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BRASIL

Zumbi dos Palmares no imaginário da música brasileira

Reprodução

Enquanto acompanhava uma das inúmeras atividades realizadas durante o mês de novembro em alusão ao dia da consciência negra, rabiscava no meu caderno de campo, detalhes os quais julgava importante registrar durante o evento. A cerimônia foi relativamente rápida e com falas curtas. Estava ali para registrar os diálogos dos participantes e suas percepções a respeito da noção de ancestralidade negra. Um personagem era unânime dentro do imaginário mobilizado para refererir-se a luta histórica e resistência do povo negro. Seu nome, Zumbi dos Palmares.

Monumento a Zumbi dos Palmares, Pelourinho, Salvador (BA)
Monumento a Zumbi dos Palmares, Pelourinho, Salvador (BA)

O guerreiro símbolo da luta das populações negras escravizadas contra a perversão da colonialidade entrou para o panteão de heróis e heroínas nacionais em 1997. Um ano antes, foi promulgada a lei 5.319 instituindo o 20 de novembro como dia da consciência negra, data em que Zumbi dos Palmares foi assassinado a mando do império. Cabe lembrar que a luta em torno da adoção do dia 20 de novembro é fruto da mobilização do movimento negro iniciada na primeira metade do século XX. A primeira referência a quilombo registrada em documentos oficiais portugueses é de 1559, mas somente em 1740, as autoridades coloniais apavoradas com o crescimento dos ajuntamentos de negros e negras, definiram o significado de quilombo como “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco (…)”. O primeiro navio com negros escravizados aportou em Salvador (BA) em 1535. Isso demonstra que desde o início da escravização de pessoas negras no Brasil, houve resistência destes contra a barbárie despejada sobre seus corpos. Esses espaços de refúgio, resistência e organização do povo negro existiu em toda América Latina sobre o nome de cimarrones, palenques, cumbes, marrones, dentre outros.

Zumbi dos Palmares, emergiu na história enquanto símbolo dessa resistência. Os dados em torno da sua biografia são emaranhados e de difícil comprovação, vítima de uma prática comum por parte da colonialidade do poder em omitir, apagar a história dos oprimidos, especialmente daqueles que não se curvaram. Entretanto, nem mesmo a violência colonial sobre a memória do povo afro-brasileiro foi capaz de apagar a força representada na imagem de Zumbi. Segundo Décio Freitas (1971), o nosso herói foi batizado de Francisco por um padre português, aos 15 anos fugiu para Palmares e com 19 anos obteve a sua primeira vitória contra as tropas colonias. Os quilombos, durante o período colonial brasileiro, se caracterizam pela formação de grandes estados, enquanto espaços econômicos e de sociabilidade alternativos (NASCIMENTO, 2018). Zumbi aparece como essa figura lendária, comandante do Quilombo dos Palmares, sendo o principal lider a partir de 1670 com o assassinato de Ganga Zumba, que resistiu por quase 100 anos as investidas e aos ataques do poder colonial, e no seu auge possuía nove cidades ou mocambos, tendo como uma das mais conhecidas, a capital Macaco na serra da Barriga, Alagoas. Alguns pesquisadores como Nina Rodrigues, defendem que dada a mobilidade necessária para sobrevivência dos quilombos, Zumbi seria um título de chefia e existiriam vários “zumbis” ao longo da existência de Palmares. A palavra  vem do quimbundo Nzambi, Ngana Zambi e significa “Deus Supremo”, para o candomblé, Olorum.

Durante boa parte das décadas seguintes à destruição de Palmares, a história sobre espaços de auto-organização e resistência das populações negras escravizadas foram ocultadas das narrativas oficiais. Com a organização e desenvolvimento do movimento negro brasileiro a partir da metade do século XX, houve um impulso no reposicionamento e disputa dos símbolos da brasilidade. Em novembro de 1974, em artigo publicado no jornal do Brasil, o Grupo Palmares do Rio Grande do Sul sugere que a data de morte de Zumbi, 20 de novembro, passasse a ser comemorada como data nacional em contraposição ao 13 de maio.

Desfile da Escola Vila Isabel "Kizomba, Festa da Raça" campeã do carnaval de 1988
Desfile da Escola Vila Isabel “Kizomba, Festa da Raça” campeã do carnaval de 1988

