A Unicamp, assim como todas as universidades, tem uma estrutura institucional construída por professores, gerida por professores e na qual es professores, enquanto categoria, têm muito mais votos nas instâncias de decisão do que estudantes e funcionários técnico-administrativos somados (70% para professores, 15% para funcionários e 15% para estudantes, como regra geral). Historicamente, o movimento estudantil reivindica a paridade nos órgãos colegiados (o que significa que as três categorias teriam o mesmo peso nos votos nesses espaços) e, mesmo enfrentando tamanha desigualdade de poder, se mobiliza em defesa de uma universidade democrática, pública, de qualidade e que esteja a serviço para e pela população. Nossas conquistas são arrancadas com muita luta de uma estrutura e de um projeto de universidade em que es estudantes não têm voz.
Em 2016, a Unicamp foi palco da maior mobilização estudantil de sua história. Em uma greve que durou três meses, es estudantes desafiaram tal estrutura de poder e se fizeram ouvir, conquistando as cotas étnico-raciais e o vestibular indígena. Apesar de, atualmente, tais avanços terem sido incorporados na retórica da reitoria, na época o movimento foi fortemente combatido por um setor reacionário da universidade, que se organizou para perseguir e punir aqueles que estavam na linha de frente da mobilização.
A partir de um regimento feito durante a ditadura, mais de 20 estudantes foram processados disciplinar e judicialmente por professores, alguns com advogados do MBL. Os artigos que embasaram as denúncias proibiam, por exemplo, a manifestação político-partidária, desacato à autoridade e a má conduta e o artigo 227, que deu base para a maioria dos processos, é uma cópia do artigo 477, de 1968, que caiu com a Constituição de 1988. Além dos processos extremamente desgastantes conduzidos pela universidade, com denúncias e procedimentos inconstitucionais, tais professores, com aval da instituição, perseguiram politicamente estudantes a ponto de alguns trocarem de curso ou mesmo de universidade. Ao mesmo tempo, um dossiê elaborado pelos estudantes compilando uma série de denúncias de posturas racistas de professores durante a greve foi perdido pela reitoria e as denúncias de agressão de estudantes por parte de professores não foram levadas à frente.
As punições da greve de 2016 nos mostraram mais uma vez como a universidade e seus setores mais reacionários estão dispostos a utilizar todos os dispositivos possíveis para combater o movimento estudantil. Por isso, nos preocupa a proposta do novo código de conduta da Unicamp, elaborado como parte da Política Institucional de Direitos Humanos mas que, de fundo, abre diversas brechas para a perseguição ao movimento estudantil.
O código de conduta e seus limites
Além de prever punição para o consumo e comercialização de álcool no campus (o que criminaliza ainda mais as festas, proibidas em 2013) e ter um inciso dedicado unicamente a incentivar denúncias pela comunidade acadêmica, três elementos do código chamam atenção: primeiramente, a falta de uma definição de algumas condutas que condena e para as quais prevê punição como “violência” ou “causar transtorno”. A experiência das punições de 2016 nos mostra como esse tipo de indefinição favorece apenas aqueles com poder institucional para ditar o que é violento ou não: uma greve estudantil pode ser enquadrada como transtorno e os piquetes como violência, enquanto declarações abertamente racistas de docentes não são sequer investigadas.
Outro ponto importante são os artigos que regem a conduta nos órgãos colegiados, que estipulam a necessidade de manutenção da “ordem” e do “decoro” por parte des representantes, dentro e fora das reuniões, e proíbe o desrespeito, apontando inclusive que, caso a atitude denunciada não se enquadre no regimento do órgão colegiado, a punição a ser adotada é a prevista pelo próprio código. Tal redação do código abre espaço para a punição e censura da representação discente (mas também de funcionários e professores), que muitas vezes é entendida como agressiva ou violenta ao defender a posição des estudantes. Historicamente, a representação discente, apoiada no movimento estudantil, faz nossa luta ecoar nos espaços de decisão da universidade e trava disputas muito importantes em um cenário bastante desfavorável. Com essa desigualdade de poder, a perseguição política aes estudantes nesses espaços não é nem mesmo disfarçada: com a eleição de uma estudante punida pela greve de 2016 para o Conselho Universitário, uma pró-reitora moveu uma nota de repúdio contra o arquivamento de um dos processos abertos contra a representante, quase 5 anos após a greve.
Se destaca também o artigo que estipula sobre o encaminhamento e punição das infrações previstas no código. Tal artigo não prevê uma forma clara de encaminhamento dos casos, abrindo diversas possibilidades e apontando para “autoridades” não especificadas e para casos não previstos no regimento geral da universidade, autorizando as “autoridades competentes” não especificadas a aplicar a punições “cabíveis” e indicando que, nos casos em que a infração seja prevista concomitantemente em mais de um regimento, se apliquem todas as punições estipuladas. Ou seja, com esse código o processo de denúncia, apuração e punição deixa de ser regido pelo regimento oficial e passa a poder ser feito por essas “autoridades” sem nenhum tipo de regulação que estipule quais são as punições cabíveis de serem aplicadas por esse órgão, limitadas apenas pelos parâmetros da “razoabilidade” e “proporcionalidade”.
Apesar de todas essas questões, é importante destacar que o código de fato tem avanços em relação ao combate às opressões na Unicamp. Ele repudia atos racistas, defende o respeito à diversidade de gênero e sexualidade, repudia o racismo aos indígenas no tocante ao respeito a seus saberes e línguas, defende o avanço de políticas para inclusão de pessoas com deficiências nos espaços acadêmicos.
No entanto, o combate às opressões que defendemos não pode ser encarado única e exclusivamente como um código moral. O combate ao machismo, racismo, LGBTfobia e o capacitismo deve nortear os princípios éticos no trabalho, estudo e vivência na universidade. E isto significa escutar as vítimas e dar o encaminhamento correto dos casos e denúncias independentemente da estrutura de poder que se ocupa na universidade. Além disso, uma política séria de combate às opressões não pode abrir margem para punições e perseguição política, considerando especialmente que são os setores oprimidos da universidade que são vistos como “violentos” ou “agressivos” ao defender suas posições. No fim, o código tem o efeito inverso do que foi proposto: ao invés de ser um instrumento com foco em combater opressões, abre margem para perseguição daqueles que lutam.
O que fazer?
Os problemas desse código de conduta refletem o quão frágil é a democracia universitária na Unicamp. Em uma universidade em que até 2 anos atrás tinha o “AI-5 das universidades” no seu regimento geral, pune trabalhadores grevistas e persegue a representação dos estudantes que lutaram por cotas étnico-raciais e o vestibular indígena, não é difícil compreender porquê a nossa presença enquanto estudantes nos espaços deliberativos parece uma ofensa. Além disso, o código abre brechas para criminalizar nossos métodos históricos e legítimos de luta, como piquetes, paralisação de atividades, colagem de faixa e cartazes, entre outros. Isso porque condena o “transtorno e violência”, que, mesmo sem ter uma definição específica, já foi utilizado em períodos anteriores como forma de punir o movimento estudantil administrativamente e judicialmente.
Não é por acaso. Nosso projeto de universidade como um espaço público, que todes, independentemente de fazer parte ou não da comunidade acadêmica, tem o direito de acessar, permanecer e viver não é o mesmo da reitoria. A presença de estudantes, trabalhadores, mulheres, negres, indígenas, LGBTQIA+ bate de frente com o projeto elitista, branco e opressor de quem está nos espaços de poder da universidade. Por isso querem cercear nossas falas, nossos espaços de vivência, nossas formas de mobilização política.
Por isso, fortalecer nossa representação discente, que só faz sentido porque está ligada aos movimentos sociais, é extremamente importante. Em um espaço desenhado para afastar es estudantes das decisões sobre a universidade, nossa presença, mesmo que muito minoritária, já é uma conquista. Precisamos ser ouvides sem ter a nossa presença questionada, e essa é uma luta cotidiana dos nossos RDs que precisa do suporte da mobilização do conjunto des estudantes. Participar dos espaços de discussão conjunta, das entidades estudantis, fortalecer os nossos próprios meios e métodos é crucial, especialmente nesse momento tão difícil que nos sentimos tão isolados.
Por fim, o código de conduta, apesar de avançar em alguns elementos no que se refere ao combate às opressões, tem limites muito concretos que podem ameaçar o pouco que ainda existe de democracia universitária. Além de não ter definições precisas, estipular punição por “autoridades” não previstas ou especificadas no regimento, estabelece um “decoro” que pode ser utilizado contra a representação discente e o próprio movimento estudantil no geral, sempre lidos como agressivos por defender nossas pautas.
Nossos próximos passos devem ser acompanhar as discussões da recém eleita nova reitoria, em conjunto com a representação discente dos órgãos deliberativos e das nossas unidades. Além disso, o Grupo de Trabalho que elaborou
o código deve discutir propostas de alterações e sugestões no próximo período nos institutos, processo que é tarefa do movimento estudantil como um todo acompanhar e colocar nossas preocupações.
*Cecília Ciochetti e Ingrid Saraiva são militantes do Afronte! Campinas e fazem parte do Centro Acadêmico de Ciências Humanas (CACH) da Unicamp
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