opressão e exploração e também porque ele identifica a agência capaz de criar as condições sociais e materiais que tornarão possível acabar tanto com a opressão quanto com a exploração: e essa encontra-se na classe trabalhadora.

Isso porque os trabalhadores não apenas têm o poder de desligar o sistema, mas também a capacidade de substituí-lo por uma sociedade socialista, baseada na propriedade coletiva dos meios de produção. Ainda que outros grupos na sociedade sofram opressão, apenas a classe trabalhadora possui esse poder coletivo.

Portanto, o conceito de interseccionalidade precisa da teoria marxista para realizar o tipo de movimento unificado capaz de pôr fim a todas as formas de opressão. Ao mesmo tempo, o marxismo só tem a ganhar ao integrar o feminismo negro de esquerda dentro de sua política e de suas práticas.

A rejeição pós-moderna da “totalidade”

Até agora, o que tentei demonstrar é como o conceito de interseccionalidade, ou encadeamento de opressões, esteve ancorado a uma tradição do feminismo negro por muito tempo – e como esse conceito também é compatível com o marxismo.

Agora, contudo, quero voltar-me ao pós-modernismo e contrastar a interpretação pós-modernista de interseccionalidade com o longevo conceito formulado pelo feminismo negro.

Para esclarecer: não há dúvidas de que o pós-modernismo avançou na luta contra todas as formas de opressão, inclusive as opressões experienciadas por pessoas trans, por aqueles que sofrem a partir de deficiências ou que enfrentam discriminações baseadas na idade, entre várias outras formas de opressão que foram negligenciadas antes das teorias pós-modernistas começarem a florescer nas décadas de 1980 e 1990.

O crítico literário britânico, Terry Eagleton, descreveu “a principal e mais duradoura conquista” do pós-modernismo como “o fato de que ele ajudou a colocar as questões sobre sexualidade, gênero e etnicidade na agenda política de formas inimagináveis, de tal forma que é impossível conceber que eles sejam apagados hoje sem que isso gere uma estrondosa luta”.

Ao mesmo tempo, contudo, o pós-modernismo emergiu como uma rejeição total da generalização política, de categorias como estruturas sociais, realidades materiais, todas elas agora referidas como “verdades”, “totalidades” e “universalidades” – tudo isso em nome de um comprometimento como “anti-essencialismo”. (Convém destacar que tal rejeição das generalizações políticas é, ela mesma, uma generalização política – o que é uma contradição inerente no pensamento pós-modernista!)

Os teóricos pós-modernistas colocam exagerada ênfase no caráter subjetivo, parcial e limitado das experiências individuais das pessoas, rejeitando a estratégia da luta coletiva contra instituições de opressão e exploração para, ao invés disso, focar nas relações individuais e culturais como o centro das lutas.

Não é coincidência que o pós-modernismo despontou no mundo acadêmico após o desfecho do declínio dos movimentos sociais e classistas dos anos 1960 e 1970 – e, ao mesmo tempo, durante a ascensão do massacre neoliberal perpetuado pelas elites.

Alguns estudiosos envolvidos na ascendência do pós-modernismo eram veteranos dos radicais dos anos 1960 que perderam sua crença na possibilidade de revolução. A eles se somaram uma nova geração de radicais jovens demais para ter vivenciado o tumulto dos anos 1960, mas que foram influenciados pelo pessimismo da época. Nesse contexto, o marxismo foi amplamente depreciado como “reducionista” e “essencialista” por acadêmicos que intitulavam-se pós-modernistas, pós-estruturalistas e pós-marxistas.

Dentro da categoria mais ampla de pós-modernismo, o pós-marxismo proveu uma nova concepção teórica no início dos anos 1980. Os dois principais teóricos pós-marxistas, Ernesto Laclau e Chantal Mouffé, publicaram o livro Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical, em 1985.

Laclau e Mouffé explicam sua teoria como uma negação da “totalidade” socialista: “Não há, por exemplo, ligações necessárias entre o anti-sexismo e o anti-capitalismo e uma unidade entre eles só pode ser resultado de uma articulação hegemônica. Disso se compreende que só é possível construir essa articulação com base em lutas separadas… E isso exige a autonomização das esferas de lutas”.

Esse é um argumento a favor da separação das lutas. Tais lutas atomizadas devem, portanto, ser conduzidas inteiramente dentro daquilo que os marxistas descrevem como superestrutura da sociedade, sem qualquer relação com a sua base econômica.

Além disso, o conceito de Laclau e Mouffé de “autonomização das esferas de luta” não trata apenas da ideia de que cada luta é limitada à combater apenas uma forma particular de subordinação dentro de um domínio social particular, mas também que ela não precisa envolver mais do que outra pessoa além de você mesmo. Eles afirmaram isso explicitamente: “Muitas das formas de resistência se manifestam não na forma de lutas coletivas, mas sim através de um individualismo cada vez mais belicista”.

Tais passagens mostram claramente como a ênfase afastara da solidariedade entre os movimentos, indicando uma mudança da luta coletiva para a luta individual e interpessoal. Dessa forma, os relacionamentos interpessoais tornaram-se os elementos chave da luta, baseada nas percepções subjetivas de quais indivíduos encontram-se em posição de “dominação” e quais estão em posição de “subordinação” em diferentes situações particulares.

Em 1985, o teórico queer Jeffrey Escoffier sintetizou: “A política de identidade deve também ser uma política da diferença… A política da diferença sempre afirma-se sendo limitada e parcial”.

Os pós-estruturalistas apropriaram-se de termos tais como “política de identidade” e “diferença” originados nos anos 1970 no feminismo negro.

