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COLUNISTAS

Marighella e a busca do patriotismo perdido

Verônica Freitas, do Rio de Janeiro (RJ)

Finalmente saiu no Brasil o filme Marighella, dirigido por Wagner Moura. Com as gravações de suas cenas ainda em 2017, o longa foi realizado sob impacto do crescimento da direita no país. Foi gestado em seguida ao contexto de grandes protestos conservadores, que pintaram as ruas de verde e amarelo, pelo impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2015 e 2016. Nesses atos “patriotas”, já desfilavam apoiadores de Bolsonaro, pessoas que pediam intervenção militar, fundamentalistas religiosos, liberais vestidos de “nova direita”, com apoio e participação direta de representantes da burguesia. Os símbolos da bandeira foram então apropriados pelo campo que avançou nas ruas a partir de 2015, e com isso a reafirmação de toda simbologia patriótica, do hino, das cores, da afirmação de orgulho nacional. O filme é uma resposta a esse processo, e propõe uma reflexão sobre que Brasil queremos. É necessário, entretanto, dar um passo atrás, e nos perguntar o que significa o patriotismo em uma economia periférica e dependente como a nossa. 

essa afirmação do patriotismo no contexto em que ele foi assassinado, em 04 de novembro de 1969, é outro, que não é possível ser transportado para 2021. O infeliz evento ocorreu quase um ano após o AI-5, que inaugurou o momento mais cruel da ditadura, que era um misto de afirmação nacional em suas tradições mais reacionárias, combinada com a reafirmação do entreguismo das burguesias nacionais aos Estados Unidos. 

A obra usa o hino do Brasil como um elemento forte da narrativa, na afirmação da radicalidade de Marighella. Ele, liderança negra, comunista, revolucionária. O compromisso com essa figura e a necessidade de reconhecimento coletivo do que foram os intensos processos de luta no país é um glorioso acerto da proposta. No entanto, essa afirmação do patriotismo no contexto em que ele foi assassinado, em 04 de novembro de 1969, é outro, que não é possível ser transportado para 2021. O infeliz evento ocorreu quase um ano após o AI-5, que inaugurou o momento mais cruel da ditadura, que era um misto de afirmação nacional em suas tradições mais reacionárias, combinada com a reafirmação do entreguismo das burguesias nacionais aos Estados Unidos. 

Naquele contexto borbulhavam também os processos de libertação nacional na África. Esses constituíam levantes contra a colonização imperialista direta, processo de confronto intensos e forte participação das esquerdas nacionais, num contexto de Guerra Fria. Da mesma forma, em 1959 ocorreu a emblemática Revolução Cubana, cujo enfrentamento aos Estados Unidos ganhou extrema centralidade. Atualmente, pelo contrário, a afirmação do nacionalismo foi capturado por setores burgueses múltiplos, que se afirmam como forma de sobrevivência da economia, e com o extremo de sua ideologia no “anti-globalismo”, como os discursos de Trump e Olavo de carvalho. Esse ideário, no entanto, é vazio de conteúdo, pois a subserviência do Brasil aos Estados Unidos, “à lá” saudosos da ditadura de 1964, segue como uma chama acesa pela extrema direita nacional. Na proposta de Wagner Moura, estrelada brilhantemente por Seu Jorge, enfrentar isso é uma urgência. Afinal, vamos permitir que esse país do “Brasil ame-o ou deixe-o” represente o que é o orgulho nacional?

Mas cabe aqui uma reflexão do outro lado. É necessário refirmarmos um reconhecimento coletivo de uma população de 213 milhões de pessoas, com suas muitas histórias que se cruzam em um sem fim de relações, que por múltiplos processos de seus ancestrais chegaram a essas terras e aqui vivem, estudam, trabalham, constroem afetos. Em acordo com Luiz Antonio Simas, e sua historiografia dos de baixo, devemos enfrentar o Brasil, e reconhecer a brasilidade. Em outras palavras, é a institucionalidade da contra-insurreição permanente contra a vivacidade de uma população de diversidade e resistência. Assim, seguindo pensadores como Silvio de Almeida e o Simas, a brasilidade se afirma como ação e reação transgressora contra a política de morte que move as nossas estruturas.

Os debates que atravessam a obra

Como proposta sob direção de Wagner Moura, a origem do Brasil e seus símbolos são um tema importante de serem encarados de frente. Desde os protestos contra a Dilma, mobilizados desde 2015, houve uma apropriação do campo “patriótico” por setores à direita do então governo. O verde e amarelo que mobilizou tamanho sentimento nacional foi, então, incorporado por múltiplas matizes de pessoas que se identificam com discursos regressivos. 

