Pular para o conteúdo
Colunas

Gritamos – queremos o povo negro no Poder! – mas afinal o que isso significa?

Gabriel Santos

Garbriel Santos é alagoano, estudante da UFRGS, militante da Resistência-PSOL (RS), vascaíno e filho de Oxóssi.

“Nós dizemos: Todo Poder Para o Povo
– Poder Negro para o Povo Negro
e Poder Marrom para o Povo Marrom,
Poder Vermelho para o Povo Vermelho
e Poder Amarelo para o Povo Amarelo.
Nós até dizemos Poder Branco para o Povo Branco.”
Fred Hampton

Vigésimo dia de Novembro. Dia do assassinato daquele que foi um dos líderes anticoloniais mais importantes da história da diáspora africana, fundador de uma República igualitária, multirracial e multiétnica, onde não havia a propriedade privada dos meios de produção. Falo de Zumbi, morto pelas mãos e balas da coroa portuguesa. A morte de Zumbi e a destruição de Palmares marca o fim da existência de um Estado que podia vir-a-ser o Brasil: Democrático, igualitário, justo. E marca também, a afirmação de um ethos que molda nossa burguesia: antidemocrática, violenta e racista.

Vigésimo dia de Novembro. Dia da Consciência Negra. 330 anos depois da morte de Zumbi, a população negra brasileira, composta por pretos e pardos, é maioria nacional e passa por momento de afirmação de sua identidade. O negro brasileiro, após anos de atuação do movimento negro organizado, toma consciência de sua situação racial de desigualdade, se assume como negro em um país onde o racismo estrutura as relações socio-economicas. Em um país onde as forças militares a cada 4 horas assassinam uma pessoa negra. Em um país onde o negro recebe salario menor, esta em condições de emprego precárias, tendo que lidar com a fome e com desastres ambientais. 

Vigésimo dia de Novembro de 2023. No dia anterior, a Coalizão Negra por Direitos, um dos movimentos sociais mais importantes dos últimos anos, realiza seu encontro nacional em Maceió e sobe a Serra da Barriga. Na semana seguinte, Presidente Lula ignora as cobranças do movimento negro e social que pediam uma mulher negra e progressista para o STF e indica  o competente ministro da justiça Flávio Dino para o cargo. Porém, no dia 20 de novembro, o movimento negro brasileiro foi as ruas em diversas cidades do país contra o racismo e desigualdade racial. Aqui em Porto Alegre, cidade onde a movimentação para o dia 20 de Novembro como um dia nacional de luta se iniciou, um dos eixos centrais da marcha foi “Povo Negro no Poder”, em parte inspirados pela indicação do Movimento Negro Unificado do deputado Matheus Gomes para a disputa da prefeitura da cidade, e também pela existência da Bancada Negra Estadual. E é justamente sobre esse tema que iremos tratar agora.

No geral quando falamos sobre Poder o que existe é uma grande confusão. O que significa estar no Poder? Onde se localiza o Poder? Povo negro no Poder é só mais uma frase de efeito e uma agitação? Uma frase que pode ser substituída por LGBT´s no poder ou mulheres negras no Poder, ou algum outro setor social?

Primeiro queremos fazer alguns apontamentos. Muito vemos a discussão sobre poder na sociedade afastado de uma noção de política, assim como o inverso também é verdadeiro. Se fala como se política e poder estivessem em todos os locais e em todas as pequenas relações sociais. Hoje é comum se entender política e exercer o Poder como um conjunto de discursos e narrativas que estão em disputa constantes e permanentes, sendo necessário se ter um contra discurso, um discurso contra hegemônico, e isso seria fazer política e disputar o Poder. Seria uma micropolítica espalhada em diversos aspectos da vida. 

Dessa forma se entende fazer política e disputar o Poder como construir outras narrativas, um debate ora estético, como assumir a negritude, cabelos crespos, e etc, até chegar num nível linguistico como falar “deixar escuro” no lugar de “deixar claro”, ou não falar coisas como “buraco negro” ou “mercado negro”. Em uma visão, tudo seria fazer política, tudo seria disputar o Poder.  Aqui, discordo dessa visão.

Acredito que manifestações estéticas e culturais (mas rejeitamos o exemplo linguístico acima como capaz de produzir qualquer coisa positiva além de confusão) são imensamente progressivas pois ajudam a construir uma identidade, um sentimento comum de coletividade que podem ser utilizados para a ação política de forma concreta, que deve ser o centro. A questão é que a construção de uma identidade não hegemônica, pode confrontar o racismo, mas não acaba com o mesmo. O que acaba com o racismo e a desigualdade racial é a atuação política consciente.

Aqui apontamos que essa visão dissipada de onde está o Poder e o que é fazer política, impede de se enxergar onde realmente está o Poder, portanto é uma visão que leva ao fracasso de lutas contra a desigualdade racial, pois não ajuda a ver onde onde o Poder se concentra e qual seu eixo.