A influência da figura de Zumbi e dos Quilombos sempre esteve presente na cultura brasileira, especialmente na música, ritmo totalmente influenciado pela contribuição das populações oriundas do continente africano.  Em novembro de 1929, a folclorista Stefana de Macedo grava a canção “Batuque”, categorizada como “Dança do Quilombo dos Palmares” do fim do século XVII, considerada por muitos como a canção brasileira mais antiga conhecida. “Roga nego / branco num vei cá / Se vier, pau vai te levar”. Durante a primeira metade do século XX, as primeiras canções afro-brasileiras se concentraram no universo do candomblé e da umbanda. Canções como “Olho o Congo” de Benedito Lacerda, “Macumba” de Eloy Monteiro e Getúlio Marinho com o conjunto africano são alguns exemplos. Em 1932, João Quilombo, segundo José Ramos Tinhorão, seria o pseudônimo de Getúlio Marinho, grava a música “Quilombo”. Em 1974, uma das principais músicas em referência a Zumbi seria eternizada na voz de Jorge Ben Jor, filho da etíope Silvia Saint Ben Lima. No álbum “A Tábua de Esmeralda” a faixa “Zumbi” anuncia “Eu quero ver quando Zumbi chegar / Zumbi é senhor das guerras, é senhor das demandas / Quando Zumbi chega é Zumbi quem manda”. Tudo indica que ao completar 10 anos de carreira, em 1970, a então gravadora de Jorge Ben o presenteou com uma viagem ao continente africano, mais especificamente a Etiópia, terra da sua mãe. Fato é que sua produção passa a ser fortemente influenciada pelo imaginário ancestral africano como vimos em “Tábua de Esmeralda” desembocando no “África Brasil”. A imagem de Zumbi aparece em outras tantas canções da música popular brasileira. Em 1967, Edu Lobo compõe a música “Zambi” onde narra a saga guerreira do herói do povo negro. Em 1974, “Canto das Três Raças”, eternizada por Clara Nunes e composta por Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte, se transforma em hino de resistência e ecoa nas rodas de sambas e manifestações. João Bosco e Aldir Blanc, no disco de estréia de Bosco, apresentam a belíssima “Quilombo” com arranjos virtuosos. Em 1984, Cacá Diegues ao produzir o filme “Quilombo”, convida Gilberto Gil para compor a trilha sonora inteiramente dedicada ao guerreiro palmarino. No samba, Zumbi está presente de corpo, pés e alma. Martinho da Vila interpreta o samba-enredo da Vila Isabel “Kizomba, Festa da Raça” que deu à escola em 1988, seu primeiro título na elite do carnaval carioca. Podemos falar também da canção “Negro Zumbi” gravada por Leci Brandão, composta em parceria com Afro Mandela e Valdilene onde canta “Zumbi, o teu grito ecoou / No Quilombo dos Palmares / Como pássaro que voou / Tão liberto pelos ares”. No reggae de Edson Gomes com “Zumbi dos Palmares” até Natiruts com “Palmares” do álbum Povo Brasileiro a presença de Zumbi transborda, assim como no rap de Racionais Mc’s em “Júri Racional” “Gosto de Nelson Mandela, admiro Spike Lee / Zumbi, um grande herói, o maior daqui”. Também cantaram Zumbi, Djonga, Emicida, Nação Zumbi, Mateus Aleluia, Preta Rara, Luedji Luna e tantos outras artistas. (Sugestão de playlist aqui)

A imaginação fermenta, massifica os nossos anseios e organiza os significados pelos quais compreendemos o nosso entendimento sobre o mundo. A sociedade, os grupos sociais, os povos, exprimem seus sentimentos fundamentais, como o amor, o ódio, a vingança, a coragem, através dos seus mitos. Este, diz respeito a acontecimentos passados que se interrelacionam com o presente e o futuro, fornecendo códigos que nos auxiliam na leitura que exercemos sobre aquilo que está diante dos nossos olhos. As artes em geral, e aqui citamos a música, são vetores possíveis para reprodução e representação destes mitos e imaginários. A figura de Zumbi dos Palmares corresponde às aspirações das populações negras que lutam por igualdade racial e pela superação do racismo na sociedade brasileira. Junto a Zumbi, outros heróis e heroínas precisam compor o imaginário do povo brasileiro. Aquatunes, Ciatas, Malunguinhos, Dandaras, Marielles, e tantas outras personificações da resistência contra a escravidão e sua obra peversa em nossa sociedade, o racismo que persiste em nossas estruturas sociais, econômicas e culturais. O Brasil que queremos, deve ser imaginado a partir dessas representações, ocupando praças, ruas, monumentos, filmes, canções, etc. Palmares nunca foi derrotada, Zumbi não morreu. Estão cada vez mais vivos em nossas mentes, corações e ações!

Referências Bibliográficas
CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. Rio: Civilização Brasileira, 1965.
FREITAS, Décio. Palmares, a guerra dos escravos. Porto Alegre: Editora Movimento, 1971.
NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo. Petropólis: Editora Vozes, 1980.
NASCIMENTO, Maria Beatriz. Introdução ao conceito de Quilombo. 1987. In: Beatriz Nascimento, Quilombola e Intelectual: Possibilidades nos dias da destruição. Maria Beatriz Nascimento. Diáspora Africana: Editora filhos da África, 2018.