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MUNDO

Mais uma vez Israel despeja sua fúria sobre Gaza

Até esta quinta-feira, 13, 120 pessoas haviam morrido na Faixa de Gaza, e ao menos 30 crianças. A narrativa oficial, que fala em uma “guerra” entre Israel e Palestina, não se sustenta. Israel comemora seu “aniversário de fundação” despejando sua fúria sobre Gaza, uma grande prisão a céu aberto na qual vivem mais de 2 milhões de palestinos.

Roberto “Che” Mansilla*, do Rio de Janeiro, RJ
“Quem lhes deu o direito de negar todos os direitos? De onde vem a impunidade com a qual Israel está executando a matança de Gaza?”
“(…) as muito eficazes guerras de extermínio estão negando, há anos, o direito de existência da Palestina. Já resta pouca Palestina. Israel a está apagando do mapa”

Eduardo Galeano, Gaza, 20.07.2014

Na noite de quarta-feira (12), a apresentadora da principal emissora da mídia corporativa do Brasil (que nem precisamos dizer o nome) chamou de “aumento da violência no Oriente Médio, iniciada há seis dias”, que agora estaria “ganhando a proporção de uma guerra” devido ao “intenso bombardeio de ambos os lados que aterrorizam a população”. Ao final da reportagem, porém, a própria jornalista reconhecia que o saldo de mais um dia dessa tragédia era de “67 mortes na Faixa de Gaza e 7 em Israel”.(1)

Indignado com a maneira superficial, genérica e mesmo distorcida (o que não é surpreendente) é preciso – para termos um debate honesto – imediatamente esclarecer alguns pontos essenciais. Em primeiro lugar, não se trata de uma “guerra” ou de um “conflito” entre dois países beligerantes envolvidos. Falar nisso é, antes de tudo, uma desonestidade política e até mesmo uma farsa. Vamos aos fatos históricos.

De um lado temos Gaza, que é uma pequena faixa de terra, com aproximadamente 360 km². No entanto, possui uma das maiores densidades populacionais do mundo, com cerca de 80% de sua população constituída por refugiados e seus descendentes expulsos desde 1948 por Israel. Naquele estreita área, seus habitantes vivem (ou sobrevivem) em terríveis condições de vida, agravadas pelo bloqueio israelense desde 2007 (como retaliação à vitória eleitoral do Hamas), que cria dificuldades de abastecimento de produtos básicos como remédios e comida. O tráfego aéreo e marítimo de Gaza é totalmente controlado pelo exército de Israel. Trata-se, portanto, de uma grande prisão a céu aberto (ou um gueto) na qual vivem mais de 2 milhões de palestinos.(2)

 

Em maio deste ano, mais um dado dramático foi divulgado sobre Gaza: um aumento preocupante do número de pessoas com Covid-19, entre os quais muitos profissionais de saúde. Teve início uma segunda onda da pandemia agravada pelo bloqueio econômico de Israel que chegou a paralisar o sistema de saúde – o mesmo sistema que agora precisa também atender os 830 feridos pela ofensiva de Israel. Segundo os Médicos sem Fronteiras, Gaza responde por mais de 60% de todos os casos ativos de Covid-19 nos territórios palestinos ocupados. E só 5% dos palestinos teriam sido vacinados até o final de abril, com até mesmo profissionais de saúde sem a vacinação completa (3). Ao mesmo tempo, há 3 semanas, a vacinação em Israel já havia coberto mais da metade da população.

Do outro lado, temos o Estado de Israel que concentra o maior arsenal militar da região (também é um grande exportador de armas) possuindo e acumulando mais de 200 bombas nucleares que bastariam para destruir o Oriente Médio em poucos segundos, segundo demonstrou há décadas o cientista preso Mordechai Vanunu.(4) Israel é uma máquina de guerra que se construiu expulsando, em 1948, 800 mil palestinos, destruindo vilas, usurpando as terras daquela população nativa, através de uma contínua limpeza étnica, baseada na ideologia racista do sionismo. 

