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BRASIL

Uma história do Brasil Republicano condensada em Marighella

Patrícia G. de Souza*

Marighella, em apenas quatro dias, foi o filme nacional mais visto do ano. As qualidades da produção estão sendo comentadas por pessoas que certamente sabem mais de cinema do que eu. Ainda assim, escrevo para comentar três escolhas de Wagner Moura que criam uma condensação do tempo histórico do Brasil Republicano e causam nossa identificação com a obra (há muitos relatos de sessões que terminam com gritos de “Fora Bolsonaro”). 

A primeira é iniciar com a música da Nação Zumbi “Monólogo ao pé do ouvido” de 1994. Assim, ele estabelece uma ligação entre o Brasil de 1964, representado no filme, o Brasil do início do período democrático (da música) e o Brasil em que o filme é feito e assistido.  Além disso, a letra da música vai mais longe, cita Antonio Conselheiro e Lampião. A história da República pode ser resumida nos versos: 

“Viva Zapata! Viva Sandino! Viva Zumbi!

Antônio Conselheiro!
Todos os panteras negras
Lampião, sua imagem e semelhança
Eu tenho certeza, eles também cantaram um dia.

(…)

Sobe morro, ladeira, córrego, beco, favela
A polícia atrás deles e eles no rabo dela
Acontece hoje e acontecia no sertão
Quando um bando de macaco perseguia Lampião
E o que ele falava outros hoje ainda falam
‘Eu carrego comigo: coragem, dinheiro e bala’
Em cada morro uma história diferente
Que a polícia mata gente inocente

O trecho da música em que são dados vivas aos heróis do passado é tocado no filme e faz com que uma história tão profundamente nacional ganhe uma dimensão continental. Toda a América tem o massacre de indígenas e a escravização de africanos na sua base. A história de Marighella também remete à história do México (Zapata), da Nicarágua (Sandino) e dos EUA (Panteras Negras). 

Essa união entre o que é particular e o que é coletivo também é o que torna o filme tão interessante. Os guerrilheiros são falíveis e cheios de dramas pessoais (é difícil não se irritar com o personagem de Humberto Carrão, assim como é difícil não o admirar na sua última cena). Não são santos, mas escolheram estar em uma luta coletiva, que até hoje é difícil de dizer se foi lutada da maneira mais acertada. Um filme de guerrilheiros perfeitos ou só voltados para a política, sem questões pessoais, não tocaria ninguém, pois não seria verossímil.

O filme não acaba com a morte de Marighella nem com a poética cena do menino nadando. Mas com a guerrilheira se juntando a um padre negro no interior do país para continuar a resistência.

A segunda escolha é o final. O filme não acaba com a morte de Marighella nem com a poética cena do menino nadando. Mas com a guerrilheira se juntando a um padre negro no interior do país para continuar a resistência. É histórico, por um lado, pois a guerrilha de fato se interiorizou, mas, por outro lado, é simbólico da luta do presente. Desde o “Ele não” as mulheres estão na linha de frente no combate a Bolsonaro, mesmo que alguns setores ainda olhem com desprezo para as questões de gênero e raça. Olhar para essas identidades não é esquecer a classe, mas não se pensa a América sem lembrar do trinômio com que Angela Davis nomeou seu principal livro: “mulheres, raça e classe”. Também é bom lembrar o que os fascistas odeiam e em qual discurso se ampararam para chegar ao poder em 2018: contra feministas, LGBTQIA+, negros e indígenas. 

Por fim, depois dos créditos vem uma cena extra com os atores entoando de forma gritada o hino. Acabamos de vê-los representar pessoas que caíram lutando por igualdade e democracia, mas a música remete aos que a cantam em eventos pseudopatrióticos e completamente fascistas, que homenageiam torturadores. Isso traz mais uma dor a quem assiste o filme e se identifica com o lado que resiste (de Marighella a Marielle): se estamos ligados a eles, também estamos irremediavelmente enlaçados na história de torturadores (de Fleury a Bolsonaro).  E é em homenagem aos nossos algozes que o hino “nacional” costuma tocar.

*Patrícia G. de Souza é historiadora e doutoranda em literatura brasileira.