Nesse sentido, o lema “ordem e progresso” vem carregado do positivismo que dominava os círculos militares, que junto com as burguesias nacionais deram o golpe originário da República, em 1889, e que desde esse momento teorizavam sobre a necessidade da tutela militar do país, na manutenção das desigualdades econômicas, de gênero, raciais. Tais fatores eram projeto de sociedade desde o momento da fundação nacional, influenciando a imagem de poder da família brasileira naquele século, e com persistências até hoje. Ordem para manter tão vasta extensão territorial, com o progresso representado pelos interesses de uma classe de exploradores que, como nos ensinou Florestan, assumem um papel de “Contra insurreição permanente”. Essa é a expressão que sustenta níveis tão drásticos de desigualdade social, com a manutenção de privilégios seculares, sendo reproduzidos de geração e geração. 

O filme também traz em suas nuances importantes contribuições para os debates atuais, como é o caso dos temas de Memória, Verdade e Justiça. Afinal, as recomendações da Comissão Nacional da Verdade não foram cumpridas e está em curso um desmonte dessas políticas, com a pasta comandada pela Ministra Damares Alves. Em termos de organização do Executivo Federal, a família tradicional e o passado autoritário nacional são geridas, não à toa, pela mesma pessoa no Brasil, marcada por seu papel reacionário. Mas o problema exacerba os demais espaços do Estado. O TRF5, neste ano de 2021, decidiu por 4 votos a 1 que o governo Bolsonaro não seria proibido de comemorar o golpe de 1964, interpretado por essa instancia judiciária como questão de opinião. Afirmar que existiu sim um momento de exceção, no período entre 1964 e 1984, segue sendo uma necessidade entre nós. E isso em um contexto de brutal repressão contra as populações periféricas e racializadas, que seguem sob estruturas de menores garantias democráticas desde os tempos coloniais, com muitos processos de resistência.

O filme também aborda o tema da disputa dentro da religião, para atingir os corações e mentes da maioria. Nesse sentido, Henrique Vieira ocupa papel fundamental na ficção e na vida real, com o diálogo entre os que são os resistentes da fraternidade nos dias de hoje e nos anos de chumbo. São representações que, de fato, dialogam com amplos setores, e sob as quais também existem disputas de olhares e enquadramentos da vivencia da crença como possibilidade de vínculos de afeto. Em contraponto, a violência é algo que o filme mostra em primeiro plano, e que se mistura com uma denúncia que é necessária sobre a conivência do sistema ditatorial e o Estado brasileiro com a tortura como método. Urge denunciar o quanto isso segue sendo uma realidade no país até hoje, com a presença de métodos inquisitórios e a permanência de operações policiais. Esse ano vivemos a trágica chacina do Jacarezinho, maior extermínio provocado por uma operação policial em favela da história do país. Ao mesmo tempo, o filme dá pistas de como essa violência institucional estava ligada a uma estrutura de formação de redes paralelas de comando nas polícias e Forças Armadas. A esse respeito, a obra de Bruno Paes Manso, “A Republica das milícias”, mostra a relação do jogo do bicho com a ditadura, e como os grupos de extermínio e esquadrões da morte são uma herança da ditadura de 1964 que reverbam até hoje na ação das milícias.

Por fim, em tempos de Round 6, Bacurau e tantos outros, fica também a dúvida do uso da violência na estética e suas implicações – no caso do cinema brasileiro bastante debatido no famigerado Tropa de Elite, que também ecoa a imagem de um mundo de banalização da vida. Mas o longa se difere do sucesso de Padilha por não deixar margem à defesa, naquela narrativa ali enquadrada, de um estado que mata, viola, humilha, enlouquece. 

Refundar é preciso!

Marighella é um filme complexo, como complexa é a luta no campo das artes, da cultura, da educação, da política, das lutas das maiorias no Brasil. Aos debates lançados pela obra, ficam as nossas reflexões e as reverências aos que vieram antes de nós. 

A respeito da provocação sobre os símbolos nacionais, a nossa experiência até aqui nos ensina: é necessário refundar o Brasil. Queremos afirmar outras cores, que representam a nossa brasilidade, de Emicida e seu amarelo, do Verde e Rosa de Marielle, da negritude de Solano Trindade e Elza Soares, do vermelho de Sônia Guajajara, da aquarela de Marighela. As fronteiras nacionais não nos bastam, e tampouco as referências às suas origens autoritárias, que fundaram a bandeira, o hino, o autoritarismo estatal. É necessário ir além. Afirmar nosso passado comum é reconhecer nossas múltiplas camadas, inclusive como latino-americanos, como classe trabalhadora mundial, como pessoas que estão conectadas de múltiplas formas e precisam disputar um projeto comum. Temos fome de tudo, nossa brasilidade não cabe nessa bandeira de ordem e (qual?) progresso. Queremos muito mais!