E hoje, como no seu passado colonizador, o Estado de Israel continua se expandindo sobre as terras palestinas às custas da expulsão de seus habitantes, desrespeitando todas as resoluções da ONU. Segue rompendo todas as fronteiras e, com a desculpa dos “motivos de segurança”, pretende impor o seu (velho) plano de judaização, agora em Jerusalém Oriental, onde vive uma maioria árabe, pretendendo retirar novas famílias palestinas e seguir com a construção de assentamentos para os novos colonos.(5)

Mas houve forte reação dos palestinos que, durante quase uma semana, se levantaram, com a força impressionante de sua heróica resistência, que pela primeira vez em duas décadas conseguiu unificar os setores mais mobilizados dos palestinos de Israel com os de Jerusalém Oriental e a Cisjordânia (6). É impossível deixar de se comover com as cenas de reação de um povo, praticamente sem armas, mas que ousa enfrentar e sobreviver a uma máquina de extermínio chamada Israel. E diante de uma luta, antes de tudo, constantemente invisibilizada pela cobertura predominante nos jornais televisivos e nas maiorias das mídias digitais. 

E esse exemplo abnegado de luta à barbárie do Estado sionista teve uma vitória parcial que levou Netanyahu a recuar (ao menos por agora) dos despejos de famílias palestinas no bairro de Sheik Jarrah, em Jerusalém Oriental. Este havia sido o estopim do início da revolta popular palestina, agravado com a incursão da polícia israelense que usou spray de pimenta e granadas dentro da Mesquita de Al-Aqsa (um dos locais mais sagrados para o Islã), deixando um saldo de mais de 300 feridos. Também ocorreram ataques de extremistas israelenses contra árabes-palestinos em várias cidades de Israel (7) o que revela o peso da ideologia racista e sionista sobre grande parte daquela população. 

Todos esses episódios de sistemática violência, violação de direitos e de apartheid social que estamos acompanhando na Palestina ocupada, servem para recordar que o processo de limpeza étnica (nunca é demais repetir) jamais foi interrompido desde a Nakba – em árabe, catástrofe –, em 1948 e que neste dia 14 de maio, completa 73 anos.

Novamente a barbárie em Gaza

É importante lembrar que Israel cometeu sucessivos massacres em Gaza. Nos últimos anos foram dois. Em 2008-2009, a chamada Operação Chumbo Fundido, que durou quase um mês, registrou mais de 1.400 mortos palestinos, entre os quais 138 crianças. Além disso, houve inúmeras destruições de habitações – segundo as Nações Unidas, foram mais de 6 mil. Foi, sem dúvida, uma série de crimes contra a humanidade.(8)

Em 2014, Israel iniciou uma nova ofensiva militar sobre a Faixa de Gaza, considerada uma das mais violentas de todas. Somente nas primeiras 48 horas, foram despejadas 400 toneladas de bombas. Durante quase dois meses, os ataques aéreos de Israel causaram a morte de 2.251 pessoas (incluindo 500 crianças) e mais de 11 mil feridos, segundo fontes palestinas e das Nações Unidas. (9)

Agora assistimos, há 5 dias, a uma nova ação do Estado de Israel sobre Gaza. A justificativa é novamente o “combate ao terrorismo”. Muitos já entenderam (embora outros não admitam) que Israel não se defende, Israel ataca. Israel não retalia, Israel provoca para depois poder se apresentar como vítima, como justificativa, enquanto radicaliza suas ações de extermínio. Ao longo de toda a sua existência, esse foi seu mecanismo. 

Diante dos comunicados da resistência armada em Gaza, o Hamas (que governa o território sitiado desde 2007), reiterou uma fórmula de fato presente para tratar dos lugares sagrados, sobretudo a Mesquita de Al-Aqsa, que os descreve como linha vermelha a não ser ultrapassada. Um ultimato foi dado a Israel para deixar o complexo religioso e libertar os detidos em até 18h. A resposta de Israel foi a indiferença e novos ataques de sua polícia aos palestinos. O Hamas então disparou foguetes de Gaza em direção a Tel Aviv. 