Quando o Coletivo do Rio Combahee referiu-se a necessidade de uma política de identidade, por exemplo, elas estavam descrevendo a identidade de grupo das mulheres negras; quando elas enfatizaram a importância de reconhecer as “diferenças” entre as mulheres, elas estavam se referindo à invisibilidade coletiva das mulheres negras dentro do feminismo predominantemente branco e de classe média da época.

Mas há um mundo de diferença entre identidade social – identificada como parte de um grupo social – e identidade individual. A concepção pós-estrutural de “identidade” é baseada nos indivíduos, enquanto a “diferença”, da mesma forma, pode referir-se a qualquer característica que separe um indivíduo dos outros, seja ela relacionada à opressão ou simplesmente não-normativa.

Convém perceber que a feminista negra, Kimberlé Williams Crenshaw, escrevendo na década de 1990, tomou para si o problema da “versão anti-essencialista, incorporando aquilo que poderia ser chamada de tese da construção social vulgar, [na qual] todas as categorias são socialmente construídas de tal forma que não existiria algo como ‘negros’ ou ‘mulheres’ e, portanto, não faria nenhum sentido continuar reproduzindo essas categorias e organizando-se a partir delas”.

Em contraste a essa posição, ela argumentou que “uma resposta inicial a essas questões exige que nós primeiros reconheçamos que a identidade organizada dos grupos em que nos encontramos são, de fato, coalizões, ou ao menos são coalizões em potencial, esperando o momento para serem formadas”.

Ela então conclui que “nesse ponto da história, um caso convincente a ser feito para uma resistência estratégica mais crítica ser empregada pelos grupos desempoderados é justamente ocupar e defender a política a partir de um lugar social, ao invés de simplesmente deixar esse lugar vago e destruí-lo”.

Identidade “Individual” versus Identidade “Social”

É assim que o conceito de interseccionalidade, inicialmente desenvolvido por uma tradição do feminismo negro, emergiu mais recentemente no contexto do pós-modernismo.

Ainda que o feminismo negro e algumas das correntes da teoria pós-modernista compartilhem algumas convicções e linguagem comuns, elas são eclipsadas pelas diferenças principais entre as duas abordagens distintas no combate à opressão. Logo, o conceito de interseccionalidade possui duas fundações políticas diferentes – uma informada principalmente pelo feminismo negro e a outra pelo pós-modernismo.

A mais recente evolução da abordagem pós-estruturalista no âmbito da política de identidade e interseccionalidade, que vem tendo uma forte influência na atual geração de ativistas, coloca uma enorme ênfase na mudança dos comportamentos individuais como uma das formas mais efetivas no combate à opressão.

Isso gerou a ideia de que a ação individual na “denúncia” de atos interpessoais de opressão como um ato político crucial. De forma mais geral, essa é a interseccionalidade em termos pós-modernos, ainda que muitos sequer saibam o que é pós-modernismo.

Como argumentou recentemente o intellectual marxista, Kevin Anderson:

“No final do século XX, um discurso teórico de interseccionalidade tornou-se praticamente hegemônico em muitos setores da vida intelectual radical. Nesse discurso, que volta-se para os problemas sociais e para os movimentos em torno de raça, gênero, classe, sexualidade e outras formas de opressão, geralmente se diz que devemos evitar qualquer tipo de reducionismo ou essencialismo de classe, nos quais as categorias de gênero e raça sejam apagadas pela categoria de classe. Em alguns casos, diz-se que os movimentos em torno de raça, gênero, sexualidade ou classe podem se interseccionar uns com os outros, mas não podem coexistir facilmente em um único movimento contra as estruturas de poder e o sistema capitalista que os marxistas insistem em atacar. Dessa forma, a verdadeira interseccionalidade desses movimentos sociais – ao invés de suas ações em separado – parecem bastante limitadas, tanto como realidade quanto como possibilidade. Atestar o contrário é incorrer no risco de cair no abismo do reducionismo ou do essencialismo” .

Eu concordo com Anderson nesse ponto, mas creio que é preciso deixar claro que ele está criticando a abordagem pós-moderna de interseccionalidade e não o feminismo negro.

Eu acredito que é um erro dos marxistas perder de vista o valor da tradição do feminismo negro – incluindo aqui o conceito de interseccionalidade, tanto na contribuição para o combate à opressão das mulheres de cor e trabalhadoras, assim como nas formas pelas quais ele pode ajudar a avançar a teoria e a prática marxista.

Os marxistas apreciam as contribuições da esquerda negra nacionalista, incluindo Malcom X e Franz Fanon, assim como o socialismo dos Panteras Negras, e têm procurado incorporar aspectos de suas contribuições em suas próprias tradições políticas. Os exemplos acima garantem ampla evidência de por que nós deveríamos, da mesma forma, incorporar as lições que o feminismo negro tem a oferecer para o marxismo.

O papel da segregação racial nos Estados Unidos tem sido eficaz para prevenir o desenvolvimento de um movimento feminino unificado, capaz de reconhecer as muitas implicações das divisões raciais históricas. Nenhum movimento pode afirmar falar em nome de todas as mulheres a menos que ele fale às mulheres que também enfrentam as consequências do racismo, que empurra a esmagadora maioria das mulheres às fileiras mais baixas da classe trabalhadora e dos pobres.

Raça e classe devem ser centrais para o projeto da libertação feminina – não apenas na teoria, mas na prática – se quisermos que ele seja significativo para aquelas mulheres que são as mais oprimidas pelo sistema.