Mas afinal, o que seria o Poder? Podemos definir e dizer que o eixo central sobre o Poder é qual a capacidade que uma classe, fração desta, ou grupo social, teria de impor suas vontades e interesses sobre os demais grupos, e apresentar sua vontade, interesses e ideologias como se fossem do conjunto da população. No campo político a batalha pelo Poder se dá entre a luta de representantes das distintas classes, frações ou grupos que disputam entre si na sociedade, ou seja, entre partidos políticos, sindicatos e outras representações. Na batalha pelo Poder, diversos artifícios são utilizados, desde a ideologia, onde se trabalha pela coesão, até o uso das forças repressivas das armas, quando se apela para a coerção. 

Portanto, diferente do que normalmente se coloca, ao dizer “povo negro no Poder” não falamos somente sobre uma reivindicação para que corpos negros, ou mulheres negras, estejam ocupando em maior número espaços políticos que normalmente foram exclúidos ao longo dos anos. Não é um chamado para mais representatividade ou apenas um pedido por diversidade. O próprio caráter racista do Estado brasileiro não se dá pela pouca presença de pessoas negras dentro de espaços de governo, em ministérios, no Senado ou no próprio STF. A ausência de pessoas negras é uma consequência do projeto colonial, do racismo, da hierarquia racial, que molda e estrutura o Estado brasileiro. E, um número maior que zero em aparelhos do Estado não muda por si só o caráter racista das instituições. A questão não é somente um aumento no número de pessoas negras em espaços de governança, não se trata e não podemos deixar que o debate seja resumido a isso. A questão central é que pessoas negras ocupem locais estratégicos e construam uma hegemonia a partir de um projeto político que seja capaz de atrair setores da sociedade, outras camadas sociais e se tornar maioria social. Ou seja, é sobre estar nos aparelhos e instituições e elaborar estratégias para construção de uma maioria política, garantindo melhorias e avanços na vida do povo.

> Leia também: Novembro Negro e a Tarefa dos Marxistas na Luta Antirracista

Importante apontar ainda que ta no governo é diferente de estar no Poder. É possível que determinado grupo político, um partido que represente as classes subalternas, chegue ao governo, mas não consiga, ou não tenha planos para exercer o Poder. Da mesma forma, é possível que se tenha pessoas negras em cargos importantes, mas efetuando uma política branca, ou que em nada de concreto mudam a realidade material da população negra. Não me interessa se a Tucanafro (setorial “antiracista do PSDB”) teve seu maior congresso da história, enquanto deputados do PSDB aprovam o marco temporal das terras indígenas e votam até mesmo contra o 20 de Novembro como feriado nacional. Não me interessa ter uma mulher negra presidente de um grande banco, se esse banco segue com taxas de juros altíssimas e com isso extorquem dinheiro de grande parte da população. Ter acesso ao Poder significa essencialmente ter capacidade para assumir o papel condutor da sociedade e da nação, impor seu projeto político-econômico sobre outras classes, e assim modificar de forma concreta as estruturas da sociedade com medidas populares. 

Acreditamos que chegou o momento do movimento negro brasileiro fazer parte do centro das discussões e debates políticos, confrontando setores da classe dominante, elaborando ações, construindo políticas públicas, e com a compreensão que o eixo centro do fazer política é a disputa pelo Poder do Estado. Queremos que pessoas negras ligadas a esse projeto estratégico, da construção de um poder para o negro, ou seja, um poder para a maioria da população, um poder construído pelos debaixo, um poder verdadeiramente popular, e assim verdadeiramente democrático, ocupem mais e mais espaços centrais dentro das instituições para denuncia-lás e fazer avançar reformas estratégicas dentro do Estado somadas a organização popular e mobilização por fora da institucionalidade.

Para além da já tradicional e midiática frase “não basta não ser racista, é preciso ser anti-racista” (algo que pode ser usado seja pela La Liga, enquanto coloca hashtags em twitters após mais um caso de violência racial no campeonato espanhol, ou pelo banco Itaú em sua propaganda no mês de novembro, ou até pelo governador da Bahia, uma semana após uma nova notícia apontar um velho cotidiano: mais um corpo negro morto pela PM do estado, a mais assassina do país) é preciso que o movimento negro nacional comece a elaborar uma estratégia para o Poder. Não basta ser antirracista (seja lá o que isso queira dizer hoje dia em tempos do fim do mito da democracia racial, capitalismo cada vez mais dependente e likes nas redes sociais), é preciso defender o Poder para o povo negro.

Não basta ser antirracista, é preciso defender o Poder para o povo negro.

Dizer isso é, na prática, defender um projeto de mudanças estruturais no país. É defender a reforma agrária e combater a concentração de terra. É defender um sistema único de saúde com investimento de qualidade. É defender um sistema tributário progressivo, justo, com taxação dos super ricos. É defender a justiça climática e o combate ao racismo ambiental, assim como realizar uma reforma urbana. É terra, teto, trabalho e pão para o povo. Poder para o povo negro é uma estratégia para a maioria da população, que atingira sua maioria númeria, a popução preta e parda, mas também deve se construir como uma maioria social, já que as medidas estratégicas vão atingir a população branca pobre. Povo negro no Poder é uma necessidade histórica de nosso tempo para cumprirmos as tarefas estratégicas que um programa político verdadeiramente popular e democrático vão apontar.

Lembremos um velho russo que dizia: Fora do Poder, tudo é ilusão.