A reação de Israel foi imediata. Iniciou uma sucessão de ataques aéreos de mísseis (financiado com dólares enviados pelos EUA) e também de tiros disparados por tanques em direção à Faixa de Gaza. A ação foi “justificada” por Netanyahu (o carniceiro da vez) como feita “em alvos terroristas”. Mas, como dissemos, o fato de Gaza ser uma pequena área com mais de 2 milhões de habitantes, faz com que essa desculpa usada pelo governo israelense caia por terra – os alvos principais serão sempre a população civil, incluindo crianças. Já conhecemos essa história. Até a madrugada desta sexta, 13, 120 pessoas, inclusive ao menos 30 crianças, segundo o Unicef, foram mortas em Gaza e no campo de refugiados de Bureij, e mais de 800 pessoas ficaram feridas. (10)

Por mais que o Hamas tenha lançado mais de 1.000 foguetes, 90% foi interceptada pelo poderoso sistema antimíssil de Israel. Até agora são 8 vítimas em Israel. Mas como lembra Eduardo Galeano, em seu texto de 2014, do qual usamos um pequeno trecho como epígrafe do presente artigo: 

“é como sempre, sempre o mesmo em Gaza, cem a um. Para cada cem palestinos mortos, um israelense. Gente perigosa, adverte o outro bombardeio, a cargo dos meios de manipulação de massa, que nos convidam a crer que uma vida israelense vale tanto como cem vidas palestinas”.(11) 

Aqui não se trata de defender a violência, nem minimizar a morte como um detalhe. Mas entender que a natureza agressiva da ocupação militar israelense também é uma lembrança de que os palestinos sob ocupação há mais de 70 anos têm direito legítimo à autodefesa. 

Nesse sentido, vale a pena abrir um pequeno debate sobre o Hamas, considerado por Israel o “principal responsável” por essa nova fase de violência no Oriente Médio. Inspirado na Irmandade Muçulmana egípcia, o Hamas começou a atuar na resistência palestina em 1987 e se baseou em uma rede eficaz de proteção social e na crítica às concessões feitas por Yasser Arafat, então principal dirigente da Organização pela Libertação da Palestina (OLP), cuja perda de autoridade e desmoralização ficou evidenciada nos Acordos de Oslo, de 1993 (12), e nos de Camp David, de 2000. No início deste ano, a brava resistência do Hamas aos ataques de Israel, em Gaza, só fez aumentar seu prestígio junto aos palestinos. Em 2006, venceu as eleições e tornou-se governo em Gaza, onde continua até hoje, com todos os problemas de sua relação com o poder e com os opositores na região. 

É importante salientar que, não obstante toda sua legitimidade (reconhecida) enquanto parte protagonista da resistência palestina, seu programa é equivocado e é incapaz de levar a uma vitória estratégica, pois defende a implantação de um estado islâmico na Palestina. A luta na Palestina não é entre diferentes religiões, mas entre uma nação oprimida e seus opressores, entre as classes sociais exploradas e seus exploradores. Portanto, somente bandeiras nacionais e sociais mais amplas possibilitarão unificar uma aliança permanente com as diferentes massas exploradas árabes e poderão garantir apoio de um setor mais consciente dos judeus (antissionistas) de Israel para o desmonte do aparato sionista. Essa é uma alternativa difícil, uma incógnita, mas que politicamente pode avançar numa mudança de perspectiva (e esperança) rumo à construção de uma Palestina una, democrática, não racista, com direitos iguais para todos que nela habitem e com a restituição dos direitos dos palestinos despojados. 

#PalestinianLivesMatter: A necessária solidariedade internacional aos palestinos

Desde o início do capítulo da mais recente onda de violência sionista contra os palestinos, a hashtag #SaveSheikhJarrah viralizou nas redes sociais, além de outras como #GazaUnderAtack, #Jerusalem, #FreePalestine e #PalestinianLivesMatter (“Vidas Palestinas Importam”), em referência à campanha do movimento negro contra a brutalidade policial estadunidense que se difundiu em todo o mundo.

Houve uma grande resposta global de solidariedade. Muitas manifestações foram organizadas em âmbito internacional e mensagens de apoio circularam nas redes sociais. De fato, tais iniciativas encorajam a motivação e determinação do povo palestino, ao demonstrar que não está sozinho. Mesmo que nenhuma resolução tenha emergido dos estados-membros do Conselho de Segurança ou mesmo da Liga Árabe. Também a Autoridade Palestina, sob o comando de Abbas não manifestou de forma mais consequente sobre o terror sionista em Gaza. Por sua vez, a administração Biden, por meio do Secretário de Estado, declarou que “Israel tem direito de se defender” e recusou a oferecer o mesmo direito aos palestinos (que são a parte mais fraca, sem exército nem estado). 

