Semana passada fiz parte de um “debate” e as aspas são para identificar radicalmente que aquilo esteve longe disso. Fui o primeiro a falar, na sequência um menino, estudante de medicina, que apresentou dados e a racialização da própria pandemia. Nos dados mostrava quem mais morreu, quem menos foi vacinado, etc. Dando materialidade para a questão racial. Era um menino socialista, por suposto. Muito boa exposição.
O inferno, nesse caso, é literalmente o Outro. É evidentemente que essa operação traz um gozo imediato. E a plateia encontra nisso saída para sua culpa moral.
Por fim então chegou um menino religioso. Sua intenção foi, em primeiro lugar, mobilizar o sentimento de culpa dizendo para a plateia que nos ouvia que ela era conivente com o assassinato da população negra. Nomeando a plateia de branca, o que não era toda a verdade, passou a hostilizá-la trabalhando todo o ressentimento e identificando os males sociais na culpa moral de alguns. O racismo de estrutura simbólica organizada pelo espólio do capitalismo virou, num passe de mágicas, simples dado moral. Perdeu-se de vista o imaginário excludente promovido pela ideia de raça como um dos seus estertores.
Você, cara leitora, deve imaginar o mal-estar que comecei a sentir ao assistir, pela primeira vez, essa operação. Estávamos ali num rito de culpabilização do imediato outro que abria caminhos para o ritual de sofrimento. Quem era o negro? Quem era o branco? Quem sofria mais? Quem era o culpado. Signo da impotência de uma época e símbolo máximo da decadência de horizontes políticos.
Há operações no ressentimento, como aliás mostra Fanon, que pode promover ganhos subjetivos para a luta política. Mas desde que se manifeste como tal e seja superado. Do contrário, o ressentido sai da posição de vencido para encarnar a posição de vítima inocente. É nesse lugar que o ressentido se sente em casa, suas acusações funcionam não para mudar o status de vítima mas para assegurar sua inocência e sua passividade. Suas queixas não são para acabar com a racialização do espaço social, mas para manter aquilo que orienta o sentido de sua prática e pensamento sobre a vida.
Ele ocupa uma posição passiva diante do Outro e obtém um ganho moral pois a ele devemos prestar auxílio e ter um afeto de culpa. Ouvi-lo em sua queixa e nos culpar pois ele não tem responsabilidade nenhuma pela situação. O inferno, nesse caso, é literalmente o Outro. É evidentemente que essa operação traz um gozo imediato. E a plateia encontra nisso saída para sua culpa moral. Principalmente jovens de classe-média numa universidade pública. Porque, sabemos, na vida concreta de milhões de expropriados, essa operação não dá certo.
Quando vi que de ritual de culpabilização a coisa debandava para rituais de sofrimento, dei no pé.
Pelo que soube depois, fui chamado de branco pelo rapaz… E ri.
*Doutor em Filosofia pela UNIFESP
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