Não há como falar de paz sem falar de justiça ao povo palestino. Seus direitos nacionais devem ser restaurados e a opressão e a ocupação militar de Israel precisa terminar. Nesse dia 14 de maio, data que Israel comemora a “sua independência nacional”, as palavras de Waldo Mermelstein (histórico militante socialista e internacionalista que esteve em Israel na década de 1970) dizem muito sobre o sentido da causa palestina que desde a Nabka vem demonstrando “Coragem, inteligência e determinação frente aos ocupantes armados até os dentes. Esta é a resistência que os sionistas não conseguiram vencer desde antes de 1948”. (13)

 

 *Professor de História da rede municipal do Rio de Janeiro e militante da Resistência/PSOL.

NOTAS

(1) https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/05/12/confrontos-entre-israelenses-e-palestinos-ja-deixam-67-mortos-em-gaza-e-sete-em-israel.ghtml (Consultado em 12.05.2021)
(2) Para conhecer um pouco mais sobre o cotidiano na Faixa de Gaza destaco dois artigos de personalidades que estiveram, nos últimos anos, naquele território ocupado: um sacerdote brasileiro e de um dos mais renomados intelectuais conhecidos. Ver respectivamente https://www.correiobraziliense.com.br/impresso/2018/06/2770103–gaza-e-a-maior-prisao-a-ceu-aberto.html e também https://www.viomundo.com.br/politica/chomsky-como-e-tentar-sobreviver-na-maior-prisao-a-ceu-aberto-do-mundo.html  Por fim destaco ainda um tocante vídeo sobre o cotidiano em Gaza, a partir da ótica de três crianças https://www.youtube.com/watch?v=UK6nF-lrWLI
(3) https://rebelion.org/la-covid-19-anade-mas-presion-al-sobrecargado-sistema-de-salud-de-gaza/ (Consultado em 12.05.2021)
(4) https://www.bbc.com/portuguese/noticias/story/2004/04/printable/040420_guila . Ver também uma entrevista feita com Vanunu a um importante veículo de imprensa brasileira em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1801200511.htm (Entrevistas consultadas em 13.05.2021)
(5) Ver o recente artigo que fiz para o EOL https://esquerdaonline.com.br/2021/05/11/uma-nova-intifada-palestina-esta-surgindo-notas-sobre-a-resistencia-contra-o-plano-de-judaizacao-sionista-de-jerusalem-oriental/ (Consultado em 12.05.2021)
(6) Agradeço ao amigo e histórico militante internacionalista Waldo Mermelstein essa informação, além de outras que busquei incorporar ao presente artigo.
(7) https://www.monitordooriente.com/20210513-extremistas-israelenses-lancam-ataques-contra-arabes-em-cidades-israelenses/ (Consultado em 13.05.2021
(8) https://istoe.com.br/12045_O+TERROR+DA+OPERACAO+CHUMBO+FUNDIDO+/ (Consultado em 13.05.2021)
(9) https://www.monitordooriente.com/20200708-relembrando-a-ofensiva-israelense-contra-gaza-de-2014-2/ (Consultado em 13.05.2021)
(10) https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2021/05/14/israel-bombardeia-gaza-pelo-ar-e-com-artilharia-em-escalada-militar-que-deixou-mais-de-120-mortos.htm (Consultado em 14.05.2021)
(11) https://www.esquerda.net/artigo/eduardo-galeano-ja-pouca-palestiniana-resta-pouco-pouco-israel-esta-apaga-la-do-mapa/33472 (Consultado em 12.05.2021)
(12) Pelos denominados “Acordos de Oslo” (1993) os palestinos renunciavam o direito ao retorno dos milhões de refugiados, com a promessa de um estado palestino minúsculo. Edward Said, o mais renomado intelectual palestino chamou tais acordos de “um instrumento de rendição palestina”. Ver https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2210200006.htm  
(13) Waldo Mermenstein [facebook], 12.05